17/12/2015 14:47
Marcela Vecchione¹
Não é novidade alguma que o financiamento ao desenvolvimento e o financiamento do clima tem convergido nos últimos anos. A referência no preâmbulo do Acordo de Paris à Agenda de Ação de Addis Ababa, resultado da Terceira Conferência de Financiamento ao Desenvolvimento, em especial ao seu objetivo 13 de escalar esforços para acabar com a fome e a desnutrição, expõe de maneira clara a intenção de canalização do fluxo de recursos para redução da pobreza e das desigualdades em conexão à agenda do clima.
Esta agenda é central para agências das Nações Unidas, Partes (Estados Nacionais) e atores internacionais, como grandes organizações não-governamentais, não só para a redução da pobreza, mas para o fortalecimento (enhancement) do reconhecimento de resultados de boa gestão ambiental e de promoção da governança de riscos e impactos de maneira geral (por iniciativa pública ou privada ou público-privada) para que diferenças e assimetrias diminuam e que os mais vulneráveis sejam atendidos pelos supostos benefícios do celebrado Acordo de Paris.
No entanto, a teoria pode ser bem distinta da prática. A canalização tanto de dinheiro, como de distribuição e construção de capacidades pela via do financiamento climático pode gerar outras e mais profundas formas de assimetria. O caso do financiamento no Acordo de Paris dá algumas pistas de tal movimento sobre como a forma e para o quê o recurso será desembolsado. Influenciam e acompanham diretamente o avanço do poder privado sobre a regulação e recepção do financiamento e os gargalos públicos na execução de políticas de cunho ambiental para a implementação de uma “economia de baixa emissão de carbono” e a promoção de um “desenvolvimento climaticamente resiliente”.
O cumprimento e seguimento aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável serão fundamentais na detecção e medição da gravidade desses gargalos. Serão, assim, estruturantes na distribuição de financiamento pelo reconhecimento de iniciativas por parte dos mecanismos financeiros da Convenção – Fundo Verde do Clima (GCF) e Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF) – para que as “capacidades sejam construídas” e tenha um “ambiente pronto” (readiness), no período pré-2020, ano em que entrariam em operação sob efeito de vigilância e monitoramento (overseeing) as obrigações do acordo.
Um dos pontos problemáticos desse movimento é a busca pelo dinheiro, exatamente pela falta de seu fluxo ser causada em muitos países pelas assimetrias reproduzidas pelos atores que provocam as emissões (e que agora pretendem evitar (REDD+) ou remover) faz com que o financiamento seja visto como o santo graal para destrancar o acesso a recursos e redistribuir renda internacionalmente. Forma-se, assim, um típico cenário em que o excesso de termos, condições, especificidades e garantias de linha de financiamento advogadas pelos países do Sul, mais especificamente os menos desenvolvidos (LDCs) e os pequenos países insulares em desenvolvimento (SIDs), com algum apoio do agora fracionado G77, legitimem o desenho de um cenário do que será o próprio risco que irão enfrentar em suas políticas de desenvolvimento.
O desenho do risco alinha em sua costura, uma forma detalhada de gerenciamento a partir da incorporação de atividades benéficas ao equilíbrio do clima (desenvolvimento climaticamente resiliente) que podem gerar dívida financeira e ecológica e dependência de cooperação tecnológica, que amarra formas muito especificas de uso da terra em combinação com atividades econômicas de subsistência (livelihoods) ou mesmo em escala (on scaling up).
Não há almoço grátis e nem mesmo a cooperação sul-sul está fora disso. Obviamente, há várias nuances no processo, pois as necessidades são distintas e as relações de poder são complexas podendo se combinar de várias formas, a fim de que o acesso ao financiamento seja usado de forma estratégica pelos países que mais precisam; um dos pontos de celebração do acordo e, ao mesmo tempo a razão pela qual o G77 principal grupo em conteste historicamente rachou. A construção das estratégias resultou em conflitos importantes, que passaram despercebidos nas performances de relação de poder nas negociações. Tal movimento trouxe ausência de um princípio integrador e integrante sobre o que significava diferenciação entre os poucos que destacavam o fator descolonização no arranjo financeiro, permanecendo a resiliência climática e a economia de baixa emissão como as pedras de toque da futura operacionalização financeira das responsabilidades históricas comuns, porém diferenciadas. Algo bastante complexo considerando de onde vem a linha do discurso, que tem origem nos atores que não são parte (non-state parties), em sua maioria, uma combinação do setor privado com organizações não-governamentais e alguns grupos vulneráveis que cavam acesso a recurso dada a total inoperância de seus governos nacionais na garantia da realização dos seus direitos (caso dos povos indígenas e tradicionais em escala global).
Construção de capacidades
De maneira geral, a inserção de forma constitutiva e estruturante da expressão “construção de capacidades” no Artigo 6 (parágrafo 6 e 8) no Acordo, traz uma novidade que não estava presente em momentos anteriores. Ficam agora mais claras as ligações que devem ser estabelecidas entre o que se financia e a política que se pretende fomentar para desenvolver uma certa “alfabetização climática” na forma das mais altas ambições em mitigação e adaptação. Isso pode guiar e definir os rumos da medição de capacidade institucional, do desenvolvimento, bem como do papel da natureza, na roupagem do capital natural no momento de avaliar, re-avaliar e renovar os riscos do financiamento à mitigação e adaptação na transferência de tecnologia e no fortalecimento de políticas de gestão e governança ambiental – algo que já vinha sendo promovido pelo Programa de Meio Ambiente da ONU (UNEP) e pelo Banco Mundial desde a Declaração do Capital Natural durante a Rio +20 e o lançamento da Economia dos Ecossistemas e da Biodiversidade (TEEB), em Nagoya.
Mesmo que a integridade ambiental apareça como norteadora no artigo sobre financiamento em seu parágrafo 1 – um avanço terminológico – é pouco provável que se reflita de maneira equitativa e politicamente horizontal se olharmos para os tipos de iniciativas paralelas que a traduzem nas agências das Nações Unidas e no panorama do financiamento ao desenvolvimento de maneira mais geral.
Neste sentido, são muito importantes os parágrafos 55 e 61 das Decisões da COP 21 em referência ao Artigo 6 sobre financiamento no Acordo de Paris, em referência aos Artigo 3 (Diferenciação) e 9 (Transparência), para uma avaliação na direção de pensar políticas de reflexão coletiva sobre o financiamento ao desenvolvimento atrelado ao financiamento climático e formas renovadas de dependência. O parágrafo 55 das decisões garante a existência de recursos financeiros de forma adequada, previsível e sustentável (no sentido da continuidade) aos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos; uma vitória processual em termos de linguagem para alguns países do Sul (em sua maior parte os LDCs e os latino-americanos presentes no G77).
Entretanto, o que alguns colocaram como o “pacote de construção de capacidades” na penúltima reunião do G77 durante a Conferência, liga e inclui nesta forma de provisão de recursos o pagamento por resultados, uma posição historicamente defendida pelo Brasil. A diferença é que nos parágrafos seguintes a posição aparece de maneira a reforçar (enhance) as ações de mudanças climáticas (climate change actions) que, justamente, poderiam reforçar os resultados já obtidos ou estar acima dos resultados esperados por políticas públicas ou projetos de longo prazo já em execução. Isto abre a possibilidade de o fluxo de financiamento privado ou público-privado contabilizar na contribuição e construção de capacidades dos países (não em suas contribuições nacionalmente determinadas), o que se prevê no parágrafo 53 das decisões sobre financiamento em conformidade com os objetivos do Acordo, em seu Artigo 2.
A questão é que estes recursos previstos no acordo para a “implementação de aproximações de políticas públicas e incentivos positivos para reduzir emissões por desmatamento e degradação florestal” (nosso velho conhecido REDD+) vem acompanhados especificamente no mesmo parágrafo 55 das formas que caracterizariam tais incentivos. Estas incluem ações conjuntas de adaptação e mitigação para o manejo sustentável das florestas (que levou o selo “integral” no parágrafo), “reafirmando a importância dos benefícios de não carbono” (co-benefícios de carbono), que transferem não só a responsabilidade do financiamento público para o meio ambiente a outros níveis de governo e governança, como sinaliza a intenção da canalização dos mesmos financiamentos ao desenvolvimento a práticas específicas. O que aparentemente pode facilitar o acesso aos mecanismos financeiros da convenção, na verdade, pode é gerar restrições, atribuições e condições muito específicas para o acesso e recebimento do mesmo financiamento.
Cooperação
Condicionalidades que muitas vezes se relacionam às atividades que supostamente geram co-benefícios do carbono podem levar à mudança de práticas locais pela implementação de técnicas consideradas eficientes, mas, que demandam compra de materiais, treinamentos, estabelecimento de cooperação técnica. Adicionalmente, tal cooperação na base da construção de capacidades quase sempre vem com a entrada de novos modelos produtivos e/ou de conservação, tendendo a gerar aumento da dívida daqueles que diretamente precisarão do financiamento depositado nos Mecanismos Financeiros Oficiais da Convenção e redirecionado às Entidades Nacionais Designadas (NDE). Assim, na fase de construção de capacidades, da maneira como se configura no Acordo quando se convida as partes a participarem, reiterando que elas deveriam assim proceder para receber o financiamento, deixando explícito que deverá haver adaptação às práticas reconhecidas como “de resultado” para consecução do objetivo máximo da Convenção, presente no Artigo 2, que é a redução e, agora também, a remoção das emissões verificadas e reportadas do carbono na atmosfera.
Como coloca Camila Moreno, a lógica é carbonocêntrica. A forma de desembolsar e redirecionar o financiamento será a via de reforço, a pedagogia para os países estruturarem suas estratégias de desenvolvimento e oferecerem sua contribuição nacionalmente determinada ao regime internacional do clima, ao mesmo tempo em que incorporam a base quantificável do mesmo acordo – o carbono – na medição da qualidade das respostas às mudanças climáticas em suas próprias economias. Por essa lógica, todos serão menos vulneráveis e diminuirão suas diferenças, na medida em que incorporem o modelo de baixa emissão e resiliência climática que os capacitará a angariar novos financiamentos e, consequentemente, mais pagamento por resultados. Tudo muito conectado e holístico, tal qual presente no parágrafo 8 do Artigo 6 do Acordo de Paris. Contudo, não aparece nesta equação a dívida ecológica e financeira. Os custos podem ser muito maiores que os benefícios no processo. E vulnerabilidades podem ser revisitadas e reproduzidas sob novos aspectos baixo ao Acordo, apesar da euforia.
Ainda que se coloque que os novos fluxos financeiros angariados pelo pagamento por resultados estarão de acordo “com os termos de referência que serão desenvolvidos pelas Partes”, levando em consideração os princípios de soberania fiscal e incidência evitada (cobrança de transação financeira sobre financiamento ao desenvolvimento e cooperação técnica), a dívida pode crescer. Isso ocorreria precisamente por causa das “formas de fazer” reconhecidas como resultado, que demandam investimentos e serviços específicos. São dessa forma bastante inéditas as formulações específicas e detalhadas relativas ao financiamento no Acordo de Paris, quase configurando nas “construções de capacidades” alinhadas aos princípios da Convenção um modelo muito comum visto nos aspectos gerais de contrato de financiamentos e empréstimos bancários. Muito embora não esteja claro o nível de burocratização que isso possa gerar.
Ficam nítidas as condicionantes e as externalidades positivas esperadas para que haja mais fluxo no financiamento não só climático, mas ao desenvolvimento de maneira mais ampla, que recebe o nome de climaticamente resiliente. Sendo a resiliência um termo tão caro aos movimentos sociais e povos indígenas e tradicionais, presentes em suas formas de viver mesmo quando não pronunciadas desta maneira, é fundamental observar como sua tradução de maneira legalmente vinculante no acordo do clima e na medição de seu sucesso afetará na produção e reprodução destas várias formas de viver (biodiversidades) quando a elas serão certamente apresentados – e condicionados – novos ajustes.
[1] Grupo Carta de Belém e Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA- Universidade Federal do Pará).