31/08/2017 20:49

Há exatamente um ano, o plenário do Senado aprovava, por 61 votos favoráveis e 20 contrários, o impedimento de Dilma Rousseff. Era o afastamento definitivo da então presidenta, que foi condenada por acusações de crime de responsabilidade fiscal no Plano Safra, conhecidas como “pedaladas fiscais”, e relacionadas a decretos que teriam resultado em gastos sem a autorização do Congresso Nacional.  A primeira mulher a presidir o Brasil, reeleita com 54 milhões de votos, era derrubada do poder a partir de uma base jurídica considerada, por diversos especialistas, como frágil. Michel Temer, que já estava no cargo de forma interina desde maio daquele ano, assumia a presidência. Para diversos setores que sempre denunciaram os limites da precária democracia brasileira e lutaram, em várias escalas, por direitos, tomava posse um governo ilegítimo e golpista.

Para refletir sobre esse importante momento histórico, é preciso olhar para o que precedeu a situação. As razões desta crise são bastante complexas¹. O pacto de governabilidade sobre o qual o sistema político do país se estabeleceu desde a Constituição de 1988 nunca foi quebrado, nem mesmo com a eleição dos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff. As diversas desigualdades estruturais constituintes da própria formação social do Brasil persistiram. Essas estão expressas na alta concentração de poder político e de riqueza nas mãos de poucos.  Os anos abertamente neoliberais e a dependência do Fundo Monetário Internacional (FMI) nos anos 1990 são um retrato fiel dessa lógica.

A eleição de governos progressistas no Brasil não rompe com as políticas macroeconômicas neoliberais, mas adota políticas sociais contraditórias ao receituário neoliberal. O aumento dos preços das commodities, o superávit comercial e seus impactos positivos sobre o orçamento público proporcionaram medidas como a valorização progressiva do salário mínimo e o financiamento de políticas sociais, dentre as quais o Bolsa Família se tornou a mais conhecida. Em um país onde fome e pobreza eram problemas seculares, essas medidas produziram mudanças inegáveis. Porém, geraram uma integração pelo consumo, não sendo uma mudança que representasse um real aprofundamento da participação da maioria das pessoas na vida política como sujeitos de direitos.

As principais regras do jogo político e econômico não mudaram: a maior parcela do orçamento público continuou sendo destinada ao capital financeiro, por meio de altos juros e do pagamento da dívida pública, e às políticas de subsídio de setores que violam direitos humanos e degradam o meio ambiente, como o agronegócio. Assim, embora com uma distribuição desigual do orçamento, estes governos conseguiram agradar, ao mesmo tempo, banqueiros e parcelas das classes populares.  Apesar de críticas contínuas de setores da esquerda, o pacto de governabilidade teve estabilidade mesmo durante  a crise internacional, iniciada em 2008, e interpretada pelo governo apenas como “uma marolinha”.

Agronegócio recebeu inúmeros subsídios na era petista. (Foto: Roosewelt Pinheiro/ABr)

Essa fórmula, no entanto, se mostrou extremamente difícil de sustentar. Os impactos da aposta em grandes empreendimentos de infraestrutura, extrativos e de megaeventos esportivos, geradores de injustiças ambientais, sociais, econômicas e culturais, deixavam mais evidentes as fragilidades e contradições no interior do governo. As Jornadas de Junho de 2013 anunciavam uma insatisfação social, reivindicando melhorias de serviços públicos, como saúde, transporte e educação, e o fim da violência do Estado na figura da polícia militar. Naquele momento, os meios de mídia corporativa já provavam seu poder ao criminalizar ou manipular as mobilizações.

A queda dos preços das commodities, seu impacto sobre o orçamento e a perseguição de setores do poder judiciário e da mídia foram alguns dos fatores que resultaram em eleições presidenciais acirradas em 2014, tanto que a ex-presidenta Dilma venceu por uma margem mínima de votos. A coligação perdedora, então, não deu qualquer momento de tranquilidade ao governo legitimamente eleito, contando com o apoio dos meios de comunicação corporativos. O governo petista enfrentava as consequências de não ter enfrentado o monopólio da mídia no Brasil.

Governo golpista assume e decisão nas urnas é deixada de lado. (Foto: ABr)

A então presidenta Dilma passou a receber ataques misóginos e uma frequente oposição de cunho conservador. Sob a justificativa de acalmar o mercado financeiro, o governo decide levar a cabo a política macroeconômica prometida eleitoralmente pela coligação perdedora, enfraquecendo sua aceitação social que, naquele momento, já estava prejudicada. Sem o apoio necessário das ruas, sem ter mais a maioria no Congresso Nacional, atacado na mídia corporativa e traído pelos setores conservadores de sua própria coalizão, a situação do governo era de crise absoluta.

As investigações contra a corrupção, que atrelavam setores cada vez mais amplos da classe política, tanto da oposição como da situação, seguiam com independência no governo Dilma. Isso agitou os que tentavam salvar-se do horizonte de condenação e de prisão, dando mais combustível à instalação do processo de cassação e sua consumação. De lá para cá, tanto conquistas obtidas no período petista, quanto direitos adquiridos em ciclos anteriores, como as garantias da Consolidação nas Leis Trabalhistas (CLT), foram sendo usurpados. A aprovação da PEC 95/2016, por exemplo, limitou os investimentos públicos em políticas sociais nos próximos 20 anos, o que implica na redução do programa Bolsa Família, na suspensão de concursos públicos, no corte de financiamento nas áreas de educação, saúde e habitação etc.

A atual conjuntura é de atropelos. Mas, ainda que diante de incertezas e do acirramento das violências em territórios populares, as resistências em defesa da vida continuam sendo travadas pelas populações, organizações e movimentos sociais nas cidades, no campo e nas florestas.

[1] A série de análises da FASE “Um Ano de Golpe no Brasil” continua amanhã (1º).