30/09/2020 17:14
Em meio ao céu encoberto pela fumaça das queimadas, a decisão da Justiça de suspender as últimas deliberações do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) veio como um pé d’água que limpa o horizonte. Mesmo assim, nos mantém alerta para o que pode ser apenas uma chuva de verão, incapaz de conter o avanço da tempestade e a longa noite que se aproxima — ou de impedir que um mesmo raio caia duas vezes no mesmo lugar.
Mutilado e manipulado pelo governo antipovo de Bolsonaro, o conselho, com reduzida participação popular, defendeu a derrubada de normas que há anos regulam a ocupação e protegem os ecossistemas dos mangues e restingas. A medida, que claramente atendia a interesses econômicos do agronegócio, da carcinicultura e da indústria da construção civil, seria um duro golpe para esses biomas e todo o ecossistema brasileiro, mas atingiria de forma mais covarde o povo do mangue, comunidades tradicionais inteiras que vivem do extrativismo na zona costeira do país, já impactados pela tragédia trazida pela grande mancha de óleo no mar, no ano passado. Segundo levantamento do Instituto Terramar, só no estado do Ceará, cerca de 100 famílias tiram seus sustento da coleta nos manguezais. Essas áreas e os estuários dos rios foram as mais afetadas na época do derramamento — justamente os locais onde Ricardo Salles, o ministro do Meio Ambiente, e sua boiada pretendiam “mudar todo o regramento”. O impacto seria sentido não só pelo pescador, mas por toda sua família e a economia local. O ecossistema dos manguezais é de uso múltiplo e periódico de toda a comunidade, visitado como área de lazer, frequentado por diversas vezes na rotina diária e na própria utilização de outros recursos de flora e fauna da região, dentro do conhecimento secular acumulado pelos moradores. O mesmo acontece em Pernambuco, nas manguetowns de Chico Science, onde a FASE trabalha com cerca de 2000 pescadoras e pescadores artesanais afetados pela crise ambiental permanente em que vivemos.
É certo que os efeitos da proposta de Salles também seriam sentidos nas regiões próximas a reservatórios de água de grandes cidades, como no caso das represas Billings e Guarapiranga, em São Paulo — mas pela concentração da massa urbana, esse impacto seria mais combatido e, talvez até, mais diluído. A lógica que movimenta a expansão de projetos econômicos direciona o maior peso das consequências sobre quem está mais fragilizado. Este é o mesmo caso da disputa por água no semiárido nordestino, onde agricultores familiares já vivem a escassez enquanto a indústria da fruticultura prospera com grandes plantações de melão e melancia. Tal situação só tenderia a piorar, com outra medida desregrada do Conama de Salles: a desobrigação de licenciamento ambiental para empreendimentos de irrigação.
O caráter autoritário desse governo já vinha sendo demonstrado pelos seguidos episódios de descompromisso com o meio ambiente brasileiro. A falta de definição de uso dos recursos naturais e a desregulamentação paulatina de todo o sistema de fiscalização e proteção amplia a desigualdade de poder e o desequilíbrio social, limitando institucionalmente a própria democracia. A boiada de Salles quer passar por cima, mas uma ampla aliança de todos os setores da sociedade dá conta de reagir e fechar a porteira, afastar as nuvens carregadas, e, como diz o poeta Zé Geraldo, ouvir o canto do galo anunciando no clarão da madrugada o raiar de um novo dia.