25/01/2021 08:49
Rosilene Miliotti¹
Para uns o maior acidente de trabalho do país. Para outros, mais um crime da Vale. Ao completar dois anos do rompimento da barragem de rejeitos de minério de ferro da Mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), administrada pela empresa, fazemos as contas: 272 mortos, 11 desaparecidos, ninguém responsabilizado ou preso, pouca ou quase nenhuma reparação às famílias das vítimas, uma cidade fantasma, um rio morto e muitos impactos na vida e na cultura de comunidades que o margeiam.
Dos mortos, mais de 200 são funcionários — boa parte deles terceirizados. É preciso ressaltar que, com a nova lei trabalhista, ficou mais barato assumir um acidente de trabalho, porque as indenizações acabam sendo menores. Ainda destacamos que a Vale também já recuperou a confiança dos investidores e voltou a ter grandes lucros no mercado financeiro, mas parece não dar o mesmo valor às vidas dos que foram e dos que ficaram. Sobreviventes, familiares e amigos ainda choram a perda de pessoas queridas. A cidade não se recuperou, animais e roças perdidas.
A vida que brotava do rio Paraopeba também não resistiu e morreu. As comunidades que dependiam do rio para sobreviver sofrem as consequências desse crime, mas não são reconhecidas pela empresa. O quilombo da Pontinha, a cerca de 150km de onde a barragem se rompeu, é uma dessas comunidades não reconhecidas e que teve toda sua rotina impactada.
Composta por cerca de 300 famílias, a comunidade – não titulada – fica no município de Paraopeba (MG). A população desenvolve uma atividade extrativista de manejo do Rhinodrilus alatus, mais conhecido como minhocuçu², animal usado como isca de pesca profissional. Cada trabalhador chega a retirar até três dúzias por dia, o que pode gerar um lucro de até R$ 150. A venda era feita principalmente para o “Shopping das Minhocas”, na BR 040, principalmente no trecho entre Caetanópolis e Curvelo.
As consequências do rompimento da barragem são diversas para a comunidade. De acordo com o “Relatório Antropológico de Caracterização Histórica, Econômica, Ambiental e Sócio-Cultural da Comunidade Quilombola de Pontinha”, elaborado por antropólogos do INCRA, o rio constitui importante referência para a estruturação deste território, configurando-se como uma das fronteiras geográficas da comunidade e também como fundamental na constituição de um ecossistema específico, denominado pelos moradores como “pantames”. Essas áreas próximas ao rio, que ao longo do tempo foram sendo griladas e invadidas por fazendas, eram consideradas boas para o plantio e o extrativismo.
Além da atividade extrativista, os moradores da Pontinha também pescavam mandi, piranha, surubim, juma, carimba, piau, como explica Renato Moreira Gonçalves, membro da associação da comunidade, do projeto Pequi e da Rede Quilombola da Região Metropolitana de Belo Horizonte. “Aqui as pessoas têm muita intimidade com o rio, sabiam os pontos onde se banhar, pescar. Fora isso, tem muito barranco, corredeiras, o rio profundo, correntezas submersas. O lazer e a pesca não existem, a renda foi comprometida. Nesse sentido, a comunidade foi impactada diretamente”, conta Renato que também ressalta que os jovens estão saindo da comunidade. “Eles estão perdendo a ligação com o território em busca de renda. Não sabemos se voltarão e assim a comunidade vai perdendo sua história e seus saberes”.
Renato explica que, para a Vale, a Pontinha não tem direito à indenização por causa do critério da calha de 1km. Entretanto, “essa característica de 1km para as cidades em um polo urbano não se aplica a comunidade rural, que costuma percorrer a pé quilômetros mata e rio a dentro. O não uso do rio está adoecendo os idosos. As pessoas não têm como fazer seus ritos de fé, seja no candomblé ou pelo batismo da igreja evangélica”.
Processo, reparação e legislação
A Pontinha tem um processo junto ao Ministério Público Federal e as assessorias técnicas têm dialogado com a Vale. Renato ressalta ainda que a comunidade tem trabalhado para que o acordo entre a empresa e o governo estadual não seja fechado sem a comunidade ter conhecimento. “Quando descobrimos o acordo, imediatamente ele foi posto em sigilo. Logo após, mudou para confidencial. O estado se mostra conivente com a empresa. A gente fica na torcida para que nossa justiça tenham uma articulação favorável às comunidades. Esses dois anos nos mostraram um retrato delicado das pequenas deficiências das instituições. Isso tudo já era para ter sido resolvido. Mas dão muito poder a quem não o merece. Essa é uma briga desleal”.
No último dia 21, a audiência de conciliação terminou sem acordo entre a Vale e o governo de Minas Gerais, no Tribunal de Justiça do Estado, para definir a indenização relativa às perdas causadas. De acordo com o secretário-geral do governo, Mateus Simões, a partir do dia 1º de fevereiro o caso volta para a primeira instância. A Vale recebeu, no entanto, uma semana de prazo para apresentar uma nova proposta de valor para as indenizações. O governo tentava negociar um valor de R$ 54 bilhões, que inclui indenizações por danos econômicos e morais. A empresa fala em R$ 21 bilhões.
Jarbas Vieira, do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração, conta que logo após o rompimento da barragem tiveram duas movimentações dentro do Congresso Nacional: a criação de uma CPI e o Projeto de Lei (PL) 550 – já aprovado. “Porém por causa de falta de unidade e os diversos interesses de parlamentares que seguiam as determinações de mineradoras, não houve consenso”.
A CPI da Câmara indiciou 22 pessoas, e a do Senado, 19. “A CPI da Câmara também propôs a criação de um Observatório junto ao Ministério Público, sociedade civil organizada, Defesa Civil, representantes da Câmara, Senado, Comissão de Direitos Humanos, entre outros atores, para acompanhar as negociações e a situação das outras barragens de MG. No entanto, ficou somente como orientação. Nada andou e ninguém foi preso. O Observatório também não foi instalado e não houve mudança da Lei da CFEM³. As CPIs acabaram não tendo consequências práticas”.
Jarbas explica que a CEXBruma (Comissão Externa para fiscalizar as barragens no Brasil, em especial, acompanhar as investigações em Brumadinho), foi a que fez o melhor trabalho e teve muita participação de diversos partidos. “Houve uma certa unidade em busca de saídas práticas para que não acontecesse outros rompimentos”. A comissão visitou Brumadinho, atingidos e convocou o presidente da Vale [que não compareceu]. O resultado foi a proposição de sete PLs. Quatro deles foram aprovados na Câmara, mas estão travados no Senado. “Infelizmente, eles não serão votados porque perderam o objeto, como se não tivesse mais sentido porque o PL 550 é amplo e trata de todos esses temas. Mas é óbvio que o setor mineral mexeu no texto original deste PL”.
Tragédias anunciadas? Temos
Para Jarbas, a falta de estrutura do estado é intencional e, em breve, podemos ter outros rompimentos de barragens como Mariana e Brumadinho. “O rompimento de barragem não está ligado somente a uma trinca. Na verdade, essa trinca acontece porque há uma super exploração da mina e da força de trabalho. A Agência Nacional de Mineração (ANM) não vai lá fiscalizar”, conclui.
Os quadros da ANM não foram aumentados e ainda houve corte de recursos gradativos entre 2018 e 2020, assim como outros órgãos de fiscalização. Outro fato que causa o rompimento é o preço baixo da commodity. Para ter lucro é preciso aumentar a extração. Em dezembro de 2020, um trabalhador terceirizado morreu após o desabamento parcial de uma barragem, em Brumadinho. Sismógrafos têm registrado pequenos tremores na região e há pouca (ou nenhuma) fiscalização.
De acordo com o governo de MG, das 53 barragens que deveriam ser desativadas no estado, apenas uma foi descomissionada. O fim das barragens do modelo à montante foi determinada pela Agência Nacional de Mineração, em fevereiro de 2019. Na época da publicação, o prazo de descomissionamento de todas as barragens neste modelo era janeiro de 2021. Porém, a lei estadual 23.291, que surgiu a partir do movimento “Mar de Lama Nunca Mais”, ampliou esse prazo para 25 de fevereiro de 2022.
[1] Jornalista da FASE.
[2] O minhocuçu pode chegar a medir cerca de 60 cm de comprimento e 1,2 cm de diâmetro. Esse animal areja o solo fazendo verdadeiras galerias.
[3] Contrapartida paga pelas empresas mineradoras à União, aos Estados, Distrito Federal e Municípios pela utilização econômica dos recursos minerais em seus respectivos territórios.