11/03/2021 19:44
Jorge Eduardo S. Durão¹
Impossível analisar a reviravolta política desta semana sem misturar emoções e reflexões. Já o impacto da decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), de anular as sentenças contra Lula, seguida dos votos de Gilmar Mendes e Lewandowski condenando a quadrilha de Curitiba, seria suficiente para deixar de alma lavada as pessoas comprometidas com o Estado democrático de direito. Mas o discurso do ex-presidente Lula só pode ser analisado com o necessário rigor, se os democratas que se propuserem a analisá-lo fizerem um trabalho prévio de lidar com as vastas emoções suscitadas pela extraordinária performance do velho guerreiro em sua volta à cena, sob pena de, parodiando Rubem Fonseca, sucumbirem aos pensamentos imperfeitos.
No que me diz respeito, faço questão de expressar a emoção e a alegria de ver novamente a cena política brasileira ocupada por um ser humano capaz de expressar sua empatia pelos milhões de brasileiros que sofrem. Alegria também pelo fato de, pela primeira vez nos últimos anos, me sentir tomado por um verdadeiro sentimento de esperança. Lula soube também verbalizar a nossa raiva contra o presidente imbecil e criminoso sem alimentar o discurso do ódio. Comunica-se de maneira inigualável com os brasileiros de todas as classes sociais. Confesso que, momentaneamente, essas emoções positivas relegaram para um segundo plano todos os anos de revolta e indignação que vivi em decorrência das políticas de conciliação e do papel dos governos do PT na gestão do capitalismo brasileiro.
Agora, ciente das minhas próprias emoções, e apostando que Lula conseguiu tocar o coração de muitos de seus adversários políticos (basta ver, aliás o tributo prestado ao homem e ao estadista por Rodrigo Maia), acho preciso fazer uma primeira reflexão. Na entrevista que se seguiu ao seu discurso, Lula disse que não sabia responder à pergunta sobre por que, só agora, quatro anos depois, o ministro Edson Fachin tinha decidido aceitar a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba, pedida pela defesa de Lula. Essa questão exige uma resposta que vá além das motivações subjetivas de Fachin e da hipótese de uma tentativa mal sucedida de entregar os anéis para salvar os dedos, isto é a Operação Lava-Jato. A meu ver, o pano de fundo dessa decisão e da provável declaração pela 2ª turma do STF da parcialidade de Sergio Moro é a necessidade, ora reconhecida pelo STF e por outras instituições, de zerar o jogo político, ou pelo menos de restabelecer um mínimo de equilíbrio de poder entre o “campo democrático” (nele incluídos setores da direita) e o projeto autoritário de Bolsonaro. É bom lembrar, que recentemente Fachin foi humilhado e desafiado publicamente pelo general Villas Bôas, que declarou sarcasticamente que o ministro havia demorado três anos para criticar a sua interferência no julgamento do habeas corpus de Lula em 2018.
A hipótese que formulo a partir disso é a seguinte: mais uma vez, as elites brasileiras, em meio a uma crise política e de hegemonia indisfarçável, e aparentemente sem saída, precisam chamar de volta ao proscênio o único líder político brasileiro “capaz de, com seu poder alquímico, por um momento apagar as contradições” (Eliane Brum). A volta de Lula ao jogo político, acenando mais uma vez com a bandeira da inclusão – descartada qualquer veleidade de contestação do capitalismo brasileiro – abre caminho para uma saída gradual e menos conflitiva para uma conjuntura dominada pela tragédia da pandemia e do desemprego, pelo desamparo social de grande parte da população, sob a égide de um governo perverso, contexto esse potencialmente explosivo.
Apesar de bem recebida pela mídia e aparentemente bem assimilada pelo “mercado”, a volta de Lula ao protagonismo político não poderá contornar as contradições em que esbarra o seu projeto político para a “Nação brasileira” (expressão caída em desuso nos últimos anos). Ao falar da “loucura dos empresários”, Lula ignora (taticamente?) o caráter parasitário e predatório da burguesia brasileira. Parece ter esperança de que a mesma classe que deu o golpe de 2016 para esmagar a força de trabalho e desconstruir os direitos trabalhistas e previdenciários venha a apoiar o seu projeto de crescimento econômico para o qual “é preciso que o povo tenha emprego, renda e que viva com dignidade”. Quando mencionou “a safadeza daqueles empresários para quem Guido Mantega liberou R$ 500 bi de desoneração”, esqueceu de dizer que sua sucessora, Dilma Roussef, autorizou essa desoneração porque embarcou na canoa furada da FIESP que depois nada investiu, sabotando a política de desenvolvimento industrial do governo Dilma. Lula se vangloriou de que a produção da indústria automobilística no seu governo era de 4 milhões de veículos e agora está reduzida a 2 milhões. Será esse o desenvolvimento de que necessita a sociedade brasileira? Lula expressou o seu respeito pelo agronegócio (dado o seu avanço tecnológico). Como Lula reeleito enfrentaria os ruralistas que tomaram o freio nos dentes na era Temer / Bolsonaro e não estão dispostos a respeitar as exigências básicas do processo civilizatório? Como lidaria com o “mercado” cuja expectativa é a apropriação dos bens comuns e das empresas públicas na bacia das almas – o único mercado realmente existente? Por último, como lidaria Lula com as necessidades e demandas represadas de milhões de brasileiros, cujo sofrimento decorrente da pandemia, do desemprego e da falta de renda, ele tão bem compreende e verbaliza com rara sensibilidade?
A pergunta que não quer calar é: haverá espaço na sociedade brasileira (racista, violenta, com uma classe dominante de matriz escravocrata) para um projeto de desenvolvimento capitalista voltado para o atendimento das necessidades da população – uma economia centrada no investimento em saúde, no cuidado, em educação e transporte coletivo, na defesa e valorização do meio ambiente, focada no enfrentamento das desigualdades, na erradicação do racismo estrutural? Que futuro tem a luta pela libertação social e política do povo brasileiro fora da luta estratégica contra um capitalismo que perdeu o bonde da história?
Por último, mais um elemento de incerteza. Com sua visão de estadista, Lula, já na parte inicial do discurso, enfatizou sua estatura internacional, o reconhecimento de que goza da parte de muitos líderes mundiais e sua compreensão da relevância da inserção mundial do Brasil. Podemos sonhar com um contexto internacional que abrisse milagrosamente as portas para a recuperação da economia brasileira e a reconstrução do país. Um desenvolvimento a convite, com foco na preservação da Amazônia e no reatamento dos laços com as grandes potências. É pouco provável, porém, que isso aconteça num contexto em que os EUA estão voltados para a própria reconstrução, depois de terem jogado pesado (com Moro e Cia.) na destruição das empreiteiras brasileiras e no controle do petróleo nacional. Quanto à China, é de se duvidar que possa estabelecer alguma relação com o Brasil que vá além de lhe reservar o papel semicolonial de importante fornecedor de produtos primários.
Assim como fomos surpreendidos pela anulação das sentenças de Curitiba, temos de estar abertos para a imprevisibilidade do processo histórico, sem perder de vista o fato de que Lula passou nos últimos anos por um duro processo de reflexão e reavaliação da sua trajetória e dos atores políticos com que se defrontou. Assim como Vargas, em 1951, não era mais o mesmo que foi apeado do poder em 1945. O Lula de hoje, certamente não é mais o mesmo cujo ostracismo político foi posto em prática a partir de 2016.
[1] Assessor nacional da FASE.