31/03/2014 19:05

Nestes dias que antecedem o quinquagésimo aniversário do golpe civil-militar que derrubou o regime de democracia restrita inaugurado em 1946, assistimos a uma proliferação de debates e questionamentos acerca do significado dos acontecimentos de 1964 e da ditadura, que expressam, por um lado, saudável esforço de recuperação da memória histórica e, por outro, a disputa, aberta ou insidiosa, acerca do significado da crise social e política que encontrou o seu ápice no governo João Goulart e da ruptura institucional que foi o seu desfecho. Chama a atenção o fato de que cronistas da ditadura militar de discutível independência frente aos próceres do regime se empenhem ainda hoje em borrar as diferenças entre aqueles que foram derrotados em 64, defendendo o regime democrático, e os políticos que promoveram o golpe na vã esperança de afastar os seus concorrentes das futuras disputas eleitorais. Essas tentativas de escamotear a verdade histórica reforçam a nossa percepção da importância da matriz autoritária nas disputas políticas no Brasil atual.

Parte do balanço dos 50 anos é feito por órgãos de imprensa que se lançaram de corpo e alma na promoção do golpe e na sustentação da ditadura e que agora, tendo feito ou não a sua autocrítica (como O Globo pretende ter feito), se empenham em esquadrinhar as responsabilidades de cada instituição e segmento da sociedade no apoio à ditadura, como se, ao evidenciar a “culpa” dos outros, fosse possível atenuar a sua situação na “dosimetria” das penas a serem aplicadas pelo julgamento da História.

Ao se manifestar sobre os 50 anos do golpe de 1964, a FASE não pode se abster de refletir sobre a sua própria trajetória institucional, como entidade que nasceu em 1961 no âmbito da Igreja Católica e que, até 1964, vivia ainda um processo de consolidação através das obras sociais ligadas à Igreja Católica. Como todos sabem, a igreja transitou do apoio ao golpe para uma diferenciação de posições no episcopado e clero católicos que lhe propiciou um papel relevante na resistência democrática. Ainda “na virada dos anos 1960/70, tempos de endurecimento do regime militar, a FASE transitava por terrenos nada clandestinos na sociedade e suas alianças forjavam-se nas camadas altas e médias através de doações individuais e empresariais, nos órgãos do governo, da Igreja e, internacionalmente embora já houvesse um ou outro projeto financiado por entidades de origem diversa, na ação filantrópica dos Estados Unidos, comprometida por sua vez com as políticas governamentais estratégicas desse país para a América Latina” . Se o trabalho de “desenvolvimento comunitário” então desenvolvido pela FASE ainda não incomodava o regime, já nesse período alguns dos seus técnicos foram presos e torturados, como aconteceu no Rio de Janeiro e no Espírito Santo. Nos anos seguintes, a FASE adotou outras orientações teóricas, ideológicas e metodológicas e foi mudando sua direção, composição de pessoal, e alianças na sociedade brasileira e internacionalmente. Nos anos 70 a FASE volta-se para a conscientização e a organização popular (educação popular), apoiando a reorganização dos sindicatos no campo e na cidade. Contando com o apoio da ala progressista da Igreja na luta contra o autoritarismo, a FASE como instituição foi alvo, nos anos 70 e início dos anos 80, de várias investidas da repressão, principalmente nas áreas rurais em que atuava, tendo contado em diversas ocasiões com o respaldo decisivo da CNBB.

A continuidade institucional da FASE por mais de 50 anos lhe confere a possibilidade de partir de sua própria experiência para analisar com uma perspectiva histórica para esse meio século de vida brasileira, o que nos leva a concordar com aqueles que afirmam, citando as palavras do sociólogo Léo Lince, que “o ‘constructo’ autoritário de 64 foi expressão de uma matriz que continua viva. Assim como continua vivo, no polo oposto, o contraponto radical da resistência democrática ao autoritarismo” .

Não se trata evidentemente de negar a profundidade das mudanças na sociedade brasileira decorrentes do processo de modernização autoritária promovido pela ditadura, contrariando inclusive interesses de setores conservadores que tinham apoiado o golpe de 64. Pelo contrário, trata-se de perceber que a modernização autoritária reconfigurou a sociedade brasileira em benefício do grande capital, redimensionando os problemas e aprofundando, de forma perversa, muitas das contradições que já dilaceravam a nossa sociedade antes de 1964.

Tomando como referência as causas para atuação da FASE, se olhamos, por exemplo, para a causa do direito à cidade com justiça socioambiental, sem esquecer que antes do golpe o presidente João Goulart já incluía a reforma urbana entre as bandeiras do seu governo, nos deparamos com as consequências do brutal processo de urbanização promovido pela ditadura e pelo agravamento incessante da situação das cidades no país, sempre subordinadas aos ditames dos processos de acumulação de capital, culminando com as políticas dos últimos governos que resultaram no inferno urbano denunciado pelas manifestações de junho de 2013.

O mesmo se pode dizer com relação ao domínio do agronegócio, esse latifúndio reciclado pela ditadura, que goza de toda sorte de privilégios e do apoio incondicional de todos os governos desde a ditadura, inclusive daqueles que chegaram ao poder num longo processo de acúmulo de forças – com o apoio dos movimentos sociais do campo – na luta contra o autoritarismo e através da crítica do modelo de desenvolvimento imposto pelo regime militar. Como acontecia na ditadura, os ruralistas continuam atuando desabridamente no desmonte da legislação ambiental e no ataque aos direitos dos indígenas, enquanto o Estado se revela incapaz de preservar esses direitos e o governo esvazia a FUNAI.

As práticas governamentais atuais, na imposição de um modelo de desenvolvimento ambientalmente insustentável e socialmente injusto, trazem as marcas da cultura política nacional estatista que é a ideologia hegemônica desde a era Vargas, inclusive na ditadura militar. Confrontamo-nos ainda com o autoritarismo da imposição dos grandes projetos às populações atingidas nos territórios, sujeitas aos processos de expropriação de suas terras, dos recursos naturais e dos bens comuns, pelas empresas de mineração e outros grupos econômicos.

As recentes conquistas da sociedade brasileira no sentido de reverter a brutal desigualdade e a concentração de renda promovida pela ditadura não foram suficientes para colocá-la num patamar de igualdade superior ao que havia em 1964: 50 anos depois o Brasil conseguiu voltar a um índice de Gini (que mede a desigualdade) igual ao de 1964.

Tudo isso – e não podemos esquecer a violência cotidiana resultante da permanência da política militarizada de segurança da ditadura vigente – só pode ser compreendido à luz do processo nada radical de transição negociada que fez com que até hoje os governos democráticos se mostrassem incapazes de erradicar o entulho autoritário – para não falar da punição dos agentes dos crimes da ditadura -, que faz com que líderes políticos da ditadura e oligarquias regionais como a que domina o Maranhão permaneçam como verdadeiros árbitros da política dos “governos progressistas” e fiadores da sua base de sustentação política.