05/07/2010 21:27
O Brasil acompanha com pesar e solidariedade os desdobramentos da catástrofe que se abateu sobre Pernambuco e Alagoas com as últimas enchentes. Não é a primeira vez. Há 10 anos ocorreu o mesmo e esta tende a não ser a última.
A grande região da Zona da Mata, na confluência desses dois estados, se viu diante de uma violenta situação de destruição, mortes e desabrigo, e agora terá pela frente doenças e recomeço para gerir. Sim, recomeço, pois seu passado colonial agrário-exportador e escravocrata marcou um encontro a partir de Pernambuco – em meio à catástrofe ambiental e social – entre as heranças de um modelo de desenvolvimento monocultor e sucroalcooleiro e sua atual condição de rede de quase cidades espraiadas na proximidade metropolitana, quase periurbanas, muito precárias, facilmente varridas pelas chuvas, situadas entre o agrário conflitivo e as tentativas de cidadania pela própria força de sua gente, que agora está obrigada a se lançar ao princípio das coisas e a começar do zero.
Esse encontro das águas, chamado enchentes, provou o tamanho da fragilidade em que se encontra uma população compactada pela ausência histórica da ação do Estado, tal qual estão terras, impermeabilizadas pela secular atividade canavieira lá praticada. É uma população assoreada nos seus direitos tal qual as margens de rios que agora reclamam seus leitos. Esse encontro das águas apelidado pela versão oficial de “tsunami fluvial” mostrou também, até certo ponto, o quão servil e dependente das vicissitudes do Estado assistencial se encontra a vida dos “de baixo”, e o quanto de vassalo esse mesmo Estado ainda é da iniciativa privada dominante, esta em permanente estado pré-falimentar, mas ainda detentora do espólio colonial canavieiro, e agora inacreditavelmente candidata a impulsionar as atividades ditas preservacionistas que as opções do desenvolvimento “limpo e sustentável” lhes fomenta como sobrevida.
Logo se vê que não se pode mirar a tragédia apenas pelo ocorrido nas semanas passadas, mas pelo que veio se constituindo de muito tempo de ausências e negação. Explicaremos melhor: na Zona da Mata, o fator da vulnerabilidade social e ambiental tem raízes históricas, o que já não é pouco. Mas ainda hoje sua população padece da ausência substantiva do Estado (e de suas políticas) porque historicamente sua meta de cuidado é o setor canavieiro, homogêneo, e não a população e a região na sua diversidade socioambiental. Nós da FASE acompanhamos, até com certa crença, muitas tentativas de projetos governamentais imbuídos de diretrizes de desenvolvimento sustentável e de democracia em seu processo de gestão. Conselhos, comitês de bacias hidrográficas e até mesmo um rol de políticas públicas de caráter compensatório mereceriam lugar neles, o que foi acreditado pela população em termos de participação. Mas, a cultura secular e patriarcal do domínio privado logo se encarregou de esvaziar intenções e rumos de ampliação das esferas públicas para reconduzi-los às esferas privadas, eleitorais ou não. Teme-se por seu retorno no processo de reconstrução da região. É sempre bom lembrar que estamos em período eleitoral e que a grita geral dos gestores de plantão tem sido para fazer desobstruir as amarras burocráticas de liberação de recursos federais frente à catástrofe.
É nesse caldo de coisas que a catástrofe se abateu. Poderia ser diferente se os governos sucedâneos tivessem levado em consideração as proposições apresentadas pelas organizaçoes sociais, em audiências públicas ocorridas nos municípios da Mata Sul de Pernambuco, quando da enchente do ano 2000. Sugestões simples e até óbvias do ponto de vista técnico encabeçaram muitas falas e documentos formulados e entregues às autoridades da época. Elas iam desde a realização de obras de prevenção em áreas de riscos, contenção de encostas, desassoreamento, plantação de mata ciliar nas margens de rios, dentre outras, até orientações técnicas para construção de casas em áreas distantes de rios, revisão das opções por construção de barragem e/ou transposição de rio, assim como proposições de reabertura de braço de mar em foz de importante rio da região. Associado a essas proposições, também foi empreendido um amplo esforço de controle e transparência sobre os recursos públicos então aportados para o enfrentamento da catástrofe do ano 2000. A lembrança disso tudo é que, em Pernambuco, pouco ou quase nada foi levado em consideração pelas autoridades públicas, e agora a tragédia se repete com mais vigor. Segundo o jornalista Leandro Kleber (Contas Abertas), o governo federal, através do Ministério da Integração Nacional, ainda que se apresente dizendo que não faltará recurso público para enfrentamento do pós-enchente, fez a sua parte antes da tragédia: em 2010, repassou zero de verbas para ações de “prevenção e catástrofes climáticas” para Alagoas e menos de 1% (R$ 172,2 mil) da mesma rubrica para Pernambuco. Já para a as ações do Programa de “resposta aos desastres de reconstrução”, ou seja, para depois que se abate a tragédia, os dois estados receberam juntos quase 25 milhões de reais, o que representa apenas 5% de todos os recursos repassados para os estados de todo o país, em 2010. Para quem domina, antecipadamente, informações privilegiadas sobre a meteorologia e seus fenômenos cíclicos, pode-se inferir que o senso de alerta e de antecipação a desastres dos governos está falido.
E a sociedade civil organizada, como se vê nisso tudo? Quem atua ou atuou na região da Zona da Mata pernambucana nos últimos 10 anos, para dar um exemplo, viu todo o fruto de seu trabalho ser levado pela água, pois ela atingiu a altura de mais de 13 metros nas principais cidades da região, o que diz do tamanho de sua força. Neste sentido, essas organizações também se encontram impelidas a começar do zero, se assim lhes for permitido esse tipo oportunidade e cooperação. Ademais, com um esforço de agir solidária e humanitariamente no contexto emergencial, essas organizaçoes agora se voltam para recompor apostas e crenças de que a justiça climática ainda poderá ser feita com o que resta de horizonte de curto e médio prazos. Basta dizer do ato de constituir um Comitê de Solidariedade, de quem se espera tudo recomeçar. Quanto ao longo prazo, esse desatino será do tamanho da força da sociedade civil organizada na radicalização da democracia, para que o atual modelo de desenvolvimento seja apenas uma lembrança do passado.