17/02/2014 16:13
Aercio de Oliveira (FASE-Rio)
Sim, é lamentável a morte do cinegrafista Santiago de Andrade. Mas além do fato em si, é lamentável o conservadorismo que emerge de todos os lados no ano em que o golpe militar completa 50 anos. Parece que não é suficiente aplicar a lei vigente que garante ao Estado exercer o monopólio da força. Compatível com a nossa história escravocrata, marcada por golpes e contragolpes, que ajudaram a amalgamar nosso ethos societário, de quase todos os pontos do espectro político ecoa com diferentes tonalidades o autoritarismo e análises binárias sobre os fatos envolvidos na morte do Santiago.
Caso exemplar de conservadorismo temperado com pragmatismo eleitoral foi a postura de alguns senadores ao defenderem o projeto de a lei 499 – para combater o “terrorismo”; em tempo, o PT e o ministro da justiça Eduardo Cardozo recuperaram a luz da razão e se pronunciaram contra esse projeto de lei; outros parlamentares de partidos radicais de esquerda e muitos intelectuais do campo democrático, ao tratarem das manifestações em que ocorreu o acidente fatal, parecem sofrer de anemia analítica. Os primeiros parecem optar pelo cálculo eleitoral, enquanto que os segundos parecem viver tomados pelo idealismo hegeliano ou mesmo pelas práticas pacifistas de Gandhi. Ambos seguem a voz do povo, pois as eleições se aproximam. Dos partidos de direita, da grande mídia, não há o que falar. Para esses, tudo deve ser aproveitado para alimentar o conservadorismo, para criminalizar os movimentos sociais. Estão sempre distantes de um jornalismo preocupado em contribuir com aqueles que pretendem construir uma opinião a partir de informações e análises confiáveis.
Dentro desse contexto, predomina a análise rasa e tendenciosa. Quem tem mais poder prevalece. Passamos a ouvir um discurso despolitizado de paz, de não violência, do restabelecimento da ordem, etc. É fato, a história tem centenas de exemplos, que a violência está sempre próxima do niilismo. Do mesmo jeito, o extremismo, de esquerda ou de direita, está próximo do totalitarismo. Pois bem, são raros os casos de manifestação contra uma instituição estatal ou contra determinada posição política de um governante que não tenha algum nível de violência. Quem participou da redemocratização, das greves gerais e na luta contra as privatizações nos anos 90 sabe muito bem do que falo (objetos para furar os pneus dos veículos – os miguelitos, para-brisas de ônibus quebrados, trânsito paralisado, ônibus e pneus queimados). Ou atualmente, quem luta em movimentos como o dos Sem Terra ou o dos Sem Teto que utilizam meios violentos como autodefesa. O que podemos esperar nos dias atuais, em que na política, cada vez mais, as palavras perdem sentido e correspondência com fatos? Qualquer agente político de algum partido de esquerda ou de direita fala em republicanismo, socialismo, que quando ganhar tudo será diferente. Ao mesmo tempo, temos uma polícia que não para de nos mostrar, através de bala de chumbo ou de borracha, que a violência institucional, infelizmente, é constitutiva do Estado brasileiro (a escravidão deixou marcas indeléveis).
Parece-me razoável ver a violência como sintoma de um tempo em que a política tem respondido limitadamente as demandas sociais. É assim que aparece a violência em qualquer canto do mundo – no Ocidente ou no Oriente. A força argumentativa só flui quando há confiança entre os interlocutores, entre a relação dos agentes da sociedade civil e as instituições que estruturam o Estado e o sistema político. Ela só fluirá com baixo atrito se o acordado for cumprido. Mesmo o filósofo alemão J. Habermas, que desenvolveu exaustivamente a teoria do agir comunicativo, acusado de idealista e ingênuo, adjetivos que os considero imerecidos, sabe dos limites da força do argumento e que diante da sua impossibilidade ou bloqueio tende a gerar um estado de anomia. Quando as coisas vão mal dentro da estrutura política se procura outras maneiras de ser escutado, de manifestar uma posição. Nem sempre gritar, jogar pedra, quebrar o patrimônio público e privado são ocorrências agradáveis para os envolvidos. O quadro complica mais, quando uma das partes não quer dialogar com as instituições ou os representantes do Estado. Fato que exige um esforço analítico e prático ainda maior. Lembremos que no meio dessas manifestações estão os que não apostam um centavo furado nas estruturas e instituições atuais, que só “servem para manter a reprodução do sistema capitalista”. Todas as manifestações ocorrem em um momento cujas organizações partidárias estão afundando no Brasil e no mundo. Ninguém aguenta mais ver grupos econômicos darem o tom, transformando políticos eleitos em verdadeiros títeres – e o pior é que são poucos os que estão fora dessa condição de subserviência. Aliás, sejamos francos, o sistema eleitoral impossibilita licitudes. O sistema político parece estar desconectado do “mundo da vida”. Basta ver como os governos tocam as obras para a Copa e para a Olimpíada.
O desrespeito contra os pobres manifesta-se de tudo que é jeito – quem tiver dúvida sobre o que falo pegue o trem ou o metrô durante uma semana. Só uma semana, não precisa mais do que isso para conhecer na prática como tratam o povo. Há momentos que os governadores e a presidenta da república nos tratam como idiotas. A população também não ignora os feitos de mais de quase doze anos da era Lula-Dilma (aumento do poder de compra do salário mínimo, bolsa-família, luz para todos, “Minha Casa, Minha Vida”, e outros programas com suas infindáveis imperfeições, mas geradores de impacto numa sociedade tão desigual). Só que as pessoas, especialmente os jovens, que não sentiram com a vivacidade juvenil a ditadura militar, a inflação galopante, o arrocho salarial, o desemprego, querem mais. Querem muito mais. E como o próprio Lula afirmou, nesses quase 12 anos a capacidade crítica e os meios para criticar ampliaram. Os jovens parecem cansados de ver o sistema financeiro faturar bilhões, ver outros jovens serem assassinados pela polícia, ver serviços públicos funcionarem precariamente e testemunhar tanto cinismo na política. Ninguém espera que a política seja realizada por anjos ou seres imaculados, mas “tá muito né?”
Não é meu objetivo defender a violência. Mas seria desonesto da minha parte, ignorar que em determinadas circunstâncias a violência emerge na sociedade, mesmo que localizada, para mostrar que as coisas não vão bem. É bom lembrar que o próprio Gilberto Carvalho (ministro do governo Dilma) afirmou com contundência, há poucos dias, em uma mesa no Fórum Social Temático, que as coisas precisam mudar. Peço licença aos meus amigos e amigas que abominam o funcionalismo, mas utilizarei uma imagem compatível com essa descrição sociológica: a violência é como a febre que indica que o corpo não está bem.
Portanto, Data Venia senadores, não precisamos de mais leis. Aliás, nosso país está afogado em leis. Bastaria cumpri-las. Teríamos provavelmente o paraíso na terra, sem Deus. Mas não precisamos ser devotos de K. Marx para entender que a lei tem relação umbilical com o poder político e econômico, principalmente no Brasil. Precisamos recuperar os meios e canais de se fazer política; precisamos enfrentar as questões estruturantes que inibem o enfrentamento da desigualdade de maneira mais veloz (reforma agrária, reforma tributária, repactuação da dívida mobiliária, aplicar a ciência para outro tipo de desenvolvimento que não mire no desenvolvimento decadente da Europa e dos EUA).
A sociedade brasileira precisa aprender a conviver com o dissenso que aparece nas ruas e identificá-lo como essencial para a vitalidade da democracia. O Estado, com suas instituições, precisa se preparar para enfrentar momentos e episódios violentos sem violar os princípios basilares de um Estado Democrático de Direito – esse Estado não pode ser uma eterna ficção. Deveríamos aproveitar esses eventos, as manifestações, para travar um amplo debate sobre o funcionamento das nossas instituições, se queremos seguir esse tipo de desenvolvimento, seguir enfrentando as desigualdades socioeconômicas homeopaticamente etc. E ao contrário do que muitos “profetas” afirmam, as manifestações seguirão ocupando a cena pública até o último jogo da Copa, com Black Blocs ou não. Apropriar-se caricatamente do que Bush fez nos E. U. A, após a destruição das torres gêmeas, com as infames leis e medidas de combate ao terror, só amplia o nosso mal estar e agudiza a descrença em nosso sistema político.