02/02/2023 17:44

*Aércio Barbosa de Oliveira

Desde o impeachment da Dilma, em 2016, um espectro ronda a sociedade brasileira: o golpe militar. Nas contas do cientista político Antonio Lavareda, incluindo a intentona neofascista do dia 8 de janeiro de 2023, tivemos 13 investidas golpistas após a “Independência”¹. Dessas 13, algumas foram bem-sucedidas e outras tantas serviram para conformar a crença, entre muitos militares, e, hoje, também entre extremistas reacionários, de que às Forças Armadas, especialmente ao Exército, é conferido o “Poder Moderador”, o papel de grande avalista da República Federativa do Brasil.

Com Bolsonaro na Presidência, Mourão (ex-vice-presidente e agora Senador), Braga Neto (militar reformado que ocupou a posição de candidato a vice-presidente na chapa do Bolsonaro na eleição de 2022), General Heleno e mais os milhares de militares nomeados no Governo Federal, entre 2019 e 2022, todo brasileiro, minimamente informado e defensor da democracia, mesmo que a considere de meia-tigela, ficou em estado de ansiedade crônica e muitos adquiriram patologias psíquicas graves. A ameaça de golpe, de total estrangulamento da democracia, era diária.

O Messias, para os reacionários, que livraria o país do comunismo, asseguraria a moralidade, a ordem e os bons costumes, o salvador, para os neoliberais, que queria ampliar seus lucros, fez de tudo para acabar com a democracia brasileira e garantir o poder absoluto seu e dos seus familiares, com o apoio das Forças Armadas e, de quebra, da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal. Porém, Bolsonaro, que na eleição de 2018, contou com amplo apoio das instituições públicas e privadas, da mídia corporativa, passou a se distanciar daqueles chamados, pela grande imprensa, de democratas liberais, para abraçar os setores do garimpo ilegal, do agronegócio que desmata e ajuda no etnocídio, entre outros agentes criminosos.

A direita liberal e parte da direita conservadora imaginavam que Bolsonaro faria o serviço de garantir ganhos para a marginalidade que sempre funcionou acima das leis (muitas, chamadas de pessoas do bem) e aqueles que querem lucros e mais lucros, mas sempre escudados pela lei. Estes não imaginavam que Bolsonaro colocaria o Brasil na condição de um país inexpressivo na política internacional, e em dificuldades nos negócios da economia doméstica. Não contavam com a sua capacidade para destruir e, no mínimo, desorganizar o Estado brasileiro. O efeito desse desatino democrático e institucional, que nos levava para condições anômicas, colocando em risco o funcionamento da economia de um país com um grande mercado consumidor, com um Estado de estrutura densa e complexa, com seus interesses corporativos, com um sistema financeiro sofisticado, abalou diferentes setores da sociedade brasileira e internacional. Trabalhar para impedir a reeleição de um presidente insano, estúpido e ignorante foi a meta, de forma patente ou latente, aqui no Brasil e no mundo. Na esfera internacional só mesmo governos reacionários, que corroem a democracia em seus países, que não queriam ver Lula eleito pela terceira vez.

Para a direita, o mal necessário

Uma pequena digressão: acontecimentos políticos, sociais e econômicos, quase sempre, resultam de sobredeterminações. Reconheço, portanto, que estou sendo, esquemático, incapaz, por questão de espaço, de detalhar algumas das determinações que destaco. Não obstante, me parece que não está de todo errado inferir que a vitória de Lula, pelo quanto ela mobilizou, resulta de uma tentativa, também de setores da direita, neoliberais, de conservadores, agentes econômicos etc. de conter o avanço do estrago iniciado pelo governo Bolsonaro. Reparar uma aposta errada e contar com o que está à mão, digamos. Esteve notório, para o mundo orgânico e inorgânico, que não havia outra candidatura capaz de conter a reeleição do exterminador do presente, do futuro e do passado.

Não completamos 45 dias de governo Lula e vimos o quanto os diferentes segmentos da sociedade se movimentaram, na busca de realinhamentos para estabelecer um Estado diferente do anterior, tão instável e deletério. Um exemplo disso, no âmbito internacional, foi o dia da posse de Lula, quando tivemos várias delegações de governos de diferentes continentes. Estados Unidos da América, China, Alemanha, França etc. se mostraram ávidos para voltarem a fazer negócios com o Brasil num ambiente político menos instável, sem riscos de se estabelecer o caos econômico.

Com a intentona neofascista, Lula se fortaleceu como o principal “timoneiro” da democracia brasileira e, talvez, do mundo. Por aqui, conseguiu colocar na mesma sala 27 governadores para defenderem a democracia, logo após o dia 8, e repetiu o ato, no dia 27 de janeiro, para repactuar a relação com os estados; intensificou o diálogo com os três Poderes da República. De quebra, a intentona fez com que o presidente Lula fugisse do script de conciliador, e endurecesse com o comando das Forças Armadas. Demitiu o comandante do Exército antes deste completar 30 dias no posto. E, ao ir às terras ianomâmis, em Roraima, para enfrentar uma tragédia humanitária provocada pelo governo genocida de Bolsonaro, colocou as Forças Armadas para trabalhar – auxiliando na ajuda humanitária e defenestrando garimpeiros que estão ilegalmente nas terras indígenas.

Os cães ladram, mas a caravana passa

É importante que a gente, principalmente os movimentos e organizações sociais de esquerda, as instituições democráticas, continuem vigilantes, atentas e mobilizadas para garantir a democracia, ainda que a consideramos minimalista, mas, hoje, é ela que temos. Helenos, Bragas Neto e tantos prosseguirão sonhando, confabulando, arquitetando golpes, seja para conter o comunismo, garantir a lei e a ordem, etc.; a extrema-direita seguirá fazendo muito barulho; pessoas nos poderes legislativos, no sistema de justiça, alguns poucos governadores, líderes religiosos fundamentalistas continuarão a se movimentar para levar o Brasil, quem sabe, até para uma teocracia, para acabar com o Estado de Direito. No entanto, as condições para golpe parecem, no momento, distantes. O ambiente nacional e internacional é extremamente desfavorável. Sem ignorar a importância das Forças Armadas, é recomendável seguir os movimentos de agentes dessas instituições, procurando compreender seus movimentos. Mas precisamos colocar no centro outras tarefas e agendas.

Devemos dar atenção a construção de meios para garantir que o governo Lula atenda as demandas sociais, como o fim da fome, a redução do déficit habitacional, a redução da desigualdade social; que o governo volte a investir em infraestrutura urbana, que se faça uma reforma tributária pautada pelo princípio da progressividade; contribua para que se estabeleça em nossa sociedade uma cultura política cidadã ativa e crítica.

Não é possível que se repita resultados de pesquisas como aquelas feitas durante o período de 2003-2014, em que a maioria dos jovens entrevistados, ao serem perguntados a quem atribuíam a conquista de mobilidade social, do ingresso na universidade etc. respondeu “foi o meu esforço pessoal e/ou Deus”. Precisamos conter o avanço do agronegócio que se autointitula “sustentável”, que visa mercantilizar ainda mais a relação de indígenas, povos da floresta e tradicionais com a natureza, para ampliar seus lucros; conter acordos multilaterais, por exemplo o da União Europeia com o bloco do Mercosul, que beneficiarão as grandes corporações em detrimento dos interesses de setores produtivos populares.

Aprendizados virtuais da luta real

Precisamos construir formas de estar presentes na infosfera, compreendendo que mais do que alimentar e acelerar o fluxo de informações, auxiliando na formação de opiniões, as plataformas digitais contribuem significativamente para as pessoas forjarem crenças profundas, de ver o mundo e de se ver de uma outra maneira. Não dá para pensar que a extrema-direita é composta apenas por hordas de loucos, lunáticos. No meio deles também tem isso, mas há alguma lógica ao avaliar os fatos com base em uma realidade cada vez mais caótica e complexa, com transformações aceleradas. A extrema-direita, além de incorporar em sua visão de mundo as chagas da nossa formação social – patriarcado, patrimonialismo e racismo –, lutar pelos seus interesses econômicos e por agendas de costumes reacionárias, detêm ressentimentos variados e, com certa razão, sentimento de desconfianças, no mínimo, das instituições científicas, políticas e das responsáveis por produzir informações.

Para nós, comprometidos com a educação popular, com as lutas sociais, e, para o governo Lula, um governo de reconstrução do Brasil, eleito com um amplo arco de aliança, há desafios gigantescos que mobilizam tantas forças sociais, que dificultam consideravelmente as intenções dos golpistas da caserna e a efetividade das intentonas reacionárias. O tempo exige muito trabalho e mobilização para impedir a volta de qualquer governante que ameace o Estado de Direito. Ao mesmo tempo, deve-se levar em conta declarações recentes, desavergonhadas, de John Bolton: “Como alguém que ajudou a planejar golpes de Estado, não aqui, mas, você sabe, outros lugares, isso dá muito trabalho. Não foi isso o que ele [Trump] fez”². Na ficha corrida de Bolton, além de ter ocupado o posto de conselheiro de segurança nacional dos EUA, no governo Trump, foi ex-militar, ex-diplomata, embaixador dos EUA na Organização das Nações Unidas, em 2005, trabalhou nos governos de Reagan, Bush pai e Bush filho. Não dá para subestimar o pensamento de um golpista com tamanha experiência.

*Aércio Barbosa de Oliveira é coordenador da equipe da FASE RJ.

¹Ver artigo Leniência Militar em 8 de janeiro lembra levante integralista de 1938 no link <https://antoniolavareda.com/ > – acessado em 01/02/2023.

²Para ver as reportagens na íntegra <https://www.cartacapital.com.br/mundo/ex-conselheiro-de-seguranca-dos-eua-admite-ter-planejado-golpes-de-estado/> ou <https://www.theguardian.com/us-news/2022/jul/13/john-bolton-planned-coups-donald-trump-january-6> – acessados em 02/02/2023.