28/02/2023 15:42

*Aercio Barbosa de Oliveira

“A cidade não para, a cidade só cresce

O de cima sobe e o de baixo desce”[1]

Novamente a maioria da população brasileira ficou chocada com a tragédia ocorrida na cidade de São Sebastião, localizada no litoral norte do estado de São Paulo, com 65 mortes. No ano de 2022, o Sistema Integrado de Informações sobre Desastres (CEMADEN) registrou 243 mortes e 200 desaparecidos provocados pelas chuvas. Caso se faça o necessário recorte racial, de classe, de gênero e etário desses óbitos, a injustiça e o racismo ambiental serão explicitados. Provavelmente essas vítimas ganhavam até 1,5 salário mínimo, eram negras, mulheres, idosas e crianças. As previsões do CEMADEN continuam assustadoras para 2023. O aquecimento do nosso planeta[2] produz impactos medonhos sobre o regime de chuvas, intensificando, dentro de intervalos mais curtos, secas e chuvas extremas. Mesmo que especialistas sejam cuidadosos e evitem estabelecer uma relação causal entre o ocorrido em São Sebastião e as mudanças climáticas, é inevitável que a façamos.

Em pesquisa lançada no final do ano de 2011, o IBGE anunciava que 50,7 milhões de habitantes vivam na região costeira do Brasil[3]. Muito provavelmente esse quantitativo aumentou. Já o CEMADEN, em fevereiro de 2022, apontava que 9,5 milhões de pessoas habitavam áreas sujeitas a deslizamentos, enchentes e alagamentos. Entre esses números, devemos acrescentar que 40% da nossa população vive em regiões metropolitanas, normalmente com grande densidade demográfica, conurbadas, com habitações de padrão construtivo precário, solo impermeabilizado e sem políticas públicas efetivas para enfrentar as mudanças climáticas. Para completar, carregamos um déficit habitacional perto de 6 milhões de unidades habitacionais[4].

Em um país com a desigualdade socioeconômica do tamanho da nossa, uma das maiores do mundo, não é difícil constatar que quem mais sofre os efeitos dos eventos climáticos extremos é a população negra, principalmente as mulheres e crianças, quase sempre os primeiros a sofrer os impactos dos desastres ambientais. Parte expressiva desta população mora em encostas, sujeitas a deslizamentos, ou em baixadas, próximas ou nas margens dos rios, sujeitas a alagamentos e enchentes, suscetíveis a contrair doenças de veiculação hídrica em função da falta de tratamento do esgoto. Muitas estão espremidas entre a serra e o mar, como é o caso da região metropolitana fluminense. Uma configuração geológica propícia para a ocorrência de eventos como o da Região Serrana, em 2011, em Petrópolis (RJ), no ano passado, e em São Sebastião (SP), durante o período do Carnaval de 2023.

Nossas cidades inóspitas contribuem para o aumento da vulnerabilidade de milhares de famílias que, historicamente, sofrem com a falta de uma política habitacional. Inexiste, na maioria das regiões metropolitanas do Brasil, políticas públicas apropriadas para mitigar e se adaptar às mudanças do clima. A natureza é cega e insensível para o descaso dos governos e das corporações, sobretudo as que agravam essa situação. A atmosfera, ao ter o seu movimento alterado pela emissão dos Gases de Efeito Estufa[5], produz uma convergência de fatores catastrófica, como foi o caso do ocorrido em São Sebastião: se encontraram uma frente fria vinda do Sul, a umidade deslocada do Norte do país, uma massa de ar úmida – que evaporou das águas do oceano Atlântico, mais aquecidas –, e um ciclone. Conjunções iguais ou próximas a essas, ao se chocarem com os paredões formados pelos morros característicos da Mata Atlântica, se desenlaçam provocando chuvas com volumes similares ao registrado no litoral Norte do estado de São Paulo – lá foram mais de 600 mm em 16 horas ininterruptas de chuva.

Muitas vezes, essas descrições e tantos números, como os supracitados, deixam na opacidade uma das principais dificuldades para reduzir os efeitos provocados pelas alterações disruptivas dos padrões climáticos nos centros urbanos, a saber, a questão fundiária. Evidente, ter bons planos de adaptação ao novo clima, alocar recursos para equipar tecnicamente a Defesa Civil dos munícipios, realizar obras de contenção de encostas, desassorear os rios e neles colocar mata ciliar, evitar que sejam retificados, tratar do esgoto, incentivar a prática da agricultura familiar e outras práticas semelhantes que criem cinturões verdes nos centros urbanos, instalar infraestrutura urbana adaptada às modificações do clima, como é o caso dos sistemas de drenagens, captação de água de chuva, reduzir a emissão de CO², entre tantas outras medidas, não serão suficientes se não se enfrentar o acesso à terra urbana, garantindo que as pessoas que ocupam a base da pirâmide socioeconômica brasileira morem dignamente.

Predominando a lógica que se estabeleceu no Brasil, desde sempre, em que as áreas mais adequadas à moradia se integram à dinâmica mercantil, quando o uso da terra fica para famílias abastadas, as tragédias climáticas só aumentarão e seguiremos a contar os corpos negros e pobres, que por falta de opção, até segundos antes das tragédias, viviam em construções precárias, nas encostas, nas margens do rios, com estrutura frágil, incapaz de se manter quando a terra umedecida pela chuva, inevitavelmente, desliza morro abaixo. Ou quando os rios, equivocadamente retificados, assoreados e sem mata ciliar, rapidamente transbordam e o fluxo veloz das águas arrastam o que aparece pela frente.

Quem desejar saber um pouco mais sobre o drama fundiário do Brasil, que se agravou ainda mais após, pelo menos, seis anos sem gastos públicos com programas habitacionais, conheça a página da campanha Despejo Zero[6]. São milhares de famílias que, com a precarização da renda, a pandemia da Covid-19 e o desemprego, ocupam imóveis privados e públicos, terrenos ociosos, que servem à especulação imobiliária. Portanto, já passou da hora, após mais uma tragédia, de se debater e enfrentar seriamente a questão fundiária urbana.

Medidas como a criação de um banco de terras para a produção de moradia popular em áreas adequadas, sob a responsabilidade do poder público de todas as esferas da federação; transformação de imóveis e terrenos públicos vazios, em áreas centrais das cidades, em moradias populares; produção de imóveis, pelo poder público, na modalidade de aluguel social; estabelecer Zonas Especiais de Interesse Social; criar programas, em ampla escala, para a melhoria de habitações populares em favelas e em bairros populares e a produção de moradias populares têm a possibilidade de democratizar o acesso à terra urbana, e contribuir significativamente para reduzir os desastres ocasionados pelas chuvas torrenciais. Além dessas medidas com impacto direito no uso da terra e na vida das pessoas, temos relevantes legislações que precisariam ser levadas a sério.

No artigo 41, inciso V, do Estatuto da Cidade, p. ex., determina que o plano diretor é obrigatório também para cidades inseridas na área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional. Esse instrumento tem conexão direta com os artigos 42-A e 42-B da lei n°12.608, de 10 de abril de 2012, que institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDC) e o seu sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil. Essa lei exige que os planos diretores de municípios incluídos no cadastro nacional de cidades, com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos, realizarem o mapeamento de risco, ações de intervenção preventiva e relocação de população de áreas de risco de desastre, prevenção e mitigação de impactos de desastres. Ainda temos a lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979, que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano. Esta lei foi produzida bem antes dos efeitos das mudanças climáticas ocuparem o noticiário diário e produzir tragédias em intervalos de tempo tão curtos. Em um de seus artigos e parágrafos encontramos, que “Não será permitido o parcelamento do solo: I – Em terrenos alagadiços e sujeitos a inundações, antes de tomadas as providências para assegurar o escoamento das águas; (…) V- Em áreas de preservação ecológica ou naquelas onde a poluição impeça condições sanitárias suportáveis, até a sua correção”. Se apenas as leis supracitadas fossem cumpridas, os efeitos das mudanças climáticas seriam menos dramáticos em nossas cidades.

O clima do planeta seguirá reagindo indiferente ao sofrimento dos pobres e à falta de coragem de governos em romper com políticas fiscais contracionistas. Essas são adotadas para garantir que o dinheiro público, oriundo da cobrança de tributos, dos lucros das empresas e bancos públicos, seja transferido para os endinheirados do nosso país e do exterior, ignorando os interesses e necessidades da maioria da população.

Cabe a nós, movimentos e organizações sociais, colocar a questão da terra urbana em destaque. Não basta ter boas leis – me parece que temos o bastante –, ou atualizá-las. Isso é o mínimo que se deve fazer.  O ponto, contudo, é romper com a lógica da produção das nossas cidades – mercantilização de tudo que está ao alcance de quem tem o capital – e radicalizar na execução de políticas públicas redistributivas de moradia e de infraestrutura urbana.

Pelo fato de ainda se seguir a lógica nefasta do capital imobiliário em nossas cidades e metrópoles, muitas famílias de tragédias anteriores, similares à de São Sebastião, não conseguiram ir para novas moradias, sempre prometidas após as tragédias. É essa mercantilização, nem sempre tão fácil de identificar e compreender, que faz com que famílias, enganadas e desapontadas, retornem ao que sobrou de suas casas destruídas pelos desastres, com a vulnerabilidade estrutural ainda mais agravada.

Então, repetindo: o acesso à terra urbana é uma questão primaria. É o xis da questão! Pouco adiantará, se as tantas outras medidas, sempre prometidas, forem executadas, e não se tratar da distribuição daquilo que produz nosso alimento, preserva o que mata a nossa sede e dá a base para construirmos nossa morada.

 

[1] Versos da música “A Cidade”, de Chico Science.

[2] A temperatura média na superfície da Terra aumentou cerca de 1,2 grau Celsius desde 1850.

[3] “Atlas geográfico das zonas costeiras e oceânicas do Brasil”, disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv55263.pdf

[4] Segundo cálculos da Fundação João Pinheiro, disponível em: https://fjp.mg.gov.br/deficit-habitacional-no-brasil/

[5] O aumento da emissão desses gases, que acentuam o Efeito Estufa, é provocado pelo desmatamento, emissão de CO², metano, óxido nitroso etc.

[6] Ver página da Campanha: https://www.campanhadespejozero.org/

*Aercio Barbosa é Coordenador da FASE-RJ e Assessor do Grupo Nacional de Assessoria da FASE Nacional.