27/03/2023 14:45
Maureen Santos, coordenadora do Grupo Nacional de Assessoria da FASE e membro da Frente contra o Acordo UE-Mercosul e EFTA-Mercosul
Thaís Bannwart, porta-voz de Amazônia do Greenpeace Brasil
Tatiana Oliveira, assessora política do Inesc e membro da coordenação colegiada da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip)
A possibilidade de um acordo comercial entre a União Europeia e os países do Mercosul, parte de um Acordo de Associação mais amplo, vem cada vez mais ganhando contornos de uma possível aprovação. No entanto, pouco está claro para a sociedade quais são os riscos de um livre comércio entre os dois blocos.
Em primeiro lugar, é preciso relembrar que esse acordo tenta ser costurado há mais de duas décadas, com momentos e velocidades distintas, mas partindo de uma lógica anacrônica que irá salientar ainda mais a crise climática e a desigualdade social. O acordo, nos termos negociados, prevê aos países sul-americanos a condição de subalternidade, sendo meros exportadores de commodities e matérias-primas, enquanto os países da União Europeia aumentam as vendas de produtos industriais e químicos de alto valor, ampliando ainda mais a entrada e o uso de agrotóxicos e de carros movidos à combustíveis fósseis no Brasil e nos outros países do Mercosul.
Foi durante o governo de Jair Bolsonaro, o governo mais antiambiental e antidemocrático desde a redemocratização, que os blocos chegaram a um consenso entre os termos atuais do acordo. Porém, a assinatura do mesmo foi adiada devido as críticas da sociedade civil de ambos os blocos com apoio de parlamentares frente às taxas alarmantes de desmatamento na Amazônia e da violência contra os povos originários e tradicionais, a exemplo dos impactos do avanço do garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami.
No entanto, a pressão para a assinatura do acordo entre a UE e Mercosul começou a ganhar mais tração com a mudança de presidência no Brasil. Representantes da União Europeia estiveram em Buenos Aires, no início de março, e se reuniram com os países membros do Mercosul, evento este sem muita cobertura por parte da imprensa nacional. Na ocasião, circulou uma proposta de protocolo adicional (ou side letter, em inglês) ao capítulo sobre Comércio e Desenvolvimento Sustentável (CDS) da parte comercial do acordo entre os blocos. Esse protocolo seria, do ponto de vista do bloco europeu, uma garantia adicional para a proteção ambiental nos países do Mercosul.
Obedecendo ao padrão da União Europeia de seguir com as negociações sem transparência e participação da sociedade civil, o protocolo gerou desconfiança e críticas, porque a ele é imputada a capacidade de destravar o acordo em relação aos países da UE que ainda possuem resistência, possibilitando, então, sua assinatura e ratificação, ao mesmo tempo em que foi apresentado sem sequer os países do bloco europeu terem conhecimento de seu conteúdo.
Representantes do Mercosul que tiveram acesso ao protocolo em Buenos Aires tiveram distintas percepções: o governo argentino saiu insatisfeito e a imprensa de lá criticou muito os termos do documento; do lado brasileiro, as opiniões são distintas, pois, se por um lado, alguns ministérios avaliaram aspectos positivos e o desejo de rever pontos específicos do texto, por outro, há ministérios bem preocupados com a falta de debate sobre o acordo como um todo, não somente dar opinião sobre o instrumento adicional.
Desde que o protocolo vazou, a sociedade civil brasileira e de países do bloco europeu vem denunciando o documento como um remendo muito débil ao capítulo CDS, já que não muda o fato de que o problema do acordo não é somente esse capítulo, mas sua natureza neocolonial e os impactos que poderão ser gerados com a liberação tarifária de bens que beneficiarão setores como a agropecuária e a mineração, aumentando o comércio de produtos prejudiciais ao clima e à natureza e que colocam em risco povos e comunidades tradicionais do Mercosul.
Ao longo da negociação entre os blocos, durante o governo Bolsonaro, não houve transparência e muito menos a participação da sociedade civil em sua elaboração. Ao contrário, apenas o setor empresarial teve acesso privilegiado às informações, o que demonstra a natureza deste acordo.
Ao mesmo tempo que o atual governo Lula tem demonstrado dar prioridade à participação social no governo, a rapidez com que tem avançado as negociações neste momento está dificultando concretizar como se dará a consulta e a participação nesse tema. No entanto, “reciclar” um texto que foi fechado durante o governo Bolsonaro é algo que deveria ser descartado. Como reaproveitar um acordo escrito pelo governo que levou a taxa de desmatamento na Amazônia a níveis inaceitáveis? Como ser favorável ao texto que prevê mais entrada de agrotóxicos no país que já tem um consumo alarmante de substâncias altamente tóxicas já proibidas na Europa, inclusive?
É preciso que o clima, a proteção socioambiental e os direitos humanos e trabalhistas sejam encarados como elementos centrais para a tomada de decisão sobre o acordo como um todo. O governo brasileiro precisa de maior diálogo com a sociedade, sobretudo com os povos indígenas e tradicionais, uma vez que os termos deste acordo podem aumentar ainda mais a crise que já assola essas populações nos seus territórios. Da mesma forma, a União Europeia precisa ouvir e respeitar a soberania dos povos do Mercosul antes de dizer publicamente que a sociedade civil endossa o tratado comercial e que o mesmo protegerá a Amazônia.
Precisamos parar com discursos cheios de palavras bonitas, mas vazias de intenções. Vivemos um momento de diversas e profundas crises, que escancaram problemas globais e estruturais. Precisamos de acordos que estimulem a cooperação entre os blocos, que tragam inovação tecnológica e industrial, fomentem empregos qualificados, que protejam a sociobiodiversidade e o clima, salvaguardando o direito à terra e ao território, para que, de fato, proponham um novo modelo de desenvolvimento econômico que possa trazer soluções verdadeiras aos desafios que vivemos.
*Artigo originalmente publicado na Revista Exame.