19/12/2012 11:01
O artigo “Democratização do Processo Decisório na Formação da Política Externa Brasileira”, de Fátima Mello, do Núcleo de Justiça Ambiental e Direitos da FASE, indica a importância de democratizar o processo decisório de política externa no país, principalmente num momento em que o Brasil é um importante ator no sistema internacional. Para ela, o contexto atual é de predominância dos interesses do grande empresariado e do agronegócio também na política externa. O artigo apresenta também algumas exceções desse modelo regido pelos interesses da iniciativa privada, com experiências de inclusão e participação em vários países, incluindo o Brasil como o Programa Mercosul Social e Participativo e o Sistema Nacional de Participação Social. Ainda indica princípios norteadores da democratização do processo decisório e recomendações para a implantação de novas experiências e fortalecimento das existentes.
Leia o texto na íntegra (pdf):
DEMOCRATIZAÇÃO DO PROCESSO DECISÓRIO NA FORMAÇÃO DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA
Fátima Mello*
FASE
Novembro de 2012
1) Breve caracterização do quadro atual
Ao longo da última década o Brasil tornou-se um ator de peso no sistema internacional. Refletindo este novo cenário, a política externa brasileira transformou-se em um dos principais campos de disputa política e ideológica na sociedade brasileira, o que coloca o tema da democratização de seu processo decisório entre as prioridades dos atores sociais e políticos que visam a democratização do Estado brasileiro e do sistema internacional.
A partir de 2003 uma nova dinâmica passou a vigorar no processo decisório de formação da política externa brasileira. Ainda que marcada por muitas contradições e incertezas, e sem abranger diversas áreas-chave, a alteração de fundo introduzida já no início do primeiro governo Lula foi a inclusão de novos atores sociais na disputa pelas diretrizes da política externa.
Até então o corpo diplomático mantinha-se como a área mais insulada do governo. A tradição que caracteriza a história do Itamaraty e de seus quadros é marcada pelas visões centradas no Estado e no realismo clássico: o Estado seria um ator unitário, livre dos conflitos que permeiam a política interna; a política externa, sendo o reflexo do interesse por um posicionamento na ordem internacional que maximize o poder do Estado, não seria passível de politização. Tais argumentos tão fortemente evocados pelos supostos interesses nacionalistas desde o período ditatorial são adotados também por forças privatistas que via de regra confundem seus próprios interesses com um suposto interesse nacional único, e em nome disso mantiveram e ainda mantêm forte controle sobre a formação da política externa. Até hoje, sob alegação de que se trata de uma política de Estado estas forças seguem confundindo o interesse nacional com os interesses de setores como o do grande empresariado e do agronegócio. Procurava-se e ainda procura-se assim blindar a política externa dos conflitos e disputas pela definição de prioridades nas políticas que marcam a sociedade brasileira.
A partir de 2003 houve avanços significativos no sentido da inclusão dos múltiplos interesses presentes na sociedade brasileira no processo de formação da política externa. Refletindo a dinâmica doméstica que passou a incluir, embora timidamente, as maiorias historicamente excluídas na alocação de recursos e na elaboração de políticas públicas, a política externa passou também a absorver em algum nível, ainda que insuficiente, os interesses dos pequenos agricultores (embora a pauta do agronegócio nunca tenha deixado de ser a locomotiva da formação das posições negociadoras do país), de trabalhadores urbanos, consumidores, organizações que defendem direitos sociais e serviços públicos universais que por sua vez passaram a questionar as prioridades das grandes corporações na definição da atuação externa do Brasil. No entanto em diversas negociações (comércio, integração regional, mudanças climáticas, arquitetura financeira, entre outras) os interesses do grande empresariado nunca deixaram de se expressar com força por meio da mídia – que atuou e segue atuando como caixa de ressonância das posições conservadoras em política externa – e do peso desproporcional que alguns ministérios que os representam tinham e continuam tendo na formação das posições externas, e da fragilidade de outros ministérios no que diz respeito a capacidade de incidir e disputar as diretrizes desta política. Enquanto a participação do empresariado no processo decisório é vista como algo natural, a pauta social e sindical segue sendo percebida como algo de menor importância.
Apesar dos avanços as tentativas de se ampliar a consulta a setores historicamente excluídos e de se introduzir a disputa e o conflito têm sido marcadas até agora pelo caráter ad hoc e não-institucionalizado dos mecanismos de participação e diálogo. Ao longo da última década os exemplos obedecem a um padrão: ainda que respondendo a uma diretriz do ex-presidente Lula, que se mantém no governo Dilma, de abertura ao diálogo com amplos setores da sociedade, a operacionalização de tal diretriz segue ocorrendo de acordo com a vontade e empenho do agente governamental envolvido e da agenda em questão.
Há exceções. As mais relevantes e que alcançaram algum grau de institucionalização foram a criação do Programa Mercosul Social e Participativo, e a inclusão de representações dos movimentos e organizações sociais como a REBRIPi e CONTAG, ainda que em posição muito minoritária, no CONEX (Conselho Consultivo do Setor Privado da Camex) por iniciativa e empenho do MDA. Em um Conselho cuja composição nos últimos anos incluiu integrantes como a CNI, Abimaq, Única, Vale, Odebrecht, Anfavea, Bunge, entre outros, foi possível constatar o grau de privatização a que o grande empresariado está habituado no que diz respeito à inclusão de seus interesses comerciais na formação das posições negociadoras do país.
No caso do Programa Mercosul Social e Participativo, embora sua criação tenha aberto um importante precedente que cria as bases para a viabilização de um espaço institucional com agenda mais ampla, os bloqueios a sua consolidação estão relacionados à ausência de uma agenda substantiva e estável bem como de desdobramentos e compromissos concretos resultantes das consultas e diálogos realizados.
Algumas instâncias coletivas de divulgação genérica de informações sobre negociações internacionais foram criadas ao longo da última década, como foi o caso da Senalca e Seneuropaii. Algumas reuniões de consultas amplas e também setoriais às organizações e movimentos sociais e sindicais foram realizadas ao longo dos governos Lula e Dilma por iniciativa do MRE e Secretaria Geral da Presidência da República, porém sempre com a marca da falta de permanência e de clareza sobre desdobramentos concretos e acolhimento das propostas, o que não contribui para a consolidação dos avanços obtidos no período nem para a democratização do processo decisório.
2) Experiências e propostas que podem contribuir para a democratização do processo decisório em política externa:
a) Experiências existentes em outros países:
A existência de mecanismos de consulta e participação da sociedade na formação da política externa ocorre em diversos países, ainda que em níveis de permanência e institucionalização muito distintos. Na maioria dos casos observa-se a existência de um padrão de dinâmicas ad hoc, caracterizadas por reuniões de consulta realizadas de acordo com a vontade do agente governamental responsável e restrito a temas pontuais.
Há no entanto alguns países que levam a cabo mecanismos de consulta com graus consolidados de institucionalização e que incluem em sua composição integrantes de diversos níveis de governo e da sociedade. Alguns casos relevantes que podem servir de referência ao debate no Brasil são:
– A França possui o Conseil des Affaires Etrangères dentro do Ministério das Relações Exteriores com composição paritária entre governo e sociedade.
– A Holanda possui um Conselho Consultivo sobre Assuntos Internacionais, criado em 1997, que aconselha o governo e o Parlamento em temas de política externa como direitos humanos, paz, segurança, cooperação e integração européia.
– Portugal não possui um conselho que trate do conjunto da política externa mas mantém dois conselhos temáticos de diálogo com a sociedade civil: o Conselho das Comunidades Portuguesas (residentes no exterior) e o Conselho para a Promoção da Internacionalização (relacionado a internacionalização da empresas portuguesas e políticas de exportação).
– A Áustria possui um Conselho para Assuntos da Política de Integração, criado em 1989 e que é consultado em diversos temas de política externa exceto nos casos em que o tema deva ser encaminhado ao Conselho Nacional de Segurança.
– Na América Latina, a Argentina possui um Conselho Consultivo da Sociedade Civil limitado ao Mercosul, similar ao Programa Mercosul Social e Participativo brasileiro, e que funciona sob a coordenação da Participação Social da Chancelaria. No Peru as consultas são realizadas ad hoc, porém há um Foro do Acordo Nacional que monitora diversas políticas governamentais, entre elas a política externa, e existem propostas de criação de um mecanismo de diálogo com a sociedade civil. Em alguns países da região é comum haver grupos de assessores e de ex-Ministros que a Presidência e o Chanceler consultam sobre a formação das posições externas. Este é o caso do Haiti, El Salvador e Chile.
– A Polônia conta com um mecanismo institucional consolidado focalizado na área de cooperação internacional. Trata-se de um conselho consultivo criado há oito anos que visa dar transparência e ampliar o engajamento social nos projetos de cooperação, inclusive na elaboração do plano plurianual da agência de cooperação.
– A República Tcheca conta com um Departamento de Diplomacia Pública e publicou recentemente o documento “Base Conceitual da Política Externa” cuja elaboração incluiu a participação do governo e da sociedade civil.
– A África do Sul, embora ainda não conte com tal mecanismo, planeja por meio de sua Chancelaria criar um South African Council on International Relations que funcionará como mecanismo de consulta junto a atores não-estatais.
Estas experiências indicam que o tema da institucionalização da participação da sociedade no processo decisório em política externa é relevante em alguns países e pode se tornar um tema importante na agenda de outros. Os modelos existentes podem contribuir para a definição de dinâmicas que melhor se adaptem ao processo decisório no Brasil, de acordo com os arranjos institucionais aqui existentes.
b) Brasil – mecanismos e experiências existentes:
Embora o Brasil ainda não seja dotado de mecanismo institucional de consulta e participação social na formação da política externa, algumas iniciativas em curso contribuem para adensar as possibilidades de se avançar na direção de sua criação.
Algumas iniciativas já mencionadas, como o Programa Mercosul Social e Participativo e o CONEX (Conselho Consultivo do Setor Privado da Camex) são experiências setoriais que podem ser tomadas como referências. Outras, mais estruturantes, como é o caso do Sistema Nacional de Participação Social e da Lei de Acesso a Informação, podem servir de base de legitimação para a formação de um mecanismo mais amplo e permanente.
– Mercosul: Programa Mercosul Social e Participativo, Fórum Consultivo Econômico e Social e Reunião Especializada sobre Agricultura Familiar.
Criado em 2008 e coordenado conjuntamente pela Secretaria Geral da Presidência da República e pelo MRE o Programa visa divulgar e debater as iniciativas sobre o Mercosul, bem como encaminhar propostas da sociedade civil às instâncias governamentais do bloco. É composto por órgãos de governo envolvidos no bloco e representações de organizações e movimentos sociais e sindicais que representam setores como trabalhadores urbanos e do campo, juventude, pequenas e médias empresas, mulheres, grupos de defesa dos direitos humanos, saúde, meio ambiente, educação, economia solidária, povos indígenas, cooperativismo, entre outrosiv. Conforme mencionado, embora se constitua em um importante precedente, a ausência de uma agenda substantiva e de procedimentos claros que assegurem desdobramentos concretos dificulta suas possibilidades de efetividade e consolidação.
Também no âmbito do Mercosul o Fórum Consultivo Econômico e Social (FCES) merece ser analisado como referência pelo que aponta em termos de potencialidades e limites. Criado pelo Protocolo de Ouro Preto, tem caráter consultivo e visa produzir recomendações ao Grupo Mercado Comum. Sua composição em cada seção nacional inclui os setores empresariais, de trabalhadores e do genericamente chamado terceiro setor). Sua agenda e funcionamento refletem a conjuntura na qual foi criado e por isso têm sido freqüentes as tentativas de se atualizar o debate sobre a dinâmica destes mecanismos de consulta e participação social no espaço regional. No âmbito da Unasul este ainda é um debate em aberto, que no entanto toma como referência a experiência do FCES e busca adequá-la ao novo contexto vivido pela região.
A REAF – Reunião Especializada sobre Agricultura Familiar do Mercosul – também se constitui em importante referência pois sua agenda trata do fortalecimento de políticas públicas e da facilitação do comércio para a agricultura familiar da sub-região. A ampliação do peso desta agenda pode ser algo estratégico frente ao diagnóstico já consolidado entre organizações sociais e sindicais de que o Mercosul deveria alterar sua dinâmica atual, fortemente concentrada na integração da cadeia produtiva intra-corporações e com ênfase no setor automotivo.
Não há dúvida que este é um período positivo, dado o ciclo de governos eleitos nos últimos anos na região, para o enfrentamento do tema da conformação de novos arranjos institucionais para a participação social no âmbito regional que reflitam o papel relevante que os movimentos sociais têm tido em especial ao longo da última década.
– CONEX (Conselho Consultivo do Setor Privado da Camex)
Segundo a Camex “o CONEX é o núcleo de assessoramento privado da Camex, competindo-lhe apresentar estudos e propostas de aperfeiçoamento da política de comércio exterior. É composto por até 20 representantes do setor privado, sob a presidência do Presidente do Conselho de Ministros da Camex”v . Conforme já mencionado, trata-se de espaço cujo forte peso e controle por parte do setor empresarial não o credencia para ser referência à constituição de uma esfera pública de consulta e disputa sobre as diretrizes da política externa.
– Sistema Nacional de Participação Social:
A Secretaria Geral da Presidência da República (SGP) está implementando este sistema, que visa consolidar e institucionalizar a participação de amplos setores sociais no processo decisório de formulação de políticas públicas. Segundo a SGP este sistema tem como premissas: “o compromisso com a cidadania implica em assegurar espaços de participação em todo o ciclo de produção das políticas públicas: concepção, controle, avaliação e revisão; a incorporação de novos sujeitos sociais na produção das políticas públicas não subtrai qualquer uma das prerrogativas das demais instituições políticas; para que as formas de participação ganhem eficácia e legitimidade, devem existir espaços institucionais permanentes e com regras bem definidas para o exercício do diálogo entre estado e sociedade.”vi
Os mecanismos de participação social previstos no sistema em implantação pela SGP incluem conselhos, conferências, ouvidorias, audiências públicas, plebiscitos e referendos. A partir de 2003 foram criados dezenove novos Conselhos Nacionaisvii e dezessete previamente existentes foram reformuladosviii. A SGP define os conselhos como “organizações institucionais setoriais ou temáticas, de caráter consultivo e/ou deliberativo e fiscalizador, com a finalidade de produzir e acompanhar políticas públicas no âmbito do governo federal.”
Também de acordo com a SGP as conferências nacionais são “espaços democráticos para o encontro de diferentes setores da sociedade, interessados em avaliar, discutir, criticar e propor políticas públicas. Cumprem a importante função de construção de pautas para o diálogo social.” De fato um conjunto muito relevante de políticas públicas nasceu de conferências nacionais, como é o caso do SUS (Sistema Único de Saúde), entre outras.
Cabe ressaltar que a proposta de criação de um Conselho Nacional de Política Externa tem sido apresentada e divulgada pela REBRIP e outras organizações e movimentos sociais ao longo da última décadaix . Tal proposta também consta da Resolução sobre Política Internacional apresentado pela Secretaria de Relações Internacionais do PT ao IV Congresso do partido, que também incluiu a proposta de realização de uma conferência nacional sobre o assuntox.
A absorção das dinâmicas previstas no Sistema Nacional de Participação Social para o âmbito da política externa pode ser favorecida pela realização de uma avaliação dos resultados de tais mecanismos em outras políticas. Não há dúvida que os Conselhos têm sido palco de disputa e contradições, mas algumas experiências revelam com nitidez os ganhos potenciais positivos, como é o caso do CONSEA, onde os instrumentos e visões ali formulados constituem-se em importantes princípios de política externa, como por exemplo o direito humano a alimentação e o fortalecimento do conjunto da agenda de segurança e soberania alimentar.
– Comissão Nacional Rio+20:
Criada por decreto um ano antes da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20) e co-gerida pelo MRE e MMA, a Comissão é composta por representantes do governo nos níveis federal, estadual e municipal, Parlamento e sociedade civil (incluindo o setor empresarial, trabalhadores, movimentos sociais de vários setores e redes). Seu objetivo é promover a interlocução entre os seus membros visando articular a participação do Brasil na Conferência. A experiência revelou que a Comissão teve até o momento o papel de socialização de informações entre as diversas iniciativas. Em sua última reunião, às vésperas da realização da Conferência, foi proposto que a Comissão se torne um espaço permanente de debate e articulação sobre a agenda do desenvolvimento sustentável, proposta cuja aceitação será testada em reunião a ser realizada em dezembro próximo.
Importante ressaltar que a Comissão inclui entre seus membros representantes de governos estaduais e municipais, o que favorece a possibilidade de constituição de um marco regulatório para a inclusão de unidades sub-nacionais na formação da agenda de política externa do país.
– Mecanismos de Acesso a Informação:
a) Lei nº 12.527 de Acesso a Informação: sancionada em novembro de 2011, estabelece e regulamenta um conjunto de compromissos, procedimentos, critérios, meios e órgãos públicos envolvidos na garantia do direito de acesso dos cidadãos a informações públicas.
A lei estabelece também as circunstâncias nas quais é possível classificar as informações como secretas ou reservadas, entre as quais: “são consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado e, portanto, passíveis de classificação as informações cuja divulgação ou acesso irrestrito possam: pôr em risco a defesa e a soberania nacionais ou a integridade do território nacional; prejudicar ou pôr em risco a condução de negociações ou as relações internacionais do País, ou as que tenham sido fornecidas em caráter sigiloso por outros Estados e organismos internacionais; pôr em risco a vida, a segurança ou a saúde da população; oferecer elevado risco à estabilidade financeira, econômica ou monetária do País; prejudicar ou causar risco a planos ou operações estratégicos das Forças Armadas; prejudicar ou causar risco a projetos de pesquisa e desenvolvimento científico ou tecnológico, assim como a sistemas, bens, instalações ou áreas de interesse estratégico nacional.” Ainda assim, a lei define que a transparência é a regra e a classificação em grau reservado deve ser exceção.
Não há dúvida que o tema da transparência supõe o reconhecimento de que em política externa existem necessariamente componentes de confidencialidade a serem observados. Isso porém não deveria justificar o extremo da situação atual, onde existe uma cultura do segredo, e onde grande parte das informações está guardada sob a classificação em grau reservado.
b) O poder Legislativo conta com o instrumento de Requerimento de Informações estabelecido pela Constituição Federal de 1988 (artigo 50, parágrafo 2º) que obriga o Poder Executivo a responder no prazo máximo de 30 dias, a qualquer solicitação de informações encaminhada pela Câmara dos Deputados e Senado Federal. Tal instrumento tem sido acionado por organizações e movimentos sociais, que solicitam a parlamentares que encaminhem requerimentos de informações sobre iniciativas do poder Executivo nos mais diversos assuntos, inclusive sobre negociações internacionais e sobre a atuação de instituições multilaterais no país.
{C}{C}{C}3) Princípios norteadores visando a democratização do processo decisório
Desde 2003 quando organizações e movimentos sociais passaram a disputar de forma mais intensa as diretrizes da política externa brasileira alguns princípios passaram a balizar sua atuação. Em primeiro lugar, a noção de que a política externa deve contribuir para reduzir as assimetrias e desigualdades existentes dentro da sociedade brasileira, entre países da região e no sistema internacional. Em segundo lugar, a política externa pode e deve contribuir para a democratização substantiva do Estado, da sociedade brasileira e da ordem internacional. Em terceiro lugar, a idéia de tornar a política externa uma política pública, pertencente a sociedade, debatida pela opinião pública, não visa de forma alguma a redução da capacidade do Estado e sim a redução de seu isolamento junto a sociedade, o que na prática tem significado a vulnerabilidade às pressões do grande empresariado e da grande mídia. Por fim a idéia de que ao democratizar seu processo decisório a política externa ganhará maior legitimidade.
Observa-se que experiências como a do Programa Mercosul Social e Participativo, por um lado, cuja composição é majoritariamente de organizações e movimentos sociais, e do CONEX, por outro, integrado quase exclusivamente pelo setor empresarial, parece indicar que espaços cuja composição não inclui a pluralidade de setores que disputam a agenda da política externa não contribuem para fazer avançar a sua democratização. A constituição de uma esfera pública de consulta, processamento de interesses e disputa sobre as diretrizes da política externa requer que todos os setores interessados integrem um espaço comum e compartilhado.
A resistência à criação de um espaço plural de mediação e disputa pode tender na verdade a manter a política externa mais vulnerável ao controle de setores conservadores. Na ausência de um mecanismo institucional e permanente estas forças seguem se movendo através de seus grupos de pressão nos diversos ministérios, no Congresso Nacional, tomando iniciativas visando o esvaziamento da esfera pública e buscando incrementar o fortalecimento de espaços como a Camex. Durante a campanha eleitoral de 2010 este tema foi trazido ao debate público, tendo o diplomata aposentado e assessor do setor empresarial e de forças conservadoras Rubens Barbosa publicado artigo em agosto daquele ano onde afirma que “falta ao setor de comércio exterior um grupo de pressão a seu favor, como ocorre com a Febraban no setor financeiro e com o Ministério da Agricultura e diversas associações e instituições na área agrícola, que defendem os interesses das organizações financeiras e dos produtores no campo perante o governo e o Congresso Nacional. Dispersos e tendo de tratar com muitos interlocutores, os empresários do setor de comércio exterior têm dificuldades para, com eficiência, defender os seus legítimos interesses. A Câmara de Comércio Exterior (Camex), colegiado com a atribuição de coordenar os diferentes órgãos da administração federal responsáveis pela política de comércio exterior, não tem peso político para exercer esse papel em sua plenitude. O Brasil necessita de uma nova estrutura institucional para o comércio exterior e para suas negociações externas. Sem criar novas burocracias, o objetivo seria reforçar um comando único, favorecendo a coordenação no âmbito do governo, e criar um mecanismo de apoio em tempo integral ao comércio exterior para atuar como ponto focal na defesa dos interesses do setor privado. O Conselho de Comércio Exterior da Fiesp e a Confederação Nacional da Indústria estão propondo o fortalecimento da Camex, vinculada diretamente ao presidente da República.”xi
Ao invés de temer que estes setores acabem por exercer controle excessivo na composição de um espaço institucional comum pode-se considerar que seria desejável que este espaço seja disputado por diferentes setores pois sem o empresariado e outras forças política e economicamente relevantes tal mecanismo institucional não teria a musculatura e o peso desejados. O problema é que a inexistência de um espaço com estas características acaba por perpetuar uma situação na qual o empresariado, por meio de canais privados de influência, tem um imenso peso no processo decisório, enquanto que os demais setores, notadamente os movimentos sociais, não encontram canais de influência e pressão.
4) Conclusões e recomendações:
“Mecanismos de controle político externos à agência diplomática são imprescindíveis para a conciliação, em contextos democráticos, dos recursos de autoridade e de representação necessários à credibilidade da política externa junto aos interlocutores e parceiros externos” (Maria Regina Soares de Lima, 2000)xii.
As experiências existentes apontam para a necessidade de se desenharem mecanismos e dinâmicas que lidem com esta agenda em pelo menos três níveis. Em primeiro lugar é preciso equacionar e encaminhar o tema do acesso a informação e transparência, guardadas as claras necessidades de sigilo e confidencialidade próprias à natureza da política externa. Ainda que desde o primeiro governo Lula mecanismos de acesso a informações e de ampliação da transparência tenham sido acionados, a formação de posições negociadoras tem mantido um padrão de insulamento, concentrado no poder Executivo, contando com o Parlamento apenas marginalmente para ratificar o processo ao final do mesmo. Reuniões genéricas e/ou com atores específicos são realizadas onde informações são transmitidas de acordo com a conveniência do momento. Sendo uma condição prévia para a participação e consulta, as políticas de transparência e de disponibilização de informações devem ser adotadas no âmbito doméstico, ao mesmo tempo em que o Brasil deve atuar a seu favor também nas coalizões, regimes e espaços regionais e multilaterais que integra, como é o caso do Mercosul, Unasul, G20, OMC e nas negociações bilaterais e bi-regionais.
Em segundo lugar é preciso encaminhar o tema da criação de um mecanismo institucional de consulta, participação e diálogo onde as distintas visões, interesses e propostas em disputa sejam apresentados e processados. O formato institucional, a composição, o caráter, mandato e escopo da agenda, são questões a serem enfrentadas entre o amplo leque de forças sociais a serem envolvidas.
Um terceiro nível a ser enfrentado é a necessidade de existirem mecanismos de acolhimento e absorção das propostas apresentadas. Este tem sido o principal bloqueio e limite observados nas experiências existentes, que correm o risco permanente de acionarem iniciativas de escuta e participação que não se desdobram em nenhum compromisso nem em nenhum desdobramento concreto. Experiências de instâncias como a Senalca, Seneuropa, Programa Mercosul Social e Participativo entre outras têm precisamente esta limitação na origem de sua criação.
As experiências e questões suscitadas sugerem que a possibilidade de aproveitamento dos mecanismos existentes em prol da democratização da formação da política externa requer vontade política e análise de correlação de forças. Não há dúvida, por exemplo, que o Sistema Nacional de Participação Social pode ser acionado visando a inclusão de um Conselho Nacional de Política Externa e/ou a convocação de uma Conferência Nacional sobre o assunto. A Lei de Acesso a Informação e o instrumento parlamentar de requerimento de informações também podem ser acionados com o intuito de se avançar na transparência das informações sobre a atuação externa do país. A questão, como tudo na política, reside na avaliação das possibilidades de que, na atual conjuntura, estes mecanismos se movam na direção do favorecimento da inclusão dos setores historicamente excluídos do processo decisório ou não.
Diversos atores sociais e políticos que atuam a favor da democratização do processo decisório em política externa parecem concordar com a avaliação de que neste momento a convocação de uma Conferência Nacional sobre Política Externa pode se constituir num importante processo visando a acumulação de forças necessária à futura criação de um Conselho Nacional de Política Externa. A Conferência deve ser convocada como o momento de debate do conjunto de princípios, valores e estratégias da política externa brasileira e da construção do processo rumo a criação do Conselho, e deverá definir desdobramentos posteriores em agendas e temas específicos, como é o caso da integração regional, direitos humanos, e em especial da cooperação brasileira onde se faz necessário o debate e definição de uma nova governança. A realização da Conferência é vista portanto como a via de construção das premissas para a constituição do Conselho no médio prazo.
Não há dúvida que a democratização do processo decisório em política externa integra os esforços do conjunto de forças sociais e políticas que lutam pela democratização do Estado e da sociedade no Brasil. Um passo importante nesta direção é que se estabeleça uma relação direta entre as políticas domésticas e externa, entre os conflitos e a correlação de forças no plano interno e a sua tradução em posições do país no sistema internacional, tendo o Estado como mediador entre o interno e o externo, sendo capaz de acolher as conquistas obtidas em termos de democratização substantiva no plano doméstico e tensionando a política externa também no sentido da sua democratização.
Referências:
i {C}{C}REBRIP – Rede Brasileira Pela Integração dos Povos, rede que articula movimentos sociais, sindicatos e ONGs visando o monitoramento e incidência sobre temas da política externa brasileira.
ii Trata-se de instâncias criadas, no âmbito do Ministério das Relações Exteriores, de informação e consulta sobre as negociações da ALCA e do acordo União Européia-Mercosul, reunindo setores empresariais, representantes de ministérios, parlamentares, e alguns sindicatos e ONGs.
iii Itamaraty – Consulta Telegráfica sobre Diálogo com a Sociedade Civil, 2011.
iv http://www.secretariageral.gov.br/internacional/mercosul-social-e-participativo/conselho-brasileiro-do-mercosul-social-e-participativo
v http://www.camex.gov.br/conteudo/exibe/area/1/menu/23/Conselho%20Consultivo%20do%20Setor%20Privado%20-%20CONEX.
vi “A Participação Social no Governo Federal”, Secretaria-Geral da Presidência da República – Secretaria Nacional de Articulação Social, novembro de 2008) e http://www.secretariageral.gov.br/art_social/conselhos-e-conferencias.
vii Conselho da Transparência Pública e Combate à Corrupção, de Economia Solidária, de Segurança Alimentar e Nutricional, de Desenvolvimento Econômico e Social, de Aqüicultura e Pesca, de Promoção da Igualdade Racial, de Combate à Pirataria e Delitos contra a Propaganda Intelectual, das Cidades, Conselho Diretor do Fundo da Marinha Mercante, de Política Cultural, de Juventude, de Combate à Discriminação, de Políticas sobre Drogas, Conselho Gestor do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, de Acompanhamento do FUNDEB, do Fundo de Desenvolvimento da Amazônia, do Fundo de Desenvolvimento do Nordeste, de Política Criminal e Penitenciária, do Mercosul Social e Participativo.
viii Conselho Nacional dos Direitos do Idoso, de Turismo, de Recursos Hídricos, de Segurança Pública, dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência, dos Direitos da Mulher, da Embrapa, de Desenvolvimento Rural Sustentável, de Meio Ambiente, de Política Cultural, de Saúde, das Cidades, do IPHAN, Conselho Curador do FGTS, do Fundo de Amparo ao Trabalhador, de Defesa Civil, de Combate à Discriminação (em processo de reformulação).
ix “Para que os interesses múltiplos e conflitantes existentes na sociedade brasileira possam ser processados, mediados e por fim traduzidos em posição externa é necessária a criação de um espaço institucional que inclua esta diversidade de atores e agendas. Os espaços e dinâmicas existentes até agora – sejam a Camex, as consultas ad hoc, as reuniões realizadas em gabinetes de ministérios com os grupos empresariais de pressão – já não são mais aceitáveis porque deixam importantes setores sociais e agendas do lado de fora, sem interlocução. A proposta de criação de um Conselho de Política Externa reforçaria o papel do Ministério das Relações Exteriores como o lócus de mediação, formulação e condução da política externa, conferindo legitimidade às definições dessa política. O conflito e a democratização do processo decisório na política externa são sinais positivos, pois contribuem para a democratização do Estado.” “Diplomacia Diplomática”, O Globo, 8/9/2010.
x “O MRE tem sido mais aberto à participação dos movimentos sociais, centrais sindicais e ONGs nos eventos internacionais, inclusive, muitas vezes como membros da delegação oficial. E os diplomatas do MRE têm se disponibilizado para dialogar e participar de eventos organizados pela sociedade civil. Entretanto, ainda faz falta a criação de um “Conselho Nacional de Política Externa” como organismo consultivo com participação social, a exemplo do que existe em outros ministérios como, por exemplo, o da Saúde e o da Educação. Também com o espírito de ampliar o debate sobre o tema, apoiamos a realização de uma “conferência das relações exteriores”, semelhante às já organizadas pelo governo federal em diversos setores, o que permitiria ampliar o debater, junto à sociedade brasileira, das diretrizes da política externa. Apoiamos, também, as medidas que visam aprimorar a capacidade de gestão estratégica do Estado brasileiro, num trabalho de cooperação com outras instituições.”, A política internacional do PT – Resolução apresentado pela SRI ao IV.
xi Rubens Barbosa – “Comércio exterior e o futuro governo”, O Estado de São Paulo, 24/08/10.
xii Lima, Maria Regina Soares de – “Diplomacia e Democracia”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, setembro de 2000.
* Uma versão preliminar deste texto foi apresentada e debatida entre os membros do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais, que reúne representantes de movimentos sociais e sindicais, partidos, pessoas de diversas áreas do governo, pesquisadores e ONGs. O GR-RIs visa contribuir para a construção de narrativas sobre a política externa brasileira que subsidiem a disputa política na opinião pública contra as forças conservadoras. O roteiro original visou subsidiar o debate apresentando experiências e propostas existentes acerca da democratização do processo decisório na formação da política externa. Esta versão final inclui importantes comentários, questões e propostas levantados por diversos membros do grupo durante o debate.
** Agradecimentos a Fundação Friedrich Ebert (FES) pelo apoio a iniciativa de reunião do grupo.
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