18/06/2013 12:45
por Evanildo B. Silva*
(e mais opiniões abaixo***)
Falar na primeira pessoa pode ser só um recurso literário ou um testemunho social qualquer para dar vazão a algum sentimento corriqueiro, humano demasiado humano. Aqui peço licença para compartilhar “sentimentos da luta”, motivado pelas muitas manifestações que ocorrem no Brasil da última semana e das quais tenho muitas partes coletivas. Portanto, mais um a falar! A motivação é histórica e o exercício tem sido diário. Em meio a tantas verdades uma parece balançar: o Brasil melhorou, é o que se atesta. A oficialidade acadêmica, a governança estatal e seus instrumentos de comunicação e persuasão, Congresso, Partidos Políticos aliados, sindicatos e outras alianças na sociedade política creem piamente nessa “guerra discursiva”. O mundo empresarial rir do que vê e do que lucra. A vida pra essa turma é primaveral. Juntos, a galera do birô parece confiante e assim toca a vida pública, toca a vida privada, toca a vida… Marcha-se agarrado a uma esfinge da PPP (parceria público privada) e do que dela extrai de melhor. E nós, ou seja, o resto que aí não se encontra? Bem, pra manter acesa a chama, resta ainda a luta. Estamos coletivos em algum Comitê Popular da Copa, algum Conselho de políticas para as cidades, algum Fórum de reforma urbana, alguma associação de organizações não governamentais, algum Facebook, Twitter, blog e sei lá o quê mais, muitos outros alguns, às vezes, quase nada de força. A névoa do autoritarismo discursivo governamental – replicada em potentes ondas sonoras – impõe uma sensação que às vezes é sim de recuo na conjuntura – só menos gélida que o ambiente da institucionalidade democrática que não se deu conta de que as “mudanças climáticas da participação” acenderam as fogueiras das ruas no país inteiro (no Nordeste o clima ainda é junino, mas, dia 20 Recife vai pegar fogo!). Isso mesmo, alguma transgressão discursiva, em marcha contra abusos, sem tantas certezas, sem muitos vínculos óbvios com as expectativas de “novos horizontes utópicos”, talvez, intuídos como “construtivistas” de contracorrentes, ligados simultaneamente ao passado e ao futuro. Assim, na primeira pessoa, me sinto nesse intervalo indomável do tempo que não se curva. Muitas são as reuniões de que participo. Muito é o esforço de orquestrar algo que dê sentido e escuta ao que se passa nas ruas, dentro das casas de quem por ora só pode consumir quinquilharias até R$ 1,99. No Comitê Popular da Copa, por exemplo, o passado me empurra para o diálogo e para a colaboração (inclusive aberto a rodadas com governos da Copa!), mas, pensando em proteger e em oferecer alternativas de direitos para as famílias de Recife e Camaragibe (PE) que impiedosamente são jogadas para escanteio em nome do megaevento, esse que planta uma FIFA pra colher turistas! A intenção da luta num Comitê é boa (oferecer, preventivamente, meios para que as pessoas em carne e osso não sejam violentadas no seu direito de moradia, no seu direito de usar dos bens e serviços urbanos em saúde, educação ou transportes públicos ainda existentes no entorno da vida…). A essa intenção soma-se outra óbvia: na inevitabilidade do remanejamento dessas famílias, planejar pública e tecnicamente – respeitosos às suas trajetórias de vida – o lugar, a moradia, o lazer, o transporte e os serviços de que elas precisarão. Mas, sabe o que quer o Estado e as empresas executoras das obras da Copa: distância desse tipo de problemas, urgência na produção urbana pró-Copa (estádio, corredores, aeroporto e hotelaria prontinhos para o turista!) e nenhum questionamento sobre suas iniciativas (muito menos sobre o custo das obras). Ou seja, os governos não querem ajuda para corrigir problemas e enfrentar as soluções coletivas! Os governos estão numa empáfia pública só explicada pela alta credibilidade das urnas. Os empresários seguem o mantra, pegam carona e o povo que se vire! Vocês acompanharam a classe média do Recife tendo o seu dia de “pobre” nos metrôs e nos sistemas de ônibus para assistir a um jogo da Copa das Confederações. Mesmo eles, eleitores convictos dos avatares da modernidade administrativa pública ficaram indignados com filas quilométricas, com empurra-empurra em metrô, falta de respeito às filas, pisão no pé dentro do bus, inoperância no bus rapid transit, falta de fast food, selfservice, water e outras maravilhas oferecidas em péssimo inglês para uma turma pouco exigente dos seus e dos direitos das massas. Mesmo assim, o governo responde tecnicamente no dia seguinte: faltou sincronia no sistema ônibus-metrô. Pronto, está consertado o problema. Direito conquistado, assim pensa o governo. Mas, as ruas não estão dizendo isso. Elas querem responsabilidade dos poderes públicos para com os direitos coletivos já conquistados. Elas exigem transparência quanto ao uso dos muitos milhões de recursos públicos empenhados nessas obras da Copa. Elas querem qualidade nos transportes públicos para antes e para além dos megaeventos. Elas lutam para que os custos da passagem dos traslados nas cidades tenham como baliza o direito à cidade com qualidade e não o lucro de quem já há muito se refestela nos fundos públicos desse país. Ou seja, numa fina ironia da história, os povos que estão impedidos de exercitar o direito à rua, vão às ruas dizer que, aos poucos, o “rato está roendo a roupa do rei de Roma”. Será de Roma mesmo esse reinado? Acho que as ruas responderão, assim espero e dou lá minha contribuição! Por fim, engraçado e irônico é que escuto na TV uma propaganda de venda de carro que convoca geral e diz, através de música de O Rappa: “vem vamos pra rua, pode vir que a festa é sua, que o Brasil vai tá gigante, grande como nunca se viu. Vem vamos com a gente, vem torcer, bola pra frente, sai de casa, vem pra rua, pra maior arquibancada do Brasil”. Como se diz no Sertão, se não era essa a intenção, ficou sendo!
(Evanildo B. da Silva é diretor da FASE)
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Cinco questões sobre os protestos no Brasil
Por Guilherme Carvalho**
O Brasil passou a vivenciar uma onda de protestos que a cada dia agrega mais pessoas e atinge um número cada vez maior de localidades. Apresento abaixo cinco questões que me parecem importantes para a análise dos recentes acontecimentos.
1. A direita perdeu a batalha da comunicação
O início das mobilizações dos jovens sofreu duros ataques dos principais grupos corporativos de comunicação. Os editorias do Estadão e da Folha de São Paulo serviram de senha para a bestial repressão da Política Militar comandada pelo tucano Geraldo Alckmin (PSDB) que, exercida de forma indiscriminada, atingiu manifestantes, jornalistas, transeuntes, jovens, idosos e outros. O/A Globo, Veja e seus articulistas – os nefastos Arnaldo Jabor e Reinaldo Azevedo, entre eles – usaram toda sua verve para desqualificar e criminalizar o movimento. O comentário de Jabor no Jornal da Globo foi fascista, digno de aplausos de agentes da ditadura.
Entretanto, quando começaram a ser veiculadas pela internet os abusos cometidos pelas forças da repressão, quando os próprios profissionais da “grande” imprensa passaram a ser vítimas da ROTA, quando a mídia internacional e as organizações de direitos humanos passaram a fazer duras críticas ao comportamento da Polícia Militar, e quando alguns setores passaram a defender abertamente a extinção dessa força policial, o quadro começou a mudar substancialmente.
Arnaldo Jabor, por exemplo, fez mea culpa na Rádio CBN desculpando-se por não “ter entendido” que a luta dos movimentos não se resumia aos R$ 0,20, e que eles poderiam ser a oportunidade de oxigenação da sociedade brasileira a “combater todos os males que nos afligem”: a corrupção, a inflação, o “mensalão”, os privilégios, a lentidão das obras do PAC, os aeroportos lotados, a elevada carga tributária, a PEC 37 e por aí vai. Os jornais passaram a falar abertamente de “brutal repressão” e as emissoras de televisão passaram a defender o direito constitucional de livre manifestação. Por que ocorreu tal mudança? Uma das respostas possíveis é que a direita perdeu a batalha da comunicação. E, sem dúvida alguma, a internet muito contribuiu para que isso ocorresse. Perdida a batalha era preciso alterar a posição sem que isso evidenciasse a própria derrota. Esse fato demonstra o definhamento do monopólio da comunicação? Sim e não. De fato, hoje temos muito mais recursos para combater a visão parcializada dos grandes grupos de comunicação defensores do status quo e da democracia sem participação efetiva. Contudo, é muito prematuro afirmarmos que Marinhos, Frias, Mesquitas, Maioranas, Barbalhos, Calderaros, Sarneis, Sirotskis e outros perderam a capacidade de impor sua agenda política, econômica e ideológica à sociedade brasileira. Há ainda muito chão para ser trilhado…
2. Perdida a batalha da comunicação a direita tentará definir os rumos das mobilizações
No início das mobilizações uma das principais críticas de governos e dos conglomerados de comunicação era de que o movimento não tinha rumo, era uma “colcha de retalhos”, não possuía uma pauta definida. Pois bem, observando o reposicionamento desses setores frente à ocupação das ruas de diferentes cidades por milhares de pessoas uma coisa fica patente: A ordem agora é tentar desviar esse caudaloso rio para se confrontar com o governo federal. Enfim, é tornar o governo Dilma e o PT os principais inimigos dos manifestantes e o estuário do descontentamento popular. Leia atentamente os editorais dos principais jornais do país, preste atenção nas falas dos principais porta-vozes da mídia corporativa, dos tucanos e dos demos, ou a defesa do representante da Secretaria Estadual de Segurança Pública de São Paulo para que os manifestantes canalizem sua ira contra o “mensalão” – o petista, bem entendido, não o tucano. Todos agora estão com os olhos voltados para os resultados das próximas pesquisas de avaliação do governo e de Dilma Roussef….
3. Como não tem direção?
É hilário assistir as posições dúbias do governo do Estado de São Paulo e da prefeitura paulistana, aos debates na Globonews e em outros programas de entrevistas, assim como a recente entrevista do sociólogo tucano Bolivar Lamounier ante ao que está ocorrendo nas ruas. O principal problema para eles é a ausência de uma direção, de um interlocutor (re)conhecido pelo aparelho de Estado. Ora, as manifestações que ocorrem no momento agregam insatisfações de diversas ordens. Por outro lado, diferentemente de outras experiências elas são marcadas pela participação horizontal, envolvem milhares de pessoas – principalmente de jovens – que simplesmente resolveram posicionar-se contra aspectos que eles consideram ruins para si e para a sociedade.
Além disso, as formas de mobilização agregaram recursos tecnológicos como a internet de maneira muito interessante. O problema é que o Estado – mas, digamos a verdade, nem os partidos de esquerda – não sabe lidar ao certo com essa “nova realidade”. Essa vai ser a característica das mobilizações de massa de agora em diante? Não é possível afirmar categoricamente. Todavia, as manifestações parecem demonstrar aos setores empenhados em realizar mudanças estruturais na sociedade que suas metodologia/concepções de organização e de mobilização social estão defasadas….
4. O outro lado: A criminalização da política
Participando da manifestação ocorrida aqui em Belém percebi em vários momentos as pressões exercidas pela grande maioria dos(as) jovens contra integrantes de partidos políticos como o PSTU, o PSOL e o próprio PT presentes no ato. Tal fato, ao que parece, não é uma característica de Belém, mas tem ocorrido em todos os outros protestos espalhados pelo país. A política – e não estamos tratando exclusivamente da política partidária – vem sendo sistematicamente criminalizada. É um elemento constitutivo do sistema de dominação em escala global. É preciso criminalizar a política, torná-la suja aos olhos da população, como algo ruim, que só serve para beneficiar um punhado muito pequeno de pessoas e grupos. A esse respeito sugiro a leitura de algumas das produções de Slavoj Zizek (Bem-Vindo ao Deserto do Real) e de Michel Lowy (Os irredutíveis: Teoremas da resistência para o tempo presente).
No Brasil, temos tido fartos exemplos dessa criminalização: Os comentários depreciativos de Joaquim Barbosa e de outros membros do Supremo Tribunal Federal (STF) contra os partidos políticos e a política em geral, as perseguições contra os que fazem renhida oposição ao modelo hegemônico de desenvolvimento, a imposição do discurso do progresso como elemento justificador do modelo etc. O problema, por mais paradoxal que possa parecer, é que a criminalização ocorre tanto pela direita quanto por uma certa “esquerda”. Esta agora mais afeita à “busca de consensos”, a “extirpação dos conflitos sociais” e às saídas técnicas/tecnológicas a problemas cruciais da humanidade – a crise ambiental, por exemplo.
5. O PT está sendo forçado a sair da sua “zona de conforto”
Uma consequência maravilhosa da efervescência das ruas é a de ter colocado o PT “contra a parede”, de tê-lo tirado de sua “zona de conforto”. O desenvolvimentismo econômico no estrito limite do modelo hegemônico se tornou a utopia do partido, devidamente associado a uma estratégia de compensação social que, se de um lado, retirou milhões de famílias da sua condição de miséria extrema a partir fundamentalmente do consumo; de outro, não se mostrou capaz de reverter a indecente concentração de renda e da propriedade no país.
Crescentemente apartado dos movimentos sociais que lutam contra o modelo hegemônico de desenvolvimento, o PT tem buscado consolidar alianças com segmentos conservadores da sociedade, como a Confederação Nacional da Agricultura (CNA). Hoje, o agronegócio – o Partido da Terra – é que dita os eixos estruturantes da agenda governamental, interna e externamente. Militantes históricos estão sendo perseguidos, criminalizados. As mobilizações que ocorrem no país podem mostrar ao PT que o seu descolamento das forças vivas da sociedade empenhadas em realizar mudanças estruturais foi o seu principal erro estratégico. Talvez perceba que a banda está passando e somente ele não vê.
(**Guilherme Carvalho é da equipe da FASE Amazônia – publicado originalmente em http://macareuamazonico.blogspot.com.br/ – encontre lá mais textos sobre o tema)
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Leia o editorial da FASE: Não é por R$ 0,20 – É contra a privatização da vida
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“Alguma coisa está fora da ordem” – e seguimos no fio da navalha
Aercio de Oliveira**
(19/06/2013)
Mas 100 mil participantes é um número que dá o que falar – e eu fui uma partícula dessa molécula gigante. Segundo a imprensa, esta destronou todas as manifestações anteriores. E o que chama atenção é que toda essa mobilização passa muito longe das formas organizativas tradicionais herdadas do século XIX. Fazendo justiça ao meu tempo de vida, fiquei atento durante a manifestação para possíveis atos de violência contra os manifestantes. Mas de cara, assim que saí do metrô, ao entrar na Cinelândia, lembrei-me das manifestações que já participei (Diretas Já, Caras Pintadas, Luta contra a Privatização da CSN na Praça XV e Greves gerais) e percebi que estava em algo completamente diferente.
A única coisa em comum com o passado era o jeito descolado dos jovens se vestirem e a cor da pele. Ao menos no trecho onde fiquei, eles tocaram minha memória e lembrei das manifestações do PT que contavam com jovens mobilizados, antenados, de classe média, com a pele clara. Seguramente, quase todos são “filiados socialmente”, mas desfiliados partidariamente. No mais, o que vi foi bem diferente do passado. Não se via líderes em carro de som; e as palavras de ordem eram econômicas. As que eram proferidas pareciam incomuns para ouvidos treinados com músicas melodiosas e leituras afeitas a grandes narrativas ou ao manifesto comunista. Tudo era proferido num átimo e foi escrito quase que em monossílabos. Cartazes produzidos na ocasião. Nada muito elaborado. Pressão contra os partidos, por mais de esquerda que fossem. Aliás, o Chico Alencar (PSOL) foi o único parlamentar que vi. Ele era mais um anônimo no meio dos 100 mil.
De tudo que pude ver e concordando com muitos que já se manifestaram, ao apontarem como estopim os gargalos da infraestrutura urbana, custo de vida, gastos exorbitantes com a Copa, um Estado repressor com uma polícia despreparada etc… etc…- há algo que me chama a atenção tanto quanto essas questões tangíveis. Essas, para mim, não passam de um emaranhado de átomos que compõem uma molécula multiforme. O maior ensinamento que posso extrair desses fatos que entram para a história da nossa sociedade, até agora é o quanto nossa juventude está descontente com as nossas instituições políticas, métodos de representação, do “jogo” democrático, das perspectivas apresentadas etc.. Isso, do meu ponto de vista, não significa que é a oportunidade da democracia direta e participativa florescer. Crer na possibilidade de se instituir algo novo e agregador que sintetize os interesses da coletividade? Também não identifico, no momento, essa possibilidade.
O que identifico, de maneira intuitiva e nada mais, é que esses episódios se juntam a eventos que empurram uma sociedade para mudanças. Uma mudança que não dá sinais sobre a sua profundidade ou temporalidade. O fato é que “alguma coisa está fora da ordem…” e enquanto isso, seguimos ativamente, antenados como participantes das manifestações, nutrindo nossas análises e utopias. Tudo isso no fio da navalha, pois o niilismo também é uma dimensão constitutiva desse processo, o que não desejamos é vê-lo como protagonista.
**Aercio de Oliveira é membro da FASE Rio