21/03/2013 09:46
Fátima Mello, do Núcleo de Justiça Ambiental e direitos da FASE*
Os governos do Brasil, Japão e Moçambique estão iniciando a execução de um grande programa no norte de Moçambique, no chamado Corredor de Nacala, região que possui características físicas e ambientais muito similares ao Cerrado brasileiro. Apesar do padrão vigente de falta de informação às comunidades que serão afetadas ou, muito pior, da disseminação de informações distorcidas e contraditórias, o que se diz é que o ProSavana tem um horizonte de duração de 30 anos e abrangerá uma área estimada em 14,5 milhões de hectares nas províncias de Nampula, Niassa e Zambezia, onde cerca de 5 milhões de camponeses vivem e produzem alimentos para o abastecimento local e regional. As comunidades camponesas estão concentradas exatamente onde está prevista a chegada dos investimentos do ProSavana.
Apesar da Agência Brasileira de Cooperação (ABC) insistir na tese de que as críticas em curso decorrem de falhas de comunicação, o diálogo com organizações e movimentos sociais parceiros em Moçambique evidencia que o problema é mais grave: o Brasil está exportando para a savana moçambicana seus históricos conflitos entre o modelo de monoculturas em larga escala do agronegócio voltadas para exportação e o sistema de produção de alimentos de base familiar e camponesa.
Em recente divulgação de informações sobre o ProSavana em Maputo, os responsáveis pelo programa apresentaram um mapa do Corredor de Nacala dividido em áreas que serão destinadas à atração de investidores privados para “culturas de alto valor” e “clusters agrícolas” para a produção de grãos (entre eles a soja) pela agricultura “empresarial”, produção familiar de alimentos pela “agricultura familiar”, grãos e algodão pela “agricultura empresarial de média e grande escalas”, caju e chá pela “agricultura empresarial média e familiar”, e a “produção integrada de alimentos e grãos” por todas as categorias. Ou seja, a velha tese da convivência possível e harmônica entre os sistemas de produção do grande agronegócio e da agricultura familiar e camponesa, que no Brasil é fonte de intensos conflitos.
Enquanto os governos garantem que o programa trabalhará com a pequena produção camponesa em Moçambique, em 2011 a ABC ajudou a organizar a viagem de um grupo de 40 empresários da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), da região do Cerrado, estado de Mato Grosso, para identificarem oportunidades de negócios no Corredor de Nacala. O presidente da Associação Mato-Grossense dos Produtores de Algodão (Ampa) afirmou que “Moçambique é um Mato Grosso no meio da África, com terra de graça, sem tanto impedimento ambiental e frete mais barato para a China” . São inúmeras as notícias de imprensa que falam de uma reprodução em Moçambique do Prodecer, o desastre socioambiental implantado pela cooperação japonesa no Cerrado brasileiro, que expulsou populações tradicionais de seus territórios, abriu um oceano de monoculturas para exportação e inundou a região de agrotóxicos.
Até agora se diz que o ProSavana terá 3 eixos: um de fortalecimento institucional e pesquisa; um segundo de montagem de um estudo base para a elaboração do Plano Diretor (a instituição escolhida para elaborar o estudo é a GV Agro); e um terceiro de extensão e modelos onde afirma-se que MDA, Emater entre outros atuariam a favor das demandas da sociedade civil de apoio aos pequenos produtores. Em resposta às demandas de entidades e redes como UNAC, ORAM, ROSA, Plataforma de Organizações da Sociedade Civil de Nampula, MUGED, Fórum Terra, União Provincial de Camponeses de Niassa, Justiça Ambiental entre muitas outras por informações, acesso às versões do Plano Diretor em elaboração e que as comunidades camponesas sejam consultadas, as autoridades brasileiras afirmam que o Plano Diretor será divulgado da melhor forma possível quando estiver finalizado. Ou seja, um estudo com base na GV Agro está em elaboração sem que as entidades que representam os milhões de camponeses que vivem na região sejam sequer consultadas. Apenas receberão a informação quando o Plano Diretor estiver pronto. Eventos de lançamento de versões do Plano Diretor são realizados, visando transmitir alguma informação, mas não para um diálogo qualificado nem para colher demandas e propostas das organizações e movimentos sociais.
Conversando com camponeses ao longo do Corredor de Nacala fica claro que brasileiros e japoneses estão indo às comunidades para avisar que o ProSavana está chegando. Depois, afirmarão que fizeram as chamadas consultas à sociedade civil. Isso que estão fazendo não é consulta; até agora o que existe é um grave problema de metodologia na definição dos conteúdos e dos interesses que serão atendidos pelo programa, que estão sendo definidos de cima para baixo, pelos governos e empresas interessadas.
Percorrendo o Corredor de Nacala fica muito claro o que afirmam as organizações e movimentos sociais de Moçambique: a região é toda povoada por comunidades camponesas, que com seus sistemas de produção em pousio cultivam milho (o principal alimento do país), mandioca, feijão, amendoim. Ali vivem, produzem, realizam suas festas, desenvolvem em seus territórios relações familiares e comunitárias. Na região vivem cerca de 5 milhões de camponeses. As entidades e movimentos que os representam identificam a insegurança alimentar como um grande problema no país, e desejam que a produção de alimentos realizada pelo sistema da agricultura familiar e camponesa seja fortalecida. Suas propostas incluem crédito para o fortalecimento de sua produção, apoio à comercialização e compra da produção por preço justo, apoio às associações de pequenos produtores e entidades criadas pelas comunidades. Todos querem participar de programas que apoiem seus sistemas de produção. Depois de escutar e dialogar com eles ao longo do Corredor e ver suas esperanças de que o ProSavana poderia ir ao encontro de suas propostas, quando se chega à Nacala o choque é gritante: uma cidade tomada pela construção de uma gigantesca infraestrutura de mega armazéns, portos e um aeroporto (construído pela Odebrecht) para exportar a produção da região.
Muitos problemas precisam ser enfrentados. O direito dos camponeses à terra é o principal. A Lei de Terras de Moçambique lhes dá o direito de uso da terra, que é pública. O direito de uso será concedido às empresas? Como ficará a situação dos camponeses? Como diz um membro da Plataforma de Organizações da Sociedade Civil de Nampula, do centro do Corredor até Nampula “não existe área com mais de 10 hectares de terras desocupada”. Em Niassa as entidades afirmam que a província é toda povoada, exceto nas montanhas, e que todo o Corredor onde está prevista a chegada do ProSavana é a área mais habitada. Os governos admitem que haverá reassentamentos.
As entidades estão vigilantes e mobilizadas para não permitirem mudanças contrárias aos interesses dos camponeses na Lei de Terras e na legislação sobre sementes, que corre o risco de ser alterada para viabilizar o uso de transgênicos. Estão preocupados com o modelo de monocultivos em larga escala e intensivo em uso de agrotóxicos que conheceram quando visitaram o estado do Mato Grosso e a área do Prodecer. Enquanto isso, realizam ações de resistência produtiva e de fortalecimento de alternativas, como é o caso do intercâmbio entre UNAC e MPA/Via Campesina sobre sementes nativas.
Há uma década, por orientação do presidente Lula, a política externa brasileira começou a se abrir ao diálogo com organizações e movimentos sociais. Com isso se fortaleceu a necessária disputa de rumos sobre a presença do Brasil no mundo, pois ela é o espelho da correlação de forças existente em nossa sociedade. O caso do ProSavana é crucial para que as conquistas dos movimentos sociais do campo brasileiro a favor da segurança e soberania alimentar, traduzidas em programas de apoio à produção e comercialização da produção familiar e camponesa, sejam refletidas na presença brasileira no Corredor de Nacala.
Afinal, é disso que os camponeses e pequenos produtores precisam – no Brasil e em Moçambique – para se fortalecerem contra as injustiças sociais e ambientais e violações de direitos cometidas pelo modelo do agronegócio, para garantirem o direito à terra, à segurança e à soberania alimentar da população. Que a presença do Brasil em Moçambique fortaleça os direitos dos camponeses, e que assim o Brasil seja capaz de demonstrar na prática que sua crescente presença como ator global visa de fato reduzir as desigualdades e fazer justiça.
(*) Agradecimentos a UNAC, ORAM e Oxfam Internacional no Brasil e Moçambique.