Elaine Dal Gobbo
14/08/2024 17:00
“Aqui estamos na eminência de ter um porto. Para beneficiar a quem? A população local? Como é que ficam os pescadores, que há muitos anos, há séculos, tiram seu sustento do rio, do mar? Estamos aqui não somente para preservar a igreja, mas também este lugar, as pessoas que aqui habitam e tiram seu sustento desse lugar, os animais que ficam aqui em volta, as plantas, muitas delas raras, que ficam aqui em volta. Nós não queremos que isso seja destruído!”.
A fala crítica à construção do Porto Central é do bispo da Diocese de Cachoeiro de Itapemirim, Dom Luiz Fernando Lisboa, e foi um dos pontos marcantes da Romaria de Nossa Senhora das Neves, realizada nessa segunda-feira (5), em homenagem à padroeira da cidade de Presidente Kennedy, no sul do Espírito Santo.
A Romaria contou com uma mobilização contra o empreendimento, com a divulgação de um abaixo-assinado, protagonizada pela Campanha Nem um Poço a Mais, em articulação com a Comissão de Justiça e Paz (CJP) e a Pastoral da Ecologia Integral, juntamente com entidades como a Federação dos Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) e Restauração e Ecodesenvolvimento da Bacia Hidrográfica do Itabapoana (Redi).
A escolha do local foi resultado dos impactos previstos à igreja de Nossa Senhora das Neves, datada de 1694, que “ficará ilhada em meio ao parque industrial”, como alerta a integrante da Fase e ativista da Campanha Nem Um Poço a Mais, Flávia Bernardes. A afirmação se baseia no fato de que o porto avançará até o Santuário, onde de um lado será construído o estacionamento dos caminhões, e do outro, o espaço para tonéis de até 20 metros. Além disso, a estrada do santuário vai desaparecer, para dar lugar ao canal de acesso do porto.
Outro problema é que a igreja é localizada em uma área de alagado. O porto, ao seu redor, ficará em uma altura de 4,5 metros acima. Portanto, em caso de alagamento, a água seguirá para a área da igreja.
Os danos, porém, vão além dos que podem ser causados ao patrimônio histórico, religioso e cultural da cidade. Flávia ressalta que a área de construção do porto é de Mata Atlântica, e está prevista a devastação de mais de 1 mil hectares. A impossibilidade de continuidade da atividade pesqueira, prejudicando famílias de todo o litoral sul, é outro impacto preocupante na região. Ela destaca que os pescadores não têm sido reconhecidos como comunidade tradicional e são ignorados dos diálogos sobre formas de compensação.
A chegada de mais de 4 mil homens para trabalhar na região no período de instalação do empreendimento também é questionada, uma vez que se teme pelo aumento de casos de violência contra a mulher e meninas, como a doméstica e o aliciamento de crianças para a prostituição. Isso pode acarretar, ainda, no aumento do tráfico de drogas, do alcoolismo, da violência sexual”, diz Flávia, rememorando os processos registrados em outras áreas portuárias do Espírito Santo, como em Barra do Riacho, Aracruz, no norte.
A ativista informa, ainda, que, para a construção do Porto Central, já foram liberadas três licenças que possibilitam a retirada das pedras do Pico da Serrinha para fazer um enrocamento no mar. Assim, aponta, “uma montanha vai sumir” e as pedras terão que ser transportadas em caminhões, aumentando o tráfego e a probabilidade de acidentes de trânsito.
Flávia relata que experiências anteriores também mostram que grande parte dos trabalhadores da fase de instalação são dispensados posteriormente, permanecendo na região sem oportunidades de trabalho. Já as áreas técnicas, normalmente são ocupadas por pessoas que vêm de fora. No final, aponta, acabam sendo destinados aos moradores o subemprego, normalmente via terceirização. “Para quem é esse porto e pra quê?”, questiona, e acrescenta: “Não vai gerar riqueza, porque tem isenção de imposto municipal, estadual e federal, e ainda vai sacrificar as riquezas existentes”.
Apoio da Pastoral da Ecologia Integral
Dom Luiz Fernando Lisboa não foi o único bispo a se manifestar contra a construção do porto. Bispo referencial para a Pastoral da Ecologia Integral, Dom Roberto Ferrería Paz, da Diocese de Campos de Goytacazes, no Rio de Janeiro, encaminhou um representante, que foi o articulador das pastorais da Ecologia Integral no Brasil, Ângelo José Ignácio, que também atua nessa pastoral na Arquidiocese do Rio de Janeiro.
Ângelo destaca que, diante da proximidade com o Rio de Janeiro, os danos a serem causados pela construção do porto em Presidente Kennedy afetarão também o outro estado. Ele aponta, ainda, que a mesma mobilização é realizada em cidades do Rio de Janeiro onde a construção de novos portos também trará danos para a população, como em Macaé, Jacuné, Itaguaí e na Capital. Para ele, o fato de o porto de Açu, no estado do Rio de Janeiro, perto de Presidente Kennedy, ter apenas 20% da sua capacidade funcionando,é uma prova de que não há necessidade da construção do Porto Central.
“O porto de Açu não serviu para nada, só para destruir e tirar as pessoas de suas casas. No Porto Central é a mesma lógica, vão fazer um porto para nada”, enfatiza, destacando que para a instalação de Açu, há cerca de 10 anos, muitos moradores tiveram suas casas desapropriadas e até hoje não receberam nada. Em algumas áreas nas quais estavam previstas instalações do porto, denuncia, foram construídos prédios fechados.
“A população precisa estar atenta. Quem sofre as consequências dos danos é ela. O governante não pode fazer o que quer. Vivemos em uma república, e não em um reinado, portanto, tem que conversar com a comunidade. A gente precisa sair do entendimento monárquico de que o governante pode fazer o que quiser”, salienta.
O porto
Previsto para ocupar uma área de 20 milhões de metros quadrados na foz do rio Itabapoana, na divisa do Espírito Santo com o Rio de Janeiro, o Porto Central deverá impactar pelo menos 400 famílias ribeirinhas que vivem da pesca, além de gerar diversos impactos socioambientais e nos modos de vida de diversas comunidades da região.
Em maio de 2023, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Ibama) forneceu a licença de instalação do Porto Central, um complexo portuário estimado em R$ 5 bilhões, mas que não tem nenhum valor previsto como compensação à comunidade pesqueira da região.
O projeto é de 2011, mas, desde que foi protocolado, não conseguiu se viabilizar. Nesse período, houve mudanças nos arranjos econômicos, com a saída do Porto de Roterdã como um dos investidores. Para a viabilização dos licenciamentos, também se adotou uma estratégia de avanço em fases distintas.
Em maio, o Porto Central noticiou a assinatura de um memorando de entendimentos com a empresa europeia M.A.R.S. Europe A/S, uma subsidiária europeia da empresa M.A.R.S. Inc, dos Estados Unidos. Segundo o empreendimento, “a parceria visa realizar pesquisas aprofundadas para apurar a viabilidade e os potenciais benefícios de um projeto desse tipo no sul capixaba, reforçando um compromisso com práticas sustentáveis e desenvolvimento econômico”. Não foram divulgados valores de investimento.
Questionamentos
Em junho deste ano, a deputada estadual Camila Valadão (Psol) encaminhou ofícios ao governo estadual requerendo informações sobre um recurso de R$ 8 milhões de compensação por danos ambientais; indenização a pescadores; e de plano de prevenção à violência sexual de mulheres. Também foram enviados ofícios ao Ministério Público, Defensoria Pública do Estado (DPES) e Conselho Estadual de Cultura (CEC), a respeito da criação de uma área de preservação, das consultas feitas à população sobre o porto e da proteção do Santuário e da procissão de Nossa Senhora das Neves.
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*Jornalista do Século Diário