Evanildo Barbosa
04/09/2024 15:17

Nos últimos anos a FASE tem contribuído para o debate nacional sobre a retomada do país. Se essa era uma pauta política das organizações da sociedade civil, nascida nos anos 90 pelo ideário de um novo mundo possível e que mobilizava nossa inteligência coletiva a propor as alternativas para o país, na década passada ela ganhou em importância em diversidade de concepções e de sentidos (os mais distintos) sobre os caminhos da “Retomada” e, dentre outros, convidou também a FASE a oferecer elementos a esse debate que muito se fez presente na transição participativa do atual governo Lula.

É sabido que após o golpe contra a presidenta Dilma o Brasil entrou em rota de colisão consigo mesmo porque grupos e partidos políticos de direita que promoveram essa situação se beneficiaram direta, econômica e eleitoralmente dela. Esse ambiente propício ao conservadorismo da vez também jogou a sociedade numa das quadras mais ultrajantes da história recente da República pós-golpe de 64, o que nos faz chegar em 2024 com profundas preocupações.  

Daí tudo se fez: desde a esses grupos e partidos passarem a promover ataques contra nossa jovem democracia, solapar direitos já conquistados e suas normativas, enfraquecendo o Estado e entregando-o aos interesses dos bancos e financistas, além de tentarem novo golpe dessa feita com o já empossado governo do presidente Lula. 

Esses grupos não pararam por aí e, hoje, formam a maioria do Congresso Nacional e permanecem atuantes contra os interesses do país, associados à extrema-direita que assombra nosso cotidiano. E é mergulhado nesse contexto que outra vez estamos às vésperas de um novo processo eleitoral, as Eleições Municipais de 2024, cujos resultados muito vai nos dizer o que esperar do processo eleitoral de 2026.

Apesar dos debates e das iniciativas de retomada do país e de nossa democracia com a eleição do governo Lula, o esforço da retomada do Estado, das políticas públicas, das agendas e debates públicos envolvendo a volta da participação popular via conferências, conselhos e outras instâncias de relevância para o Brasil e para o mundo, o debate em si sobre a aposta numa retomada “social, econômica e ambiental comprometida com a superação da fome e das desigualdades, com proteção da vida, dos direitos e da nossa sociobiodiversidade”, como a FASE reivindicou, encontra-se espreitado por agendas de urgências ou por outros meandros da conjuntura que só distancia o país da pergunta vital: Retomada para que, para quem e como?

A combinação deflagrada por essas três perguntas que a FASE fez lá em 2022 e, agora, as reapresenta para o debate eleitoral, estrutura uma concepção de país que ainda está longe de ser avistada nas propagandas e campanhas já iniciadas e, muito incrivelmente, está a milhares de quilômetros das pautas dos partidos políticos, suas coligações, federações e arranjos eleitorais do país nesse momento eleitoral. 

Sem pessimismo completo com a situação de agora já que poucas semanas nos separam do primeiro turno das eleições, não se pode escamotear que é bem visível o desprezo das campanhas eleitorais nos municípios por proposições e planos verdadeiramente relevantes para a população local, salvo poucas exceções que, em geral, só existem porque redes, fóruns, articulações e coletivos da sociedade civil têm elaborado cartas e documentos com plataformas baseadas na defesa dos direitos coletivos, o que exerce uma pressão necessária sobre candidaturas locais e sobre a pauta eleitoral nem que seja no nosso campo de relações políticas históricas. 

Mas, em geral, o que temos visto é foco no candidato e não no plano. E isso só piorou porque agora a campanha política se faz praticamente via redes sociais de influenciadores e não na disputa, no debate e no convencimento em torno de um plano de governo, mínimo que seja, mas um plano. É o descarte de uma modalidade da política assentada em compromissos cidadãos para dar lugar a influenciadores e seus personalismos que nada tem a ver com gestão pública de interesses públicos. O tema da gestão democrática das cidades, por exemplo, sumiu das campanhas.

Então o sentido da retomada, essa que, como frisou a FASE, estaria “alicerçada na defesa dos sujeitos de direitos e da democracia, com a efetiva participação e controle social na elaboração de políticas públicas com foco na superação da fome e na defesa dos bens comuns” é tanto uma lacuna suspensa pelo pragmatismo que setores progressistas empreendeu para  sustentar o necessário e sempre difícil embate com a extrema-direita – lacuna essa que revela um falso vazio de projeto pro futuro do país porque esse suposto vazio é a triste metáfora da morte lenta da política e do Estado como apostamos e conhecemos desde a redemocratização -, como também é ambiente propício para que a opinião pública, o eleitorado, o povo enfim não consiga estabelecer a diferença real que existe entre as forças políticas país afora, reduzindo quase toda nossa potência societária e cidadã ou ao lulismo ou ao bolsonarismo, ambos vivendo seu momento de autofagia quando se abre a porteira da política para a entrada daqueles que estão em diálogo direto com seguidores nas redes sociais, oferecendo a eles a agenda mais conservadora e mais deletéria que uma extrema-direita municipal tem conseguido em período eleitoral.

Analistas políticos como Marco Nobre têm chamado a atenção para a relação privilegiada que uma espécie de “bolsonarismo digital” tem sobre o contexto eleitoral de 2024. Uma primeira reflexão é que as eleições municipais desse ano têm profunda ligação com a disputa eleitoral na Câmara Federal, ou seja, a movimentação do Artur Lira na construção de pautas e fatos polêmicos recentes tanto é para agradar a direita mais tradicional como a extrema-direita beligerante com vistas a fazer seu sucessor. Para isso, o termômetro será o resultado das eleições municipais que servirá como um balizador para tal disputa no Congresso, bem como, por óbvio, acumulará pontos para a disputa presidencial de 2026. Noutra oportunidade poderemos refletir acerca do peso das Eleições nos EUA sobre a disputa presidencial no Brasil que aí já está (e os riscos de a democracia não ser mais um “solo comum” nem aos liberais mais tradicionais caso se amplie a ascensão da extrema direita conforme temos assistido na Europa).

De outro lado, Nobre chama a atenção para o fato de que o declínio do controle social do orçamento e das políticas em curso no Câmara, por meios das chamadas emendas parlamentares e seus correlatos, e a vigência de um perfil de campanha municipal que se transmuta de “promessas tradicionais de campanha” para o status de “campanha de autoajuda ao eleitor”, via de regra desenvolvida por perfil de “candidato influencer”, são dois dos fenômenos que corroboram para a decadência do outrora “voto partidário” diante do ascendente “voto personal nominal”, o que é uma demonstração de por onde poderá se configurará a soma total de intenção de voto país afora. Espera-se que não, pois, havendo luz no fundo do túnel, essa pode mobilizando o voto em favor de candidaturas que se perguntam e oferecem caminhos para o debate da retomada do seu município: para que, para quem e como deve ser a retomada da gestão pública dos interesses coletivos.

 

 

*Diretor Executivo Adjunto