Aercio Barbosa de Oliveira
14/10/2024 13:10
A primeira parte do título deste texto sobre o resultado das eleições de 6 de outubro de 2024 é o mesmo do filme dos diretores Daniel Kwan e Daniel Scheinert lançado no Brasil em 2022. Como toda boa obra estética, o filme dos Daniels gera diferentes sentimentos a quem se dispõe dele fruir. Aborda desejos, frustrações, mundos paralelos, sonegação de imposto, diálogo existencial entre pedras, violência etc., que pouco lembra a nossa recente eleição. A semelhança que identifico entre o sufrágio e o referido filme, que me fez recorrer ao título, é só a simultaneidade dos eventos e nada mais. Ao fazer um primeiro travelling apressado, próximo às cenas que a nossa eleição mais recente produziu, vejo atmosfera, personagens e histórias abundantes para se escrever roteiros cinematográficos, com narrativa similar ao filme dos Daniels. Um breve spoiler: ninguém encontrará neste texto palavras alentadoras para superar essa configuração sociopolítica. Assim, apresento a seguir algumas “cenas” que as avalio merecedoras de um movimento de câmera dolly zoom.
CENA 1 – OUTSIDERS & ESTABLISHMENT
Nesta eleição, um partido que está dentro da institucionalidade até o último fio de cabelo obteve o maior número de prefeituras do país. O Partido Social Democrático (PSD), liderado por Gilberto Kassab, atual secretário do governo do estado de São Paulo, a partir de janeiro de 2025, assumirá o comando de 886 prefeituras. A segunda posição passa a ser do MDB, com 852 prefeituras. O partido de Kassab, igual ao MDB, ocupa três ministérios do Governo Lula.
Dessa cena, podemos inferir alguns fenômenos. O primeiro é que a direita institucionalizada se reorganiza, o que deixa o PSD com o potencial para liderá-la. É bom lembrarmos que Kassab está no governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos), do estado de São Paulo, e é um dos principais pilares da candidatura de Ricardo Nunes (MDB), que foi para o 2º turno. A candidatura de Nunes faz parte do plano de Kassab e Tarcísio, tanto para ampliar a área de influência e protagonismo do PSD, quanto assegurar ao atual governador de São Paulo uma base que catapulte a sua possível candidatura para disputar a presidência da república em 2026 ou 2030.
O segundo fenômeno é que, nesta eleição, a população, de maneira geral, não deu vazão ao sentimento da antipolítica ou antissistema, que ganhava terreno desde a operação Lava-Jato. Aliás, o outrora juiz que colaborou para aumentar esse sentimento, o senador Sérgio Moro, viu o insucesso das candidaturas que apoiou no Paraná. Caso emblemático do seu fracasso foi a chapa que concorreu à prefeitura de Curitiba, na qual Rosangela Moro, sua cônjuge, foi vice-prefeita. Abertas as urnas, a chapa não chegou a 7% dos votos válidos, amargando um quarto lugar. Em Curitiba, disputarão o 2º turno Eduardo Pimentel (PSD) e Cristina Graeml (Partido da Mulher Brasileira – PMB).
É cedo para afirmar que a maioria do eleitorado nacional não abraçou candidaturas “antissistema”, mas os resultados, até agora, mostram a força da institucionalidade, o poder de quem aproveita das condições existentes no sistema político. Contudo, chamou a atenção o elevado número de abstenção quando comparada às eleições municipais de 2016. Nesta eleição foi de 21,7%, enquanto naquela chegou a 17,58%. Há avaliações de que nas futuras eleições, diante da facilidade de justificar a ausência por meio da plataforma digital do E-título, as candidaturas além de apresentar suas propostas precisarão motivar as pessoas a saírem de casa para votar. Alguns chegaram a mencionar o risco das nossas eleições parecerem com as dos Estados Unidos, onde a abstenção é uma das mais altas do planeta. Aqui, no dia 6 de outubro de 2024, somando abstenção e votos inválidos (brancos e nulos), chegamos próximo a uma média de 40% dos eleitores.
CENA 2 – NICHOS, BICHOS, BOLHAS E LYOTARD*
Destacou-se o número de candidaturas eleitas que declararam ocupações como militares, policiais ou profissionais de segurança. Foram 856 candidaturas eleitas que declaram ser deste segmento. É o maior número da série histórica registrada desde 2012. Enquanto os que declararam ocupações de sacerdote ou líder religioso totalizaram 279 candidaturas eleitas. O Partido Liberal (PL), que abriga Jair Bolsonaro, é o partido com o maior número de eleitos destes segmentos, 168 e 38 respectivamente. Por outro lado, nesta eleição se bateu o recorde do segmento LGBTQIA+, ao eleger 225 candidaturas. Resultado que representa um aumento de 130% em relação às eleições de 2020. Outro caso de considerável desempenho foi o do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) ao eleger 110 candidaturas para ocupar o legislativo municipal e conquistar 23 prefeituras ou vice-prefeituras.
Ao tratar de nichos e bolhas eleitorais, temos o jovem vereador Lucas Pavanato, eleito para a Câmara de São Paulo com 161 mil votos. Militante, jovem, LGBTQIA+fóbico, iniciado na luta social neofacista nas mobilizações do Movimento Brasil Livre (MBL), nesta eleição teve como principal bandeira proibir a entrada de transexuais em banheiros “opostos aos sexos biológicos”. Do lado da esquerda, Rick Azevedo, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), obteve 29 mil votos, sendo o 12º candidato mais votado para a Câmara do Rio de Janeiro. Rick se adequa às novas gramáticas do associativismo contemporâneo. Ele fundou nas redes sociais, antes de se filiar ao PSOL, o movimento Vida Além do Trabalho (VAT). Nas redes sociais, divulgava abaixo-assinado e colocava vídeos de seu périplo em transportes e espaços públicos defendendo o fim da escala de trabalho 6×1 prevista na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Esses resultados reforçam a tendência da importância das lideranças políticas, partidos políticos e movimentos e organizações da sociedade civil assumirem estratégias de comunicação que facilitem o engajamento nas redes sociais. Nesta eleição foi possível ver o aperfeiçoamento da técnica e o domínio dos elementos que são parte da “economia da atenção”. Não importa se é uma agenda progressista ou conservadora, o fundamental é ter a capacidade de usar o meio e a forma adequada para difundir agendas e causas de maneira que flechem a subjetividade nas plataformas disponíveis na infraestrutura digital. Na linha da segmentação, da combinação do virtual com a mobilização presencial, com uma agenda que toca diretamente na vida das pessoas, temos como exemplo de sucesso o MST. Em um país que voltou ao mapa da fome, não é preciso recorrer à hermenêutica para entender o sentido do slogan “Comida de Verdade”.
No meio desse hibridismo, com a emergência de novas maneiras de protestar e formar grupos de pressão, movimentos sociais e ativistas ingressam em partidos somente para disputar eleição. São pessoas que não se identificam com as diretrizes do partido e, pouco menos, com a sua dinâmica de funcionamento, o que dificulta o estabelecimento de uma vida partidária orgânica. O Brasil está entre os poucos países do mundo em que a legislação eleitoral não permite candidaturas avulsas. Diferente de alguns dos nossos vizinhos do continente, como Chile, Peru, Paraguai, Equador e Colômbia. Esta cena demonstra a dificuldade dos partidos políticos, principalmente os de esquerda, de se comunicar com a população e absorver os novos arranjos do ativismo político.
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*Jean-François Lyotard (1923-1998) foi um filósofo francês pós-estruturalista autor do livro A condição pós-moderna. Nesta obra publicada em 1979, Lyotard aborda transformações culturais, sobretudo nos fundamentos epistemológicos estabelecidos na era moderna.
PLOT POINT – A COMUNHÃO DO NEOLIBERALISMO COM O NEOFASCISMO
Pablo Marçal, 37 anos, nascido em Goiânia, capital de Goiás, empresário e influenciador digital, candidato à prefeitura de São Paulo pelo Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), sem tempo para fazer campanha eleitoral nas emissoras de rádio e televisão, obteve 28,14% dos votos válidos, ante 29,07% de Guilherme Boulos (PSOL) e 29,48% de Ricardo Nunes (MDB). Mesmo sendo o candidato a prefeito com a maior rejeição, 53%, faltaram poucos votos para Marçal chegar ao 2º turno.
A candidatura de Marçal sintetiza diferentes fenômenos do nosso ambiente político e cultural. Ele foi capaz de catalisar a divisão dos neofascistas e mostrar que Jair Bolsonaro perde força. Tudo indica que, se continuar inelegível, Bolsonaro não será mais o único a vocalizar agendas e interesses de parte da nossa sociedade, a qual, bem antes da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em março de 1964, demonstra titânico pendor conservador. Nesta eleição vimos cenas que enquadraram potenciais representantes deste veio político para a disputa de 2026. Por exemplo, o jovem deputado federal Nikolas Ferreira (PL) foi o grande cabo eleitoral de Marçal e de muitas candidaturas do seu partido. Essa estratégia o projetou ainda mais no cenário político nacional. É bom lembrar que Jair Bolsonaro, que apoiou envergonhadamente Ricardo Nunes (MDB), é do mesmo PL de Nikolas, que está sob o comando de Valdemar Costa Neto. As rachaduras entre as lideranças neofacistas ficaram evidentes. Marçal, na manhã de segunda-feira 7, afirmou à imprensa que “2026 é logo ali” e será o presidente da República mais novo da nossa história.
O goianiense influencer, que quando jovem integrava a igreja evangélica Videira, cujo lema é “uma igreja de vencedores”, em dezembro de 2021 criou o movimento Quartel General do Reino (QGR). Em um dos trechos do manual do QGR está escrito que “As famílias vão prosperar, aprenderão a monetizar seu propósito, pois estarão investindo em renda eterna”. Essa mistura de fé, dinheiro, otimização das estruturas digitais e a liberdade para dispensar a mediação do pastor e de templos para manifestar devoção ao Senhor, é patente ameaça aos próceres da teologia da prosperidade. O pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, que o diga. Nesta eleição, Malafaia, que apoia Ricardo Nunes (MDB), foi um dos principais adversários de Marçal. Além desses componentes, que se juntam ao machismo, LGBTQIA+fobia e racismo, Marçal se mostra mais antissistema que Bolsonaro e usa com primor as redes digitais. Não por acaso, ele chega para votar descalço, de bermuda e faltando poucos minutos para o término das eleições. Um jeito e indumentária que contrastam com as dos seus adversários e adversárias. O empresário influencer é parte do segmento que coloca o Brasil entre os três países do mundo com o maior número de influenciadores digitais – só na plataforma Instagram identificaram um total de 500 mil influencers.
O conjunto dessas iniciativas que Marçal impulsiona e lidera, de mistura de fés, a do mundo transcendente e a do mundo ordinário, tem sido denominado teologia coaching. Provavelmente seu estilo justifique algumas pesquisas eleitorais que mostram que a maioria do seu eleitorado é formado por jovens do sexo masculino, evangélicos e com salários de 3 a 5 mil reais.
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Excelente matéria publica pelo site GGN pode ser encontrada no link https://jornalggn.com.br/politica/ficha-religiosa-pablo-marcal-conheca-movimento-candidato/
EPÍLOGO: FRAMING EMBAÇADO
Não sabemos se Pablo Marçal se manterá elegível para a eleição de 2026. Há contra ele cerca de 150 processos. Entre eles, o crime eleitoral que ele cometeu na véspera da eleição, ao colocar nas redes sociais um laudo falso contra Guilherme Boulos. De qualquer forma, não dá para ignorar a relevância de uma candidatura como a do goianiense influencer ou a de um similar. As redes sociais continuam tendo impacto no eleitorado, mesmo pesquisas indicando que televisão e rádio voltaram a ser os principais veículos para obter informações sobre propostas e candidaturas. A despeito disso, os partidos do “sistema”, como o PSD, MDB, PL, entre outros, tiveram excelente desempenho.
Muitas cenas ficaram de fora deste texto-roteiro. Tivemos, no dia da eleição, homens armados e encapuzados recolhendo material de campanha que estava sendo distribuído próximo aos locais de votação. Esse episódio teve como cenário a cidade do Rio de Janeiro. No mesmo Rio, candidato a prefeito realizou “cãominhada” e o seu slogan foi “Por um Rio mais Caramelo”. A taxa de reeleição de quem disputou a prefeitura foi de 81%, altíssima. O que mostra o poder da “máquina” administrativa e das emendas parlamentares PIX, responsáveis pela reeleição de centenas de prefeitos. Tivemos o racha entre as candidaturas vinculadas a organizações criminosas em muitas cidades do país, que dominam territórios e ocupam postos dentro de governos e no legislativo. O fato do prefeito de Porto Alegre passar para o 2º turno após uma tragédia climática de “proporções bíblicas” é um caso que mereceria ser analisado com atenção. Da mesma forma, o ocaso do Partido Social Democrata Brasileiro (PSDB), cujo seu candidato na capital de São Paulo, berço dos tucanos, recebeu 1,8% dos votos válidos, além de trocar a força dos argumentos pela força de uma cadeirada após ser provocado pelo seu oponente durante debate na TV. A ida de Guilherme Boulos para o 2º turno na capital paulista; a reeleição do prefeito de Recife, João Campos (PSB), com quase 80% dos votos; e tantas outras cenas desta eleição mereciam enquadramento e análise.
Enfim, as eleições, até agora – ainda temos o segundo turno em 52 cidades, entre elas São Paulo –, evidenciaram a complexidade social brasileira. Bolhas, mundos paralelos, reconfiguração das práticas religiosas conservadoras, avanço das direitas, alguns ganhos na esquerda. Fenômenos políticos coexistem, são potencializados num período em que o uso da infraestrutura digital, a devoção ao mercado, o empreendedorismo de si, o culto à ignorância e à estupidez, o egotismo, o ódio, o desprezo e apreço ao sistema político da democracia liberal ganham corações e mentes. Quando sairemos dessa Era Hadeana da política mundial não sabemos. Mas dá para saber que continuaremos, frente a esse pluralismo político, produzindo inovações, angustiados, tendo êxtases fugazes, imensas disputas, mas tédio, jamais!!!!
P.S.: então, se você teve paciência de chegar até aqui, recomendo assistir “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo”.
*Coordenador da FASE Rio de Janeiro