28/10/2025 13:19

O ano era 1985 e o Brasil voltava a ter um presidente civil depois de 21 anos de governo militar, duas décadas de violenta repressão e tentativas de silenciamento das vozes que desejavam romper com tal situação.

No ano anterior, 1984, tivemos uma das maiores mobilizações já vividas na sociedade brasileira: o Movimento Diretas Já!. E, mesmo que não tenhamos conseguido alcançar o nosso objetivo naquele momento, expressamos, através da ocupação de ruas e praças, das palavras gritadas em comícios e em conversas cotidianas, que já não era mais possível nos calar.

O Movimento Diretas Já! não começou em 1984, pois nada começa com data marcada. Desde meados da década de 1970 a vida cotidiana produzia, nas brechas da repressão, movimentos de resistência e transformações, e com eles a emergência de formas organizativas diversas que denunciavam e reivindicavam a resolução dos inúmeros problemas estruturais por muito tempo silenciados e ocultados. Foram as associações de periferias e favelas, que lutavam por moradia, saúde, escola, creche e transporte.

Foram os grupos de mulheres que denunciavam a violência e as desigualdades de gênero. Foram os movimentos negros enfrentando o racismo. Foram os grupos juvenis reivindicando lazer, educação e oportunidades. Foram os coletivos que tematizavam a liberdade de identidade e orientação sexual. Eram e são inúmeros grupos, coletivos e organizações que com suas lutas e palavras, não apenas buscavam a resolução de problemas concretos, mas criaram, em seus movimentos, a gramática dos direitos. Um dos fundamentos mais importantes dessa gramática era, e segue sendo, o direito de participar e decidir sobre os rumos de suas vidas e da sociedade. E isso significou- e significa- não só eleições diretas, mas principalmente definir quais são os problemas, suas causas e as maneiras pelas quais eles devem ser enfrentados.

Não é por acaso que os significados e regras da gramática dos direitos constituem os pilares da Constituição de 1988, dado que ela foi resultado dos processos políticos que se iniciaram no cotidiano e não o contrário, tanto que seguimos até hoje lutando das mais diversas formas para que muitos desses direitos sejam vivenciados concretamente pela maioria absoluta da população brasileira.

O ano era 1985, e o Fundo SAAP foi fundado. Mas, como já dissemos, nada começa com data marcada, pois a Fase já atuava desde 1961 nas lutas da sociedade brasileira e por isso sempre esteve muito próxima das movimentações que se desenvolviam durante o período da ditadura militar. Assim, a partir da escuta cotidiana das tantas vozes que se expressavam nos anos 1980 e do reconhecimento de que esses grupos, coletivos, organizações e movimentos instauravam novas formas e práticas políticas sociais, a Fase cria um novo sentido para a sua ação: o fortalecimento do conjunto associativo que emergia naquele momento.

Nesses começos, nos chamávamos apenas de SAAP – Serviço de Assessoria e Apoio a Projetos, pois a própria ideia de fundos, como conhecemos e nos nomeamos hoje, ainda não estava presente na sociedade brasileira. Como tudo o que tem a ver com processos sociais e políticos, a nossa história é feita de permanências e transformações.

Há 40 anos reconhecemos não só a importância desses grupos, coletivos e organizações, como também as persistentes desigualdades a que estão submetidos, e essas não se restringem às lutas que realizam, mas também às suas próprias condições de existência, em especial no que se refere ao acesso a recursos para financiar suas ações. Ou seja, não é possível ignorar que as mesmas dinâmicas estruturais das opressões e explorações que são enfrentadas pelas lutas desses grupos, coletivos e organizações, também operam para limitar a permanência e fortalecimento das mesmas. Para ajudar a enfrentar e romper tais limites, é que existimos.

Ao longo desses anos, milhares de projetos, vindos de organizações, grupos e coletivos de todo o Brasil, chegaram até o Fundo SAAP, demonstrando a força, o tamanho e a vitalidade do tecido associativo brasileiro. Em estudo que estamos desenvolvendo e que em breve será lançado dentro das comemorações dos nossos 40 anos, constatamos tanto a permanência, quanto a renovação constante das formas organizativas da sociedade brasileira. Apenas um exemplo: recebemos projetos de organizações criadas nos anos 1920 e 1935, bem como de coletivos surgidos em 2024!

Se, por um lado, a longevidade e a novidade apontam para a permanência das formas organizativas da sociedade civil e suas de lutas, por outro nos revelam também a extensão e gravidade das desigualdades, pois o que explica que uma organização com mais de um século de existência precise recorrer a editais de apoio a projetos de até R$ 12.000,00 para realizar suas ações, se não o preconceito, a discriminação e invisibilidade sofridas por determinados grupos no Brasil? O que explica que, nos últimos anos, tenham surgido tantas organizações de mães e familiares que enfrentam a violência do Estado se não a brutalidade do racismo e das desigualdades de classe em territórios de periferias e favelas? Não é preciso conhecer profundamente esse campo de luta para saber que há imensas dificuldades para o financiamento de suas ações.

São quatro décadas em que estamos nos movendo em parceria com esse imenso conjunto de organizações, grupos e coletivos em suas várias andanças, conquistas, invenções e dificuldades. Vozes tantas que conhecemos, encontramos, reencontramos e ainda vamos conhecer. Sabemos que não nos localizamos nos mesmos lugares, nossas condições são bem diversas. Mas, apesar dessas diferenças, apesar do pouco tempo que na maioria das vezes dura a nossa relação direta com os grupos, coletivos e organizações, há uma imensa reciprocidade, permanência e invenção entre nós e esse conjunto quase infinito – afinal, não sabemos o que o futuro produzirá.

Não existe sentido para a existência e fazer do Fundo SAAP a não ser estarmos sempre com a escuta e o olhar voltados para esses grupos, coletivos e organizações, aprendendo com suas movimentações, acompanhando os rumos e trajetos, nos espantando positivamente com suas criações, refletindo sobre suas dificuldades para encontrar as melhores estratégias que estão ao nosso alcance para seguir apoiando as suas existências e lutas. E, principalmente, quando no correr do nosso trabalho, nós dizemos, diante de um projeto: que incrível! Essa alegria faz parte e constrói o nosso dia a dia.

O ano é 2025. Seguimos com muitas lutas que permanecem há quatro décadas e outras que surgiram há pouco tempo. Os processos de transformação social e política seguem suas trajetórias, fazendo os movimentos da história, criando possibilidades e se defrontando com o incerto que todo caminho comporta.

A certeza que temos é que queremos seguir fazendo o que nos dá sentido e existência. E, por ser assim, na comemoração dos nossos 40 anos, agradecemos aos grupos, coletivos e organizações que cruzaram e fizeram – e fazem – conosco esse caminho.

Fundo SAAP