19/02/2010 16:41
Pedro Cláudio Cunca Bocayuva
Diretor da FASE
A naturalização do binômio economicismo e barbáriem, que estrutura o cotidiano brasileiro, está amparada numa institucionalidade perversa. A absolvição do Coronel Ubiratan Guimarães, comandante do massacre do Carandiru, as invasões da Rocinha e Vidigal, os ataques ao Bolsa Família, a transformação do espetáculo das CPIs em destruição da coerência e consistência da vida partidária com a desverticalização, o superávit fiscal, o perdão da dívida da oligarquia nordestina, a criminalização e violência conta o Movimento dos Atingidos por Barragens, o MST e o movimento indígena, representam a manutenção da violência institucional naturalizada no país.
O bloco das classes dominantes naturaliza o conformismo através do pensamento único neoliberal, através da violência da fabricação de verdades e espetáculos que forçam o conformismo e a desilusão. O transformismo que leva a uma adesão de parcelas do PT, através de um realismo subordinado, às práticas dominantes do modo clássico de relacionar sociedade política e sociedade civil, amplia a desilusão com a política. Essa marca que alcançou seu ápice em 2005 se transformou numa chaga aberta em 2006. A advertência do resultado do “cada um por si” (ou seja, o protesto pela falência dos sistemas de proteção e segurança) no referendo sobre a comercialização de armas, demonstrou o império do medo predominante nas mentalidades coletivas na vida cultural nacional. Para responder ao império do medo, cabe sustentar uma agenda nítida de radicalidade democrática. Esta é uma tarefa urgente das forças políticas e sociais interessadas em construir uma via democrática de mudança social, através de uma plataforma de mobilização que esclareça que caminho deve tomar uma frente ampla pela base. A perspectiva das reformas sociais se torna uma questão de caráter civilizatório para a nação brasileira no século 21.
O Brasil tem fome de direitos e de cultura, sendo que precisamos de governos e processos políticos que estejam à altura da tarefa de superação de desigualdades, combinando a construção de uma democracia ampliada internamente com uma abordagem crítica da nossa relação com a globalização financeirizada, aquela da reestruturação e da revolução informacional-comunicacional, e diante de uma uma crise ambiental atravesada pelo cenário de guerras, terror e violência. Cabe destacar a necessidade de ampliarmos a participação cidadã e de nossa intelectualidade no processo de integração sub-regional da América Latina. A realização do programa da democracia brasileira pela via democrática e de massas, a estratégia da “nova abolição”, o desenvolvimento das esferas públicas de controle e participação direta da população, a organização de nosso enorme “precariado” (classe trabalhadora precarizada), tudo depende de um processo complexo de unificação de redes de movimentos sociais. As redes sociais precisam ser capazes de explorar as oportunidades do espaço cibernético e da mídia, via universalização do direito à informação e à comunicação, por exemplo através do acesso aos recursos do FUST e pela participação na definição do padrão de televisão digital.
Isto exige a construção de um novo bloco político de alianças, pela igualdade e a liberdade, e o resgate do caráter programático da Constituição de 1988. Sem uma dinâmica de mobilização cidadã, não poderemos defender a sociedade e abrir uma nova etapa de poder democrático constituinte. Numa crise nacional e internacional prolongada, os ritmos da mudança estão marcados por incertezas e recomposições que articulam o embate molecular com a totalização molar da vida social.
Se cumprirmos o artigo 6 da Constituição, se garantirmos as reformas urbana e agrária, se ampliarmos a participação popular nos orçamentos públicos, se lutarmos pela política de segurança cidadã com a reforma da polícia, se garantirmos a segurança alimentar e a renda básica cidadã, se aprofundarmos as políticas de direitos civis e de ação afirmativa, estaremos então combatendo o apartheid social e territorial, a injustiça socioambiental e a estrutura histórica de segregação em matéria de classe, etnia, sexo e geração em nosso país.
Como afirmar uma plataforma anticonformista e antibarbárie que trabalhe os diferentes ritmos e urgências que atravessam a crise prolongada de hegemonia do nosso capitalismo dependente, autoritário, oligárquico e darwinista?
As tarefas ligadas ao processo de nossa democracia bloqueada não podem ser resolvidas “pelo alto”, com os métodos do realismo transformista que uniu o liberalismo e o aparelhismo no governo (desestruturando a vida partidária e sindical renovadora), nem tampouco pela coalizão de um centrão clientelista, nem pela manutenção da agenda Collor-FHC. Mas os ritmos e as urgências são diferenciados conforme o primado da agenda das grandes maiorias nos territórios que compõe o gigantesco mosaico chamado Brasil. Temos as várias questões nacionais ligadas à injustiça socioambiental e à violência urbana, os problemas de acesso à saúde e a educação, da precarização do trabalho, a questão alimentar e a exclusão do acesso a terra, assim como as questões da ausência de acesso à justiça, à moradia, ao saneamento básico, ao transporte coletivo etc, etc. Tudo isso sugere a necessidade de combinarmos o ritmo de definição das prioridades no plano local e regional, pela via da mobilização democrática e produtiva dos territórios (combinando desenvolvimento social com elevação do salário mínimo, a renda básica da cidadania e a economia solidária), mas com acesso aos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais, na forma de experimentos diretos na grande escala, com uso das políticas e fundos públicos em benefício das multidões.
O choque e a mobilização democrática radical, combinando republicanismo e redistribuição de renda, com o simultâneo desarmamento das violências institucionais e difusas dentro e fora do Estado, compõem uma estratégia que pode ajudar a barrar a corrupção e dar transparência ao uso púbico dos recursos. Mas isso depende de rompermos com a razão cínica que impede a revolução nas prioridades nacionais. Referimo-nos a algo que remonta à agenda Collor, que radicalizou uma estratégia indiscriminada de abertura e privatização expressada por defensores hipócritas de um economicismo selvagem de elites miméticas e da elevação da dívida interna, sustentando o império do medo na vida cotidiana.
Uma vez que o desenvolvimentismo e o populismo não podem ser solução, nem pela via de um chavismo nacional, nem pela via de uma nostalgia juscelinista, só nos resta tentar o caminho do processo de construção ativa de um novo modelo distributivo com base na radicalidade democrática, na renda da cidadania, nos direitos humanos e na sustentabilidade socioambiental. Cabe romper com a razão cínica das elites dominantes, através de uma ação coletiva voltada para políticas universais, com a mobilização ativa da sociedade a partir dos territórios dessa imensa nação. Trata-se de ampliar as alianças políticas democráticas e populares, fortalecer o projeto de uma inserção internacional cooperativa, com destaque para a criatividade nascida de uma nova cidadania global apoiada na inteligência coletiva do trabalho em escala global, que se opõe ao unilateralismo e à intolerância na luta pela construção da paz nos territórios.