29/11/2019 19:39

Ao completar, neste dia 30 de novembro, 58 anos de existência, o que a FASE tem a comemorar? No atual contexto de brutal degradação das condições de vida da população, de desconstrução de direitos, de retrocesso institucional e de tragédias ambientais, reafirmamos nossa disposição de nos somarmos a toda forma de resistência e às lutas pela construção de alternativas na perspectiva da defesa da democracia e dos bens comuns. Neste editorial, queremos fazer uma sucinta prestação de contas dos nossos esforços.

(Foto: Hellen Joplin)

A FASE vem mantendo, em quase seis décadas de atividade, o seu compromisso de apoio aos setores majoritários da população brasileira atingidos pelos processos de expropriação, superexploração, desconstrução de direitos e injustiça ambiental, que se abatem sobre a população ora em nome do desenvolvimento, ora em nome do ajuste e da austeridade. Com essa perspectiva, tem se empenhado, nacional e internacionalmente, em construir solidariedade com quem resiste no Brasil, na América Latina e no Sul Global¹ às estratégias das transnacionais que se contrapõem à existência dos povos indígenas, dos povos e comunidades tradicionais (quilombolas, agroextrativistas, pescadores tradicionais etc) e de seus territórios de vida. A FASE se coloca num campo de atuação que se contrapõe tanto ao anti-ambientalismo de Bolsonaro quanto às falsas soluções de mercado para a crise ambiental.

Vivenciamos este ano uma das maiores concentrações de fogo que a Amazônia brasileira já conheceu em sua história. Somente em agosto, o município de Altamira sofreu mais de 2 mil incêndios florestais²e registrou do início do ano até hoje um aumento de 188%³ deste tipo de ocorrências. A densa fumaça, que fez os olhos arderem, e o fogo intenso, que destruiu a biodiversidade, deram lugar a pastos para o gado e para a monocultura de commodities. Essa realidade oculta a perda das terras, a destruição das culturas e da sobrevivência dos povos da floresta, sejam eles povos indígenas, comunidades quilombolas, comunidades tradicionais extrativistas,agricultores familiares e assentados da reforma agrária, que têm como centro da sua qualidade de vida a convivência orgânica com a floresta em toda sua rica biodiversidade.

(Foto: Helena Palmquist/ MPF)

Nesta região, a FASE tem buscado articular dezenas de iniciativas de defesa de direitos territoriais, como a construção da Frente de Resistência em Defesa dos Territórios, a promoção de protocolos de consultas aos povos tradicionais , o fortalecimento da Articulação de Agroecologia da Amazônia (ANA Amazônia) que, nos últimos anos, se expandiu fortemente , o que muito contribui, através das suas caravanas agroecológicas, na troca de saberes populares e na construção da plataforma agroecológica, articulando e estimulando o desdobramento da luta contra os agrotóxicos. Além disso, junto com um conjunto de organizações, constituímos, há 16 anos, o Fundo Dema, como resposta a um crime ambiental no município de Altamira (PA). Suas iniciativas bem sucedidas indicam a presença de forças vivas que constroem, de modo positivo e sustentável, o intercâmbio de vida na biodiversidade da floresta amazônica.

Em Mato Grosso, área de transição entre a Amazônia, o Cerrado e Pantanal, a FASE enfrenta idêntico cenário de destruição. O desmatamento ampliou-se neste primeiro ano do governo Bolsonaro, como nos outros estados da Amazônia. Nesse estado, as queimadas se estendem para além da região amazônica, atingindo o Cerrado. Cabe destacar que o programa da FASE em Mato Grosso participa ativamente da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida.

(Foto: Gilka Resende/FASE)

Na Bahia, a intervenção educativa tem perseverado no fortalecimento da agricultura familiar, através da agroecologia, soberania e segurança alimentar e da construção social de mercados. A concentração da propriedade de terras e a minifundiarização permanecem elevadíssimas, e se constituem em preocupações essenciais para conformação da intervenção educativa do programa da FASE nesse estado. No Espírito Santo, a atuação da FASE está voltada para a defesa dos direitos e promoção dos modos de vida de povos e comunidades tradicionais e famílias das periferias urbanas, cujos territórios e bens comuns (água, terra, trabalho, floresta, alimento) vêm sendo devastados e expropriados pelo novo ciclo de expansão do desenvolvimento petroleiro e celulósico.

Nas cidades, o cenário da atuação da FASE é marcado pelo agravamento da desigualdade socioeconômica, pelo fim ou desconstrução das políticas públicas urbanas; pelo bloqueio dos canais formais de diálogo entre sociedade e poder público; pela criminalização da pobreza e das organizações e movimentos sociais; pelos ataques aos direitos políticos e à auto-organização da sociedade civil; pelo agravamento das injustiças e do racismo ambiental. Nesse sentido, temos buscado fortalecer os movimentos sociais urbanos, suas articulações, incidência política e lutas pelo direito à moradia, pela universalização dos serviços públicos de abastecimento de água e saneamento nas regiões metropolitanas do Rio de Janeiro, Recife e Belém.

(Foto: Thomas Bauer/CPT)

Em Pernambuco, a FASE busca integrar agendas do direito à cidade às lutas pelos direitos nas cidades, com ênfases socioambientais, alargadas para grupos como pescadoras(es), catadoras(es), mulheres e juventudes. Assim, é parte de uma iniciativa de articulação da pesca urbana no estado, realizando ações que envolvendo 1400 mulheres pescadoras artesanais, em 10 municípios situados no litoral e na região metropolitana do Recife. Diante das consequências do derramamento do óleo nas praias, agravadas pela inércia do governo federal, estamos atuando e visitando alguns dos municípios afetados por essa tragédia ambiental já amplamente divulgada, compartilhando e tomando conhecimento das dificuldades e dos obstáculos que ora se abatem sobre essas mulheres, que estão impedidas de retomarem suas atividades econômicas na pesca artesanal.

No caso do Rio de Janeiro, marcado pelo agravamento da violência que se abate sobre a população negra, pobre e favelada, exacerbado por uma política de segurança insana e genocida, o programa da FASE nesse estado se volta para o enfrentamento da violência institucional e o acompanhamento da mobilização das juventudes, que precisam ser auxiliados com iniciativas que tratem da proteção integral (física, psicológica, com o cuidado, e segurança digital), tanto para as pessoas que estão no centro dos conflitos, quanto para educadoras e educadores. A questão da moradia, as suas consequências e relações (regularização fundiária, abastecimento de água e saneamento, transporte etc) continuam sendo uma questão que exige mobilização.

(Foto: Gilka Resende/ FASE)

O crescimento das proposições e narrativas conservadoras, preconceituosas e incentivadoras do ódio e violência contra as mulheres também afetam o contexto de atuação da FASE. Tais discursos e práticas, de fundamento sexista, machista e racista, são produzidos tanto por setores da sociedade, quanto pelo Estado e seus aparelhos. Além do trabalho diretamente voltado para os direitos das mulheres, a FASE está desafiada a ampliar as leituras raciais e geracionais em todas as suas áreas de atuação face à centralidade que a luta antirracista e contra o massacre da juventude negra deve ter hoje em nosso país. Nesse sentido , através do Fundo SAAP, a FASE apoiou um conjunto valoroso de pequenos projetos a partir do lançamento do edital “Agitando pensamentos, reagindo para transformar a sociedade”.

Este ano de 2019 colocou a FASE e todas as organizações democráticas e de defesa de direitos da sociedade civil brasileira diante de desafios sem precedentes. Enfrentamos um projeto extremista que vai muito além da negação do ativismo social e da participação política. O projeto de poder que promoveu o desmonte de todos os mecanismos e instrumentos de participação social e incidência sobre as políticas públicas aparentemente se propõe agora a paralisar toda e qualquer manifestação da cidadania ativa. A prisão em Santarém (PA) de brigadistas que atuam no combate a incêndios é um passo seríssimo na marcha do autoritarismo. As ONGs estão mostrando a importância do seu papel na defesa da cidadania frente ao terrorismo Estatal, reafirmando, assim, a sua legitimidade como instituições relevantes numa sociedade democrática.

[1] Em especial, Moçambique.

[2] Jornal Globo: 25/08/19.

[3] Brasil de Fato-INPE.