06/12/2022 13:57

*Bruno França

O tempo presente nos provoca a buscar um outro olhar sobre as “águas”, diferente do que vem sendo mais difundido e que resulta na histórica restrição de acesso à água e ao saneamento, e que mais recentemente resultou na concessão de parte desses serviços para as empresas privadas no estado do Rio de Janeiro. Esse outro olhar tem relação profunda com a universalização e controle social dos serviços pela população. E longe de ser uma ideia nova, vem sendo construído e defendido por diversos atores do campo progressista ao redor do mundo.

Sentidos da água e do saneamento

 A água é um elemento essencial à vida. É ela que permite a própria existência neste planeta. Não à toa, mais de 70% do nosso corpo é formado de água e mais de 70% da superfície da Terra é ocupado por este elemento. Embora abundante, menos de 3% dessa água é própria para consumo humano. O Brasil dispõe de 12% de toda a água potável do mundo. Contudo, a cada 100 litros de água tratada no país, apenas 4 são destinados para o uso da população (70 litros vão direto para atender a demanda do agronegócio e da pecuária e uma outra grande parte vai para as indústrias).

Mesmo sendo indispensável, quando se pergunta o que é a água e qual a importância dela, cada sujeito ou grupo de sujeitos tende a dar um sentido diferente, a depender do uso e do papel que desempenha na sua realidade: ela pode ser fonte de sobrevivência, pode ser um elemento sagrado, pode ser ligada ao trabalho, ao lazer, ao transporte, etc. Se a gente pergunta de onde a água vem, a mesma coisa acontece, mas nas cidades, o que se percebe é um distanciamento cada vez maior da ideia da água como recurso natural, algo mais amplo ligado a um ciclo do próprio planeta. A água acaba se transformando naquilo que sai ou deixa de sair das nossas torneiras; e o saneamento é aquilo que sobra desse uso e que nós queremos distância. Até esse ciclo, da água potável ao esgoto e do esgoto à natureza novamente não é quase lembrado.

Esse distanciamento tem uma relação direta com a forma com que as águas, assim como outros recursos naturais, têm sido tratadas. O modelo de acumulação capitalista promove cada vez mais a expropriação da natureza, o saqueio dos territórios e a invisibilização de populações tradicionais e, ao mesmo tempo, aumenta a concentração de riqueza na forma financeira. A prioridade é o atendimento das demandas coorporativas em detrimento das necessidades sociais. Dessa forma, a sustentabilidade não passa de um simples recurso discursivo.

 Nesse caminho, a noção da água como bem econômico tem dominado o cenário mundial, transformando-a em mercadoria. Provavelmente uma das mais caras e restritas em um futuro não tão distante. Isso tem trazido como consequência a pobreza hídrica, a desigualdade no acesso à água e ao saneamento, e a restrição ao acesso em função do valor e da capacidade de pagamento das famílias.

No lugar da água como um bem econômico, mercadoria, defendemos que ela deve ser entendida como um bem comum e, enquanto tal, não pode estar sujeita aos ditames e interesses do mercado. Essa afirmação, portanto, nos posiciona contra a lógica neoliberal de expropriação das riquezas naturais; nos coloca contra o argumento da diminuição dos gastos públicos, em especial em políticas sociais, em nome do equilíbrio fiscal; e que denuncia os riscos da privatização da água para a vida humana. O princípio do bem comum questiona, inclusive, a forma como as próprias empresas públicas acabam por reproduzir essa visão de mercado. São inúmeros os problemas na oferta desses serviços, como o realizado há décadas pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE).

Na Baixada Fluminense, Região Metropolitana do Rio de Janeiro, por exemplo, onde o abastecimento de água sempre foi precário, quando não ausente, a perfuração de poços ou a compra de carros pipa são práticas comuns e que nem sempre permitem garantir a qualidade da água. A questão do saneamento nem se fala: em média, somente 50% do esgoto gerado nos municípios da região são tratados; alguns, como Japeri, descarta 100% do seu esgoto in natura, sem nenhum tipo de tratamento.

Assim, o entendimento das águas como bem comum traz 3 pontos importantes: 1) a recusa da gestão privada das águas; 2) a garantia do direito à água potável de qualidade para todas e todos, assim como acesso à rede de esgoto; e 3) a defesa da participação social na gestão e controle dos serviços públicos de água e saneamento.

Essa é a mudança de visão que defendemos: as águas precisam sair do campo econômico e passar ou voltar para o campo do bem comum. Mas infelizmente a visão que ainda predomina é a das águas como negócio, e isso tem deixado muitas consequências no nosso dia a dia, com uma tendência cada vez maior de aprofundamento das desigualdades.

Desafios para a universalização e a garantia da qualidade da água e do saneamento

Desde agosto de 2021, a CEDAE, responsável pelo abastecimento de água e saneamento em grande parte do Rio de Janeiro, privatizou, concedeu à iniciativa privada, parte de seus serviços. A privatização foi de apenas uma fatia da CEDAE, que foi a distribuição de água, coleta e tratamento de esgoto. Exatamente a parte que permite a geração de lucro de forma mais imediata, com a cobrança pelo serviço. A captação e o tratamento da água, que são etapas bastante custosas, seguirão com a empresa pública.

A privatização ocorreu em meio a inúmeros questionamentos técnicos, éticos e políticos, vindo de instituições como Fiocruz, TCU, Alerj, Universidades, movimentos sociais etc., e não faltaram indícios de fraude, cartelização e relações escusas entre os consórcios, empresas, instituições financeiras e políticos. Mas mesmo assim, ela aconteceu.

Quais são as empresas que se interessam pelo controle desses serviços? São grandes consórcios ligados diretamente ao mercado financeiro mundial, que enxergam no filão da privatização da água e do saneamento mais uma possibilidade de acumulação de dinheiro. É um mercado restrito: em todo Brasil, cinco empresas dominam aproximadamente 90% de todos os contratos de privatização desses serviços que já existem (BRK Ambiental, AEGEA Saneamento e Participações S.A., Iguá Saneamento S.A., Saneamento Ambiental Águas do Brasil S.A., GS Inima Brasil LTDA)[1].

Na concessão da CEDAE, o estado do Rio de Janeiro foi dividido em quatro grandes blocos formados por bairros da capital fluminense, municípios da região metropolitana e municípios do interior[2], divisão que não respeitou regras de planejamento urbano e, tão pouco, as dinâmicas locais. Os 4 blocos foram assumidos por 3 dos principais consórcios do país: os blocos 1 e 4 foram concedidos à AEGEA (que tem entre seus controladores o Fundo Soberano de Cingapura, a Corporação Financeira Internacional do Banco Mundial e o grupo Itaú), o bloco 2 concedido à Iguá (que tem entre seus controladores o Canada Pension Plan Investment Board e o BNDES Participações S.A, uma subsidiária do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, responsável pelo modelo de concessão), e o bloco 3 foi arrematado pela Águas do Brasil (controlada pela Carioca Christiani-Nielsen Engenharia e o grupo japonês Itochu – dono de metade da Queiroz Galvão Saneamento S.A). Assim, durante os próximos 35 anos são essas empresas, por contrato, que serão responsáveis pela distribuição de água e pelo saneamento no estado.

O rateio do valor pago pela privatização vai entregar ao estado e municípios afetados um total de R$ 22,689 bilhões, em 3 parcelas (2021, 2022 e 2025). E esses recursos chegam sem uma destinação específica, ou seja, eles podem ser gastos de qualquer forma. Vale lembrar que foi usando parte desse dinheiro, R$ 14,478 bilhões do estado, que o governador Claudio Castro (PL) foi reeleito – vide o escândalo da folha de pagamento da Fundação Centro Estadual de Estatísticas, Pesquisas e Formação de Servidores Públicos do Rio de Janeiro (CEPERJ). Para onde serão destinados esses recursos? É indispensável uma pressão popular para tensionar o redirecionamento deles para o beneficiamento da população. E aqui entra a questão do controle social dos serviços de água e esgoto.

O controle social como caminho para a defesa da água como bem comum e universalização dos serviços de água e saneamento

Com a privatização, não há dúvida da tendência de aumento da desigualdade hídrica, na medida em que a principal atividade e preocupação das empresas tem sido a de colocar medidores de consumo (hidrômetros) onde for possível, para garantir a cobrança de tarifa em todos os casos possíveis. Tem sido comum famílias receberem conta de água mesmo sem hidrômetro (às vezes até sem rede) e pagar pelo uso de um sistema de esgoto que sequer existe. Ainda que exista algum tipo de tarifa social, o acesso a ela tem sido dificultado pelas empresas. Mas e aquelas famílias que não podem pagar nem o mínimo da tarifa social, como vão sobreviver se a sua água for cortada?

É aqui que voltamos para a necessidade de mudança de visão sobre as águas. É só através da luta e da resistência que essa guinada para o entendimento da água como bem comum será possível. Foi graças às resistências populares organizadas em diversas cidades (Paris, Berlim, Atlanta, Joanesburgo, Buenos Aires, Jacarta, Nápoles) e países do mundo (Bolívia e Equador, mais recentemente) que foi possível a reestatização dos serviços de saneamento e o reconhecimento constitucional da água como um bem comum.

Entender os comuns como um princípio político ajuda na luta pelo e contra o Estado: pelo Estado, quando lutamos para que ele cumpra sua função social; contra o Estado, quando lutamos para que ele não se iguale ao mercado – garantindo a universalização e a qualidade dos serviços de água e saneamento para todas e todos.

Nessa disputa, a incidência política do campo popular é indispensável. A pressão e as mobilizações no âmbito das prefeituras são um importante passo na garantia da participação popular como elemento indispensável do monitoramento dos serviços prestados pelas empresas concessionárias, cobrando pela instituição e fortalecimento de espaços de participação e de controle social. É fundamental saber em que situação estão os Planos Municipais de Saneamento, e promover uma ampla discussão sobre eles levando em consideração esse novo contexto de privatização dos serviços. Outra questão ligada aos municípios diz respeito à articulação legislativa, através da incidência pela constituição de comissões especiais e audiências públicas que possam ser espaços de debate, articulação e de consideração dos desejos e problemas locais.

A articulação das pautas locais à questão metropolitana e do estado também é um ponto importante. A gestão das águas é compartilhada e deve contar com espaços de participação popular nessas instâncias. Em agosto de 2022, o governo do estado deu início ao processo de constituição dos Comitês de Monitoramento da Concessão dos Serviços de Água e Saneamento do Estado do Rio de Janeiro, por bloco, convocando pessoas e entidades, e abrindo chamamento público para a sua composição. A FASE RJ compõe, junto com outros atores, o Comitê de Monitoramento do Bloco 4, com representação no segmento “Organizações da sociedade civil e de defesa do consumidor relacionadas ao setor de saneamento”. Nossa atuação neste espaço, sem dúvida, será na perspectiva da ampliação do entendimento das águas como bem comum e direito humano.

Outra questão fundamental, especialmente para os movimentos sociais e a sociedade civil organizada, é que a luta pela água e pelo saneamento no âmbito urbano precisa estar associada a outras agendas como a da segurança alimentar e nutricional, da saúde coletiva e a de enfrentamento às mudanças climáticas e seus impactos. É nessa articulação com outras agendas que podemos ampliar e trazer à tona o sentido da água com um recurso indispensável à vida. E, assim, impossível de ser entendida como fonte de dinheiro para as empresas privadas.

[1] “Quem São os Proprietários do Saneamento no Brasil?”, publicado pelo Instituto Mais Democracia, em 2018. Disponível em: https://br.boell.org/sites/default/files/proprietarios_do_saneamento-pesquisa-institutomaisdemocracia-fundacao_boll_brasil.pdf.

[2] O bloco 1 é composto pelos bairros da zona sul do município do Rio, o município de São Gonçalo e mais 16 municípios do interior do estado. O bloco 2 inclui os bairros da Barra da Tijuca e Jacarepaguá da capital e os municípios de Miguel Pereira e Paty do Alferes. O bloco 3 inclui os bairros da zona oeste do Rio e seis municípios do interior e da região metropolitana. O bloco 4 é composto pelos bairros do centro e da zona norte da capital e oito municípios da Baixada Fluminense.

 

*Bruno França é educador da FASE Rio