Aércio de Oliveira
19/04/2023 10:58

*Artigo publicado originalmente no site do Ondas

Depois de mais de quatro décadas, foi realizada entre 22 e 24 de março a Conferência Mundial da ONU, que teve como objetivo principal avaliar os avanços no cumprimento do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável número 6: acesso universal à água e ao saneamento. O ONDAS esteve presente com seus representantes e participou também de forma virtual em eventos on-line organizados, para lutar pela consecução desse objetivo e cobrar ações e resultados das instituições.

Co-organizada pelos governos da Holanda e do Tajiquistão, a Conferência reuniu aproximadamente 7.000 pessoas em Nova York, entre membros de governos, sociedade civil, setor empresarial, movimentos de jovens, de povos indígenas, cientistas, acadêmicos, além dos diplomatas e funcionários do Sistema das Nações Unidas.

Foram realizados cinco Diálogos Interativos (Água para a Saúde, Água para o Desenvolvimento Sustentável, Água para o Clima, Resiliência e Meio Ambiente, Água para a Cooperação e Água para a Década Internacional da Água), uma Sessão Plenária dividida em cinco subsecções, eventos especiais organizados por diferentes entidades da sociedade civil e um grande número de eventos paralelos, no espaço da ONU, em outros espaços em Nova York ou de forma virtual.

A forma de organização e o grande número de inscritos dificultaram a participação. Muitos presentes não conseguiram se manifestar nos diferentes eventos, em função da necessidade de inscrição prévia à conferência presencial e do predomínio da palavra dos membros das delegações oficiais, definidos pelos governos.

Apesar da magnitude do evento e da oportunidade única de reunir diferentes atores sociais que têm atuação em diferentes dimensões da gestão das águas, é difícil identificar resultados concretos da Conferência, sobretudo no diz respeito à temática do ONDAS, os Direitos Humanos à Água e ao Saneamento. O evento não foi desenhado para resultar em decisões finais vinculantes aos países, mas apenas para registrar compromissos voluntários, que totalizaram mais de 700, apresentados por diferentes atores, desde o governo norte americano, com o compromisso de disponibilizar recursos financeiros, empresas que também se dispõem a fazer doações, até compromissos de instituições acadêmicas de realizar eventos sobre o ODS 6. Evidentemente, entre os mais de 700 alguns poucos fazem referência aos DHAES. Contudo, uma questão central é que os compromissos são voluntários, sem que tenham sido estabelecidos mecanismos para que a ONU possa monitorá-los e sem obrigação de que sejam cumpridos.

Por outro lado, os DHAES apareceram em diferentes falas e foram objeto de uma longa sessão especial, na qual o relator Pedro Arrojo esteve presente. Nessa sessão, foi muito forte a crítica à privatização dos serviços. Aspectos importantes levantados nessa e em outras sessões especiais foram: a afirmação da água como bem comum, a necessidade de usar os DHAES como um critério de base para o alcance do ODS6; a defesa de uma radicalização da participação da sociedade na gestão da água, reconhecendo diferentes valores a ela atribuídos pelos povos indígenas.

Os DAHES também foram objeto do manifesto do “Water Justice” que contou com o apoio de diferentes organizações da sociedade que militam no campo do direito humano à água, entre as quais o ONDAS. O manifesto elenca nove pontos a serem colocados no centro das políticas de água nos níveis global, regional, nacional e subnacional. (ver https://thepeopleswaterforum.org/pt/).

Mas nem só de manifestações progressistas foi feita a Conferência. Ao contrário, as antigas estratégias de comodificação da água voltaram a tona, desta vez travestidas em uma linguagem mais sofisticada e pretensamente moderna. Por exemplo, um dos documentos mais influentes da Conferência, denominado “Turning the Tide: A Call to Collective Action” (ver https://turningthetide.watercommission.org/) e elaborado pela “Global Commission on the Economics of Water”, propõe-se a redefinir a forma como é dado valor à água e como deve ser a sua gestão de forma a atender o bem comum. Entretanto, como ações, propõe as mesmas parcerias público-privadas, em um improvável formato de compartilhar riscos entre o poder público e as companhias, e o aumento de preço pelo uso da água.

A principal pergunta agora é: com um resultado tão vago, como será a leitura das recomendações da Conferência no futuro? Como os indígenas não estarão mais em Nova York, mas as corporações continuarão a exercer seus lobbies, não é muito difícil se projetar quem dominará a narrativa.


Aércio de Oliveira – Coordenador da FASE-RJ, assessor do Grupo Nacional de Assessoria da FASE e Conselho de Orientação do ONDAS

Ana Lúcia Britto – UFRJ, Conselho de Orientação do ONDAS

Leo Heller – Fiocruz, Coordenador de Cooperação Internacional do ONDAS

*Coordenador da FASE-RJ, assessor do Grupo Nacional de Assessoria da FASE e Conselho de Orientação do ONDAS