17/01/2011 21:22
“A cidade inteira caiu”. “Estamos como zumbis, cobertos de lama, no escuro, cavando, cavando”. Estes são depoimentos registrados de um socorrista e uma moradora dos municípios atingidos pelas fortes chuvas dos últimos dias, na região serrana do Rio de Janeiro. A dor de milhares de pessoas que vivem em Teresópolis, Nova Friburgo, Petrópolis e pequenas cidades próximas era uma tragédia anunciada e nada foi feito para minimizar os efeitos de uma catástrofe. Alertas foram emitidos pelo Instituto Nacional de Meteorologia, mas as prefeituras não estavam preparadas e prevenidas, muito menos a população.
Apesar dos índices mostrarem que o volume de água das chuvas ter atingido patamares superiores a 3oomm desde o início do ano, três vezes mais do que choveu em Angra do Reis no ano passado, não é possível afirmar que os governos não poderiam prever a possibilidade de uma catástrofe social. A regra da gestão urbana tem sido a correção e não a prevenção. Alta densidade demográfica, relevo montanhoso e ocupação irregular de encostas e margens de rios e córregos, tanto em bairros populares quanto em áreas nobres, associada a uma chuva de 1 litro por metro quadrado, encharcando o solo superficial e transformando riachos bucólicos em caudalosos rios de águas grossas e destruidoras, foram a combinação do desastre, fazendo desaparecer bairros e vilarejos da região.
Cada verão, vemos que o descaso histórico com o controle do uso e ocupação do solo urbano, com o planejamento, com obras estruturais de drenagem e de contenção de encostas, a ausência de uma política habitacional que reduza sensivelmente o déficit habitacional, e de uma política de prevenção e alerta junto à defesa civil, vêm pondo em risco a vida principalmente dos mais pobres. Na região serrana do Rio de Janeiro, o desastre não viu cor ou classe social, mas o que se constata é que a localização da população pobre, tanto nas regiões metropolitanas quanto nas regiões periurbanas, é mais vulnerável a estes eventos climáticos cada vez mais recorrentes.
Sabemos que a população de áreas nobres das cidades atingidas pelos deslizamentos de terra e pelas enxurradas conseguirá acionar mecanismos mais eficientes para reduzir os danos às suas vidas, mecanismos estes (simbólicos, sociais, políticos e econômicos, sobretudo) não acessíveis àqueles que viviam ou ainda vivem em favelas ou em bairros pobres destas cidades. É por esta razão que muitos resistem permanecer nas áreas de risco: “Não tenho para onde ir, não! Se tivesse, não teria construído a minha vida neste lugar”, depoimento de Tânia, moradora de Mesquita, na Baixada Fluminense por ocasião das enchentes de 2009.
Estes fatos mostram como é emergencial rever a forma de se pensar a política urbana e habitacional. A solução, muitas vezes, é a da permissividade das ocupações em áreas de risco ou de remoções forçadas para locais longe das redes sociais estabelecidas, do emprego, da família, do referencial do ser e do viver. Conjuntos habitacionais com metragem quadrada inadequada, localizados em bairros que podemos classificar como a “não-cidade”, são as formas como os governos municipais lidam com o problema. O que é cidade, afinal? As mudanças climáticas têm posto na superfície e de forma cada vez mais escancarada o quanto é preciso avançar na gestão das cidades a partir de novos paradigmas.
Não podemos olhar as enchentes e desastres ambientais de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, do Sul e do Nordeste apenas como fenômenos naturais, como se a natureza fosse única responsável pelas tragédias que vivenciamos todos os anos durante o período do verão. É preciso que o poder público assuma sua responsabilidade pelo descaso de décadas que promove processos de injustiça ambiental e violação de direitos, sobretudo do direito à cidade.
Planejar as cidades na perspectiva da sustentabilidade socioambiental e urbana, considerando a integração das políticas urbanas, ambientais e sociais, cujas medidas preventivas às catástrofes climáticas devem se antecipar a tais eventos, para que as cidades possam receber volumes maiores de água que consigam seguir seu curso sem causar tragédias como estas. Casos como os da Austrália, que vivencia também as conseqüências de enchentes, são exemplos referenciais. Enquanto lá a população potencialmente vulnerável recebeu mensagens por correio dizendo que deveriam desocupar suas casas, aqui a desocupação custou centenas de vidas e custará anos para reestruturar histórias, memórias e vidas.