Aércio Barbosa de Oliveira
04/01/2024 13:12

Publicado em Outras Palavras

No primeiro mês de 2023, em janeiro, registraram-se 45 alertas de risco moderado ou alto vigentes, referentes a potenciais desastres decorrentes de risco hidrológico ou deslizamentos no Brasil (CEMADEM, 2023). Apenas no mês de dezembro de 2022, mais de 525 mil pessoas foram afetadas pelo excesso de chuvas no Brasil, sendo que 15,6 mil pessoas ficaram desabrigadas e mais de 72,3 mil desalojadas (CNM, 2023). No período, foram expedidos 245 decretos de situação de emergência pelos municípios afetados, os quais sofreram um prejuízo de R$ 931,4 milhões, equivalente a 30 milhões de reais por dia.

Ao longo de 2023, milhares de pessoas foram afetadas pelas chuvas e deslizamentos, como nos casos de emergências em municípios de Pernambuco, em São Sebastião – SP e Vale do Taquari – RS. Os anos de 2022 e 2023 refletiram o impacto da aceleração das mudanças climáticas, aliada a outros eventos meteorológicos (como El Niño e La Niña) e à grave diminuição das medidas de mitigação de risco e adaptação a este cenário nos últimos anos. Nos cinco primeiros meses de 2022, foram 457 pessoas mortas em decorrência de enxurradas, deslizamentos ou outros desastres ligados ao excesso de chuvas, representando 26% do total de mortos registrado no período de 2013 a 2022 (MADEIRO, 2022). Os recordes de chuvas têm superado ano a ano (ALISSON, 2022) (Folha de São Paulo, 2023), sem a respectiva atuação do poder público para prevenir os impactos negativos à população, o meio ambiente e à infraestrutura urbana.

Mesmo diante desse grave cenário, o (des)governo de Jair Bolsonaro diminuiu em cerca de 95% o orçamento destinado ao enfrentamento de desastres naturais para 2023 (MADEIRO, 2022), deixando o equivalente a apenas R$ 500 (quinhentos reais) para cada cidade prevenir desastres no ano. No projeto de lei orçamentária para 2023, a rubrica de “Apoio a Execução de Projetos e Obras de Contenção de Encostas em Áreas Urbanas” do Ministério do Desenvolvimento Regional foi originalmente de R$ 2,7 milhões, o menor valor desde a criação da rubrica, em 2012, e valor que não corresponde sequer a 1% do valor necessário para a prevenção de desastres no período, segundo a Secretaria de Defesa Civil (AZEVEDO, 2022)

Evidentemente, a questão climática e ambiental manifesta-se também em outros fenômenos que afetam a população nas cidades, como, por exemplo, a seca e a falta de água. Contudo, mesmo cingindo-nos aos exemplos dados, atinente às enchentes e deslizamentos, resta demonstrada a dimensão social da questão. A quantidade de famílias desabrigadas ou em situação de insegurança habitacional em decorrência deste contexto é alarmante, como apontado pela Campanha Despejo Zero (2022) em relatório-denúncia enviado à Organização das Nações Unidas:

(…) os desastres climáticos atingem as cidades diretamente e de modo trágico e seguindo um padrão: afetam principalmente as comunidades pobres que não tem onde morar e foram se abrigar nas áreas territorialmente mais vulneráveis das cidades, que apresentam risco e não receberam investimentos públicos para garantir segurança e habitabilidade, um quadro que é complementado pela total ausência de políticas públicas de moradia, voltada não só para a produção de novas unidades habitacionais, mas também à segurança desses territórios e a para a urbanização e prevenção de riscos.

O descaso com essa população sempre foi a tônica do poder público, porém agora com as emergências postas pelas alterações climáticas, aumenta o grau de perigo e o risco de morte dessas pessoas, como já foi possível testemunhar nos desastres que aconteceram na Bahia, Minas Gerais, Angra dos Reis e Petrópolis no Rio de Janeiro, e Recife em Pernambuco e Maceió em Alagoas para ficar somente no ano de 2022.

As mudanças climáticas e os conflitos continuam causando um imenso sofrimento, que, com a intensificação da desigualdade no Brasil, impõe às populações mais pobres um único modo de morar nas cidades, isto é, nas áreas que estão mais suscetíveis aos desastres. A perda do teto, para essas populações, se dá pelo despejo ou pelo desastre, sendo a falta do acesso à terra urbanizada a causa comum a esses desastres.

A partir de tudo que foi apontado, identificamos que houve entraves políticos e orçamentários para o enfrentamento adequado desta questão nos últimos anos. Este cenário felizmente tem se alterado no novo Governo Lula (2023-2026), a partir da recomposição orçamentária nestas áreas e com medidas importantes na agenda ambiental e climática e a retomada de políticas sociais em prol do direito à moradia da população mais pobre.

Um destaque do novo governo é a criação da Secretaria Nacional das Periferias, responsável, dentre outros, por pensar metodologias e iniciativas de prevenção de desastres voltadas especificamente aos territórios periféricos. Vale mencionar também que está sendo realizada, sob condução do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, a atualização do Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima.

Diante deste cenário, vale resgatar o que temos de arcabouço normativo para o enfrentamento da questão climática no país, sobretudo no contexto das cidades brasileiras.

Apontamentos sobre a legislação brasileira

O sistema jurídico brasileiro se funda na produção legislativa, enquanto sistema do civil law. Ter isto como ponto de partida nos ajuda a entender, em parte, a complexidade do nosso ordenamento. É um exercício que nos dá indicações para compreender parte das razões de tantas sobreposições jurídicas, de vivermos num ambiente institucional em que muitos afirmam “estarmos afogados em leis”. Isto não deve ser entendido como se avaliássemos que a produção legislativa, o robustecimento da positivação do nosso ordenamento jurídico, fossem insignificantes. Diversas importantes legislações são fruto de muita luta popular.

Contudo, no meio de tamanha tautologia jurídica devemos adicionar à nossa tradição um Estado onde seus agentes aplicam as leis, os recursos e políticas públicas seletivamente. O abominável paradigma nacional é produzir legislações de interesse popular raramente aplicadas no mundo, onde vivem pessoas de carne e osso com limitados poderes políticos e econômicos. São leis que se tornam abstrações dada a sua inaplicabilidade. É notável que muitas leis são produzidas como uma forma – quiçá intencional – de não efetivar ações que impactem positivamente a vida das pessoas, as relações sociais, culturais, socioambientais e econômicas. Em muitas situações funcionam como uma paliativo para conter as pressões sobre o sistema político (MELO, 2013). Esta é uma das características que ajudou a forjar a máxima já tão popular: “há lei que pega e lei que não pega”. Afinal, normalmente, tratando-se do bem-estar coletivo, sobretudo para os estratos sociais populares, é quando, para a efetivação do previsto na lei, se exige recursos públicos. Tratando-se de medidas de adaptação e mitigação aos efeitos da mudança climática em curso, onde há ocorrência de eventos extremos em intervalos mais curtos, esse desprezo deliberado às leis é evidente.

Neste século foram produzidos decretos, leis, portarias, resoluções que tratam exclusivamente da necessidade de que todos os entes da federação adotem medidas de adaptação e mitigação para conter os efeitos das mudanças climáticas. Infelizmente são leis pouco acionadas. No meio dessa produção de leis para enfrentar as mudanças climáticas, legislações urbanas vigentes, que colaborariam para atingir o mesmo objetivo, são negligenciadas. Vejamos algumas legislações que, independentemente de muitas leis especificas – normalmente genéricas – dando destaque à mitigação das mudanças do clima, se aplicadas ajudariam a minimizar os efeitos do aquecimento do planeta.

Entre as leis urbanas tão celebrada pelos movimentos históricos da luta pela reforma urbana temos o Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257 de 10 de junho de 2001), que regulamentou os artigos 182 e 183 do capítulo de Políticas Urbanas da Constituição Federal de 1988. Essa lei, além de exigir que a propriedade cumpra a sua função social, obriga que os agentes municipais, através dos planos diretores, mapeiem as áreas de risco, planejem medidas preventivas, realoquem, se necessário, famílias para local de moradia adequado, bem como adotem medidas de drenagem capazes de prevenir desastres socioambientais ou mitigar seus impactos. Com o plano diretor, contribuições para conter ou minimizar os impactos das mudanças climáticas podem ser efetivadas dentro de políticas públicas de ordenamento territorial e urbano.

O Estatuto da Cidade também prevê a obrigatoriedade do plano diretor para cidades inseridas na área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional (art. 41, V). Esse instrumento tem conexão direta com os artigos 42-A e 42-B da lei n°12.608, de 10 de abril de 2012, que institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDC) e o seu Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil. Esta normativa exige que os planos diretores de municípios incluídos no cadastro nacional de cidades com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos devem realizar mapeamento de risco, ações de intervenção preventiva e realocação de população de áreas de risco de desastre, prevenção e mitigação de impactos de desastres.

Ainda temos para compor esse conjunto de códigos a lei de Parcelamento do Solo Urbano (Lei Federal nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979). Esta lei foi produzida bem antes da questão das mudanças climáticas e seus efeitos entrar na ordem de preocupação da sociedade brasileira. A lei prevê, dentre outros, que não será permitido o parcelamento do solo em terrenos alagadiços e sujeitos a inundações, “antes de tomadas as providências para assegurar o escoamento das águas” nem em áreas de preservação ecológica ou “naquelas onde a poluição impeça condições sanitárias suportáveis, até a sua correção”. Infelizmente, em 2021 ela e o Código Florestal sofreram significativas alterações, como a advinda da lei federal n° 14.285, de 29 de dezembro de 2021, que transfere para os municípios e estados a determinação dos limites das Áreas de Preservação Permanente (APPs) marginais de qualquer curso d’água natural em área urbana. Nas legislações que a lei modificou, os limites permanentes eram de 15 metros. Sobretudo diante do processo de fragilização do Estado e seu papel de fiscal ambiental, da falta de freio à especulação imobiliária, do aumento de preço da terra urbana e da ausência de políticas públicas que garantam o acesso à moradia, tais alterações certamente aumentarão os impactos socioambientais.

O Código Florestal é mais uma importante legislação que, se aplicada adequadamente, poderia colaborar na direção da tomada de medidas necessárias à adaptação e à mitigação para enfrentar as mudanças climáticas.

Em seu capítulo II, na seção I, limita como áreas de preservação permanente, por exemplo, encostas com declividade superior a 45º. Com a aplicação dessa lei, associada à política de habitação popular, tragédias provocadas por chuvas com alto índice pluviométrico, causadoras de deslizamentos e enchentes, sofreriam uma redução substantiva.

Vendo esse conjunto de legislações, não é difícil identificar a importância da sua aplicabilidade para se produzir cidades preparadas para enfrentar os eventos climáticos extremos – normalmente estiagens, excesso de chuvas e doenças provocadas por vetores. Porém, mesmo com esse amplo rol de normativas, há defensores(as) de direitos humanos, juristas e pesquisadores(as) com atuação na agenda pelo direito à cidade que apontam haver uma carência de legislações específicas para as mudanças climáticas nos centros urbanos brasileiros, sobretudo para mitigação e adaptação. Para se ter ideia dessa precariedade destacamos a pesquisa realizada por SATHLER, PAIVA e BAPTISTA (2019). Os autores investigaram o planejamento urbano nas principais regiões metropolitanas e integradas de desenvolvimento do Brasil, analisando quinze sedes metropolitanas com base na existência de:

1. Existência de inventário local de emissões de gases do efeito estufa;

2. Existência de programas de controle ou monitoramento da qualidade do ar;

3. Existência de plano local de mitigação;

4. Existência de plano local de adaptação;

5. Existência de leis municipais específicas;

6. Outras leis/decretos municipais relevantes que tratam das mudanças climáticas;

7. Plano Diretor da sede faz referência às mudanças climáticas;

8. Existência de comitê ou fórum local sobre mudanças climáticas;

9. Participa de redes de conhecimento;

10. Existência de planos ou políticas estaduais ou metropolitanas;

11. Existência de fórum estadual.

Segundo esta pesquisa, publicada no ano de 2019, São Paulo foi a única capital que apresentou todos os itens avaliados, os quais incluem sobretudo aspectos formais (planos e leis), mas também algumas iniciativas implementadas. Diante de tudo isso, se colocam algumas questões importantes, que abordaremos a seguir.

Desafios para o presente e futuro nas cidades

A primeira das questões que se colocam é a seguinte: se existe, bem ou mal, uma legislação dispersa a nível federal, em consonância com a nossa tradição jurídica, útil para enfrentar as mudanças climáticas nas cidades, seria necessário – como apontam alguns – o caso de assumirmos a estratégia de pressionar o sistema político formal para se obter uma legislação específica para o tema? Ou a estratégia é fazer com que as legislações, como o Estatuto da Cidade, Código Florestal, Lei de parcelamento do Solo, Política para a Defesa Civil etc. sejam cumpridas, com os ajustes necessários às realidades locais?

Além disso, como segunda questão, temos que, num país com o nosso histórico socioeconômico e político, é preciso realizar grandes mobilizações para que leis do interesse popular sejam efetivadas, sobretudo quando é preciso recursos públicos. O grande desafio para os governos dos entes da nossa federação, em um tempo de contração fiscal, em que boa parte dos recursos públicos são transferidos para a rolagem da dívida pública, é cumprir as legislações adotando medidas de adaptação às mudanças climáticas. Não que políticas de mitigação (como a redução da emissão de gases estufa) sejam desimportantes, mas são as de adaptação que normalmente incidem em um ponto central no espaço urbana, razão de tantos conflitos e desigualdade: o acesso à terra.

Em um país de elevado déficit habitacional, no qual a maioria da população das cidades vive em encostas ou áreas de várzeas, seria necessário, para cumprir as legislações que direta ou indiretamente têm o objetivo de conter os estragos provocados pelos eventos extremos, investir imensos recursos públicos para, por exemplo, realocar famílias para áreas que assegure condições de habitabilidade digna, sem pôr as suas vidas sob risco, bem como produzir infraestruturas e mobiliários urbanos adequados para conter os efeitos dos eventos climáticos extremos em nossas cidades.

Além disso, é patente o impacto desigual às populações, a partir de marcadores como renda, raça, gênero e território. Vale lembrar que o Brasil é marcado pela desigualdade: “os 3.390 indivíduos mais ricos do Brasil (0,0016%) detêm 16% de toda a riqueza do país, mais do que 182 milhões de brasileiros (85% da população)” (OXFAM, 2023). A partir do acesso díspar à terra e infraestrutura urbanas, os impactos também ocorrem de maneira desigual dentro da população. Justiça ambiental e justiça climática são assim, bandeiras urgentes para o enfrentamento do racismo ambiental e da distribuição desequilibrada dos impactos das mudanças climáticas também nas cidades.

O Direito à Cidade permanece também como guia, sendo definido pela Plataforma Global pelo Direito à Cidade como:

o direito de todas/os as/os habitantes, presentes e futura/os, permanentes e temporária/os, de habitar, usar, ocupar, produzir, governar e desfrutar cidades, vilas e assentamentos humanos justos, inclusivos, seguros e sus- tentáveis, definidos como bens comuns essenciais para uma vida plena e decente (tradução livre)

Assim, a participação popular, pilar do direito à cidade, deve servir para que as decisões políticas, a produção e aplicação legislativa, bem como a definição orçamentária, sejam tomadas de forma a refletir as necessidades de todos, com olhar especial às parcelas da população mais impactadas negativamente no cenário atual.

Igualmente, a reivindicação política por direitos, sobretudo o direito à moradia adequada, é essencial para enfrentar o avanço desenfreado da mercantilização da terra e das diferentes formas de viver e morar, bem como da imposição necropolítica do risco à saúde e à vida a determinados grupos da população. A defesa do viver e morar com dignidade é bandeira central da reforma urbana, que deve ser incorporada por todas as pessoas que também desejam enfrentar com seriedade os impactos da questão ambiental e climática.

*Educador da FASE Rio de Janeiro