26/04/2021 17:16
A Cúpula de Líderes sobre o Clima, evento virtual organizado pelo governo John Biden, ocupou o noticiário na semana passada, reunindo representantes de 40 países, que foram convidados para apresentar e discutir medidas ambiciosas para a redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE) até 2030. O objetivo é manter a média da temperatura global do planeta em até 2.0°C até o fim do século. Infelizmente, a ambição política para mudanças efetivas passou longe da Cúpula, mas a ambição econômica foi a grande estrela.
Fora do âmbito das negociações oficiais da Conferência das Partes de mudanças climáticas (COP), a maioria dos países apresentaram novas metas ou como vão implementar a redução das emissões GEE. No entanto, mais do que indicar mudanças e medidas efetivas para uma redução real de GEE, em especial as provenientes da queima de combustíveis fósseis (como o carvão mineral, gás natural e o petróleo, fundamentalmente para geração de energia, indústria de transformação e transporte de cargas), consagrou a ideia de neutralização de CO2 e das emissões líquidas, o chamado Net-Zero.
Em suas declarações, os chefes de estado se comprometeram em “neutralizar as emissões”, “zerar emissões líquidas” ou ser “carbono zero” até 2050. Curiosamente, esse objetivo não foi contemplado no Acordo de Paris, mas vem se movendo com rapidez nos fóruns paralelos e mesmo dentro da versão atualizada das Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs), entregues pelas Partes do Acordo de Paris no último ano. Mas o que querem dizer? O que significa a proposta de zerar as emissões líquidas em 2050 e com o que efetivamente estão se comprometendo?
Trazendo para o nosso cotidiano, é a mesma diferença entre salário bruto e salário líquido. Países e grandes corporações estão se propondo a apresentar uma contabilidade de emissões, que leva em conta tanto a quantidade de GEE que emitem, quanto a quantidade que absorvem ou compensam, principalmente, por meio das florestas, em outros países ou em outros setores da economia. Desta forma, comprometem-se em neutralizar as emissões, porque a mesma quantidade que irão emitir será a compensada pela quantidade que irão absorver. Desta forma, continuam emitindo, mas pagam para que outro país ou setor reduza suas emissões através do chamado offseting (compensação). Como resultado, este mecanismo mascara a necessidade de redução efetiva de emissões de GEE.
Esse processo de compensação já vem sendo realizado historicamente desde a criação do Protocolo de Kyoto, com seus sofisticados mecanismos de flexibilização com a transformação do CO2 em commodity do mercado financeiro. A grande diferença é que se antes esse mercado estava mais restrito a metas muito reduzidas e restritas aos países do Norte, agora valem para todos os países com a universalidade que o Acordo de Paris trouxe. Ao mesmo tempo, com metas voluntárias estabelecidas por fora do próprio acordo, como o Net zero para 2050, isso pode fragilizar o regime multilateral. Além disso, observamos, na apresentação dos países, que o crescimento de suas ambições não só está associado a mecanismos de mercado e compensação, via a financeirização do clima, mas também à transformação da natureza em um ativo financeiro. A tendência da entrada das florestas no mercado de neutralização oficial de carbono se confirmou. Isso traz grandes preocupações para as negociações da COP 26, quando será finalizado o Livro de Regras do Acordo de Paris, em seu artigo 6, que é exatamente o que prevê os mecanismos de mercado e compensação.
O Brasil
O discurso do presidente Jair Bolsonaro na abertura da Cúpula, ao juntar os artigos 5 (relacionado as florestas e já contemplado no Marco de Varsóvia sobre REDD+) e 6, aponta nessa direção. Para o Brasil, que entrou na Cúpula mantendo taxas recordes de desmatamento na Amazônia Legal, o saldo foi ruim. Apesar do discurso mais moderado, há perda de altivez e se mantém com inexpressiva participação internacional. Em meio a cortes orçamentários para a área ambiental e flexibilização no seu regramento anunciado pelo Ministro de Meio Ambiente, o governo brasileiro teve o desafio de apresentar medidas concretas que demonstrassem o desejo do governo federal em cumprir com as promessas feitas por Bolsonaro na carta enviada a Biden, na semana anterior a Cúpula. No entanto, apresentou resultados de governo anteriores e mudou a posição histórica brasileira nas negociações climáticas ao colocar as florestas no mercado de carbono. Essa movimentação já havia ficado explícita no lançamento de programas como o “Adote um Parque” e “Floresta +”, que se configuram como processos de privatização das florestas brasileiras, trazendo grandes corporações para o centro das políticas, ameaçando a soberania nacional e territorial de povos indígenas, povos e comunidades tradicionais.
A FASE questiona não só a utilização das florestas como moeda de troca para abertura de capital para o país, como as muitas falácias apresentadas em seu pronunciamento, assim como, a invisibilidade das práticas e modos de vida de povos e comunidades tradicionais, protagonistas da conservação da floresta e da biodiversidade. Ao mesmo tempo, tem grande preocupação com as soluções orientadas para 2050, que carecem de planos de implementação e transição efetivos e que rompam com esse modelo de desenvolvimento que nos trouxe até aqui. É necessário ampliar o debate com a sociedade sobre essas chamadas ações climáticas que se reduzem a neutralização de CO2 por meio das emissões líquidas zero e que, ao mesmo tempo, geram dívidas “verdes” como forma de financiamento para sustentá-las, trazendo novos questionamentos sobre o endividamento de governos em diversos âmbitos. Saídas do mercado de carbono, ao longo dos últimos quase vinte anos, vem se demonstrando pouco efetivas como solução real para o enfrentamento das mudanças climáticas.
Por fim, para os EUA, mais precisamente, para o governo Biden, essa Cúpula deixa um saldo positivo, recolocando não só o país na agenda do clima, mas na dianteira das definições dos caminhos deste debate – do que ele chamou da Década de Ação Climática – e na futura COP 26, marcada para em novembro deste ano, em Glasgow, no Reino Unido. Resta dúvidas sobre como o regime climático internacional irá incorporar esses resultados daqui para frente e se isso servirá para fortalecê-lo ou não.