25/01/2021 08:58

Julianna Malerba*

Há dois anos, uma avalanche de 12 milhões de metros cúbicos de terra e rejeitos de minério de ferro tirou a vida de 272 pessoas em Brumadinho. A onda de lama, que percorreu quase 300km, destruiu uma das principais fontes de água que abastecia a região metropolitana de Belo Horizonte. Três anos antes, outra barragem de rejeitos de minério havia se rompido em Mariana, causando 19 mortes, afetando outras milhares de pessoas e destruindo também uma importante bacia hidrográfica: a do Rio Doce. 

Brumadinho. (Foto:Ricardo Stuckert)

A repetição da tragédia em Minas Gerais, em proporções ainda mais amplas, e com o envolvimento dos mesmos atores, revela o grau de captura e de controle corporativo da política mineral brasileira. A situação das barragens de rejeitos no Brasil é um exemplo paradigmático do poder de enunciação das grandes mineradoras sobre o sistema regulatório que deveria controlá-las. 

Análises realizadas por pesquisadores do grupo PoEMAS (Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade), apontam que, apesar dos crimes ocorridos nas duas cidades, o número de barragens de mineração sem atestado de estabilidade praticamente dobrou entre 2019 e 2020 — e hoje correspondem a quase 10% das barragens existentes no país. Uma das razões é a redução sistemática do orçamento de fiscalização da Agência Nacional de Mineração (ANM) nos últimos dois anos, que tem levado a agência a “terceirizar” as ações de fiscalização, delegando-as a empresas de consultoria, que também prestam serviços às mineradoras, abrindo espaço para potenciais conflitos de interesse.

No mesmo estudo, os pesquisadores apontam que, graças ao lobby das mineradoras, as mudanças nas normas de segurança de barragens propostas na lei 14.066/2020, criada após os desastres, não serão capazes de tornar a operação menos arriscada e tampouco de assegurar garantias financeiras para compensar e recuperar os danos causados em caso de rompimentos. 

Bem comum e mal impune

O processo de reparação desses desastres mostra outra face da privatização de funções públicas e do enfraquecimento do papel regulador do Estado. Embora os atingidos contem com assessorias técnicas independentes, a empresa e o Estado se negam a incluir no acordo judicial sobre danos coletivos que estão negociando a portas fechadas as medidas emergenciais propostas pelos atingidos em relação ao crime em Brumadinho. A tentativa de excluí-los do processo, sob o argumento de que a reparação se dá no âmbito das compensações individuais, cabendo apenas ao Estado a representação do interesse público é, no mínimo, antidemocrática: ignora por completo o necessário debate público para definição do bem comum, que aqui significa a escolha por medidas que garantam a recuperação do meio ambiente e a reconstrução dos tecidos sociais e dos modos e projetos de vida de cada pessoa atingida. No entanto, a imprensa já vem noticiando que a maior parte do valor do acordo pode vir a ser gasto em obras em Belo Horizonte.

Ao lado da captura corporativa do interesse público, o desastre em Brumadinho revela uma das dimensões estruturantes do capitalismo: o modo como o próprio mercado ignora e invisibiliza os efeitos nocivos que produz à vida e à natureza. Apenas um ano depois da tragédia, a Vale não apenas recuperou seu valor de mercado quanto ampliou sua lucratividade. Esse resultado, puxado pela valorização no preço do minério, foi, em parte, alcançado justamente graças aos efeitos do desastre já que o aumento do preço decorreu de um descompasso entre oferta e demanda causado pela diminuição da quantidade de minério extraído pela empresa após o rompimento da barragem.

Para o mercado, pouco importam os efeitos não mercantis de suas ações, mais ainda se eles recaem com mais intensidade sobre os mais despossuídos. Não por acaso, ainda segundo os dados produzidos pelo PoEMAS, 68,7% das pessoas que vivem nas áreas que poderão ser destruídas ou inundadas no caso de novos rompimentos de barragens em Minas Gerais são negras . Trata-se, portanto, de uma invisibilidade que é politicamente configurada, por meio de escolhas locacionais discriminatórias, da minimização dos danos, da desinformação e do bloqueio à participação democrática.

Nos somar à exigência por reparação integral, defender a participação efetiva dos atingidos no acordo para compensação pelos danos coletivos e manter a memória deste crime são posicionamentos fundamentais para impedir que a lógica da invisibilização siga garantindo que a lucratividade se imponha sobre o cuidado com a vida.

*Julianna Malerba é assessora nacional da ONG FASE e doutoranda em Planejamento Urbano e Regional pela UFRJ