05/05/2014 14:27

Aercio de Oliveira (Coordenador da FASE-Rio)

Os acontecimentos violentos na cidade do Rio de Janeiro indicam a impossibilidade de a vida de milhares de pessoas que trabalham em serviços precários, majoritariamente mestiças e negras, que moram em favelas e bairros periféricos, seguir o seu curso com a normalidade de outrora.

Essa afirmação, não significa que a vida, por aqui, mudará para melhor ou que o mal-estar se agravará. Impossível fazer alguma previsão desse tipo. Mas, frente a um cenário urbano dantesco, só é possível criticar, propor e manifestar contrariedade. Devemos nos juntar às pessoas indignadas que ao se manifestarem apontam a incapacidade ou quase falência das instituições que compõem o nosso sistema político e da máquina estatal. Desta, sempre esperamos, com o advento da formação do Estado moderno, em um regime democrático, que assegure direitos e que as mazelas sociais sejam enfrentadas cotidianamente até vermos o seu fim – ainda que esse fim não passe de uma poderosa idealização.

Numa visada retrospectiva, com base apenas em nossa história republicana, lamentavelmente reconhecemos que o Estado sempre fez muito pouco em favor da “raia miúda”. Reduzir a pobreza, distribuir a riqueza nunca foi a sua marca. Não sem razão, que falam em “Estado de Mal Estar-Social”, mesmo ele sendo bastante capilarizado territorialmente e sofisticado em seu funcionamento. Em nossas paragens, a máxima de que “o Estado é o gabinete da burguesia”, sempre teve um sentido absoluto.

As medidas que “modernizaram” o Estado brasileiro foram, em boa parte, efetivadas de cima para baixo. Casos paradigmáticos que apresentam essa deformidade institucional, característica de sociedades tão desiguais, são pelo menos dois: a Consolidação da Legislação Trabalhista (CLT), criada em 1943, que efetivou direitos para o operariado urbano, mas, concomitantemente, retardou o surgimento de uma classe trabalhadora autônoma; e o outro, a situação das profissionais que trabalham como empregadas domésticas que até o ano passado não tinham todos os direitos previstos na CLT. Uma categoria profissional que registrava, em 2010, um total de 7,2 milhões trabalhadoras – apenas 504 mil homens.

Essa forte marca do Estado brasileiro, a da exceção em vez do direito e da inclusão, amalgamou-se ao longo de muita história. Em nosso período republicano colecionamos três golpes e duas longas ditaduras – “a virada de mesa” que defenestrou a “República Velha” em 1930; as ditaduras do Estado Novo (1937-1945) e a Civil-Militar (1964-1984). Entre ditaduras e governos conservadores a desigualdade patrimonial e de renda foi aprofundada. A alteração dessa estrutura foi ínfima e seguiu o vagar do tempo. São períodos da nossa história que nos ajudam a conhecer a genealogia da reprodução social de uma das sociedades mais desiguais do mundo. Para garantir uma estrutura social das mais iníquas do planeta, dentro de uma sociedade secular, o terrorismo estatal, com muita repressão política e conservadorismo, foi essencial.

O fato é que a história política apresentam-nos poucas alternativas de meios para assegurar por muito tempo as diferenças sociais. As mais conhecidas e analisadas pela sociologia ou filosofia política são aquelas que encontram justificativas em preceitos teológicos (como é o caso das sociedades medievais, por exemplo); ou a utilização da força bruta, cuja coerção é exercida para submeter determinado grupo e preservar os interesses de outros. A posição antagônica a esses procedimentos que é a mais conhecida, que possibilita mobilidade social e a quebra de estruturas estamentais, é a instituição do Estado de Direitos (em que a distribuição da riqueza, a alternância do poder político dentro de regras democráticas substantivas são os meios para manter a estabilidade e o bem-estar social).

Não que o uso de justificativas teológicas ou da força deixou de existir. Com efeito, após o processo de secularização, onde o uso de justificativas metafísicas foram enfraquecidas e transferidas para a vida privada, e uso da força bruta passou a ser admitido em circunstâncias muito específicas, espera-se que a legitimidade estatal seja adquirida através da promoção da justiça social e a distribuição do poder político. Após crises econômicas, revoluções socialistas, organização dos trabalhadores, efetivação de partidos reformistas e socialdemocratas, muitos países da Europa e mesmo os Estados Unidos das Américas optaram pela promoção de algum nível de distribuição de renda e do patrimônio. Medidas capazes de garantir a paz entre pobres e ricos e reduzir a distância entre o padrão de vida de cada um desses estratos sociais.

No Brasil, o que predominou foi a força contra a população pobre, a repressão política, a violação ou a inexistência de direitos civis e sociais plenos. Os mais otimistas, com algum sentido, lembrarão de algumas iniciativas dos governos ao longo da nossa república, de Vargas a Dilma. São serviços, políticas e benefícios oriundos de recursos públicos, coordenados e efetivados pelo Estado brasileiro. Tudo bem, mas são políticas que atravessam o tempo e são incapazes de alterar substantivamente a nossa estrutura social.

É essa a questão que subjaz os fatos atuais e que não é possível ignorar. É disso que as manifestações de rua, desde junho de 2013, têm comunicado de maneira explicita ou cifrada. Portanto, para manter uma sociedade com a nossa estrutura socioeconômica, quase que imutável em mais de 150 anos de república, foi preciso utilizar muita bala, cassetete, cometer genocídios, construir cadeias, criminalizar os movimentos sociais etc. A repressão sempre foi a marca, o apanágio do estado brasileiro. E o que vemos hoje no Rio de Janeiro e em outros estados da federação, que copiam o modelo das Unidades de Policia Pacificadora, implantadas nas favelas cariocas e em bairros da periferia da cidade, nada mais é que a continuidade desta lógica nefasta.

Só que há algo diferente que o establishment não quer admitir. Esta sociedade, especialmente a população mais pobre, não tolera tanta violação, tanta desigualdade e seletividade do Estado na aplicação de direitos. As elites esquecem que no bojo do processo de redemocratização do país a esfera pública nacional assumiu novas características e a democracia combinada com justiça social passou a ocupar centralidade nos discursos e manifestações de muitos. De tal modo, que, além das eleições livres, tivemos um novo ordenamento jurídico, a partir da Constituição de 1988, que contribuiu para a conformação de um ambiente simbólico, mesmo que ainda frágil, de cultura de direitos.

Em um período de 30 anos, ocorreram muitas mobilizações e novas organizações ligadas às lutas por direitos surgiram. Além da mobilização de trabalhadores, organizações de bairros, donas de casa na luta contra a carestia, parte da igreja católica progressista com a criação das Comunidades Eclesiais de Base e das Pastorais, institutos universitários e pesquisadores, apareceram organizações sociais que assessoravam esses movimentos e as organizações sociais classistas ou de bairros. Organizações sociais que também pautavam a necessidade de se garantir diretos mais amplos. Inclusive, muitas dessas organizações conhecidas atualmente como ONGs, que surgiram na onda neoliberal para assumir responsabilidades do Estado, se proliferaram em muitas favelas e bairros periféricos.

Essas organizações sociais, de alguma maneira, ao lado de outras organizações críticas ao neoliberalismo, contribuíram e contribuem para a difusão do reconhecimento de que os agentes do estado e suas instituições não podem atuar seletivamente, de que precisam atender a legitima demanda por direitos apresentada pela população. Essas organizações, imperceptível para muitos, orientam e estimulam moradores e moradoras a lutarem por direitos, que devem ser garantidos igualmente a qualquer pessoa, independente da renda, da cor da pele, do local de moradia, da crença religiosa, do sexo ou do gênero.

Muitas das mobilizações atuais em favelas do Rio de Janeiro confirmam esse movimento que cresceu ao longo de décadas. Ao lado de cada manifestação, encontramos grupos e organizações emergentes, da própria favela, organizada pelos próprios moradores, ou organizações compostas por quem não mora na favela, mas que nela atuam; há estudantes e pesquisadores engajados em processos combativos a tantas violações, dispostos a transformarem a nossa sociedade. Aliás, é um fato que saltam aos olhos a quantidade de jovens estudantes de universidades engajados nas mobilizações sociais.

O que vemos é a total incongruência entre o que é anunciado em nosso ordenamento jurídico, como a constituição e inúmeras leis que asseguram direitos, e uma estrutura social desigual, que a todo custo é preservada por agentes do Estado, muitos eleitos, que ocupam postos chaves para a construção de políticas públicas. A instituição policial, por exemplo, é mais uma dentro dessa miríade de instituições que olham a pobreza como atraso para o “desenvolvimento” do país. Parece que o que ocorre no Rio de Janeiro, que não é exatamente o mesmo que ocorre em outras metrópoles, é mais uma sinalização às instituições políticas e estatais de que elas precisam enfrentar essa incongruência e romper com a inércia, a indiferença a tanta desigualdade.

Enquanto as medidas forem superficiais ou simulacros de políticas públicas, combinadas com a criminalização da pobreza e dos movimentos sociais, cada vez mais a indignação aumentará. Ninguém, como outrora, ficará acuado submetendo-se à tamanha iniquidade. Não bastam mais políticas focalizadas ou emergenciais de combate à miséria, que são necessárias e bem vindas. Mas a população quer bem mais do que isso.

A Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, marcado para acontecer em 2016, de alguma forma, ajudaram a desnudar como o nosso Estado sempre funcionou para garantir a existência de uma das sociedades mais desiguais do mundo – no caso, pouco importa se governado por conservadores ou democratas. Sempre transferindo montanhas de dinheiro público às empresas privadas e investindo migalhas naqueles serviços e bens públicos que deveriam beneficiar o grosso da população.

Assim, as elites políticas e econômicas, para reproduzir seus ganhos e poder, e mesmo para ganharem alguma legitimidade, precisarão rapidamente alterar seu modos operandi. O número de indignados aumenta. Muitos não ficam mais indiferentes ao saber que um país como o Brasil, que está entre as dez principais economias do mundo, tem a quarta maior população carcerária do planeta com cerca de 600 mil presos; que 50 mil pessoas sejam assassinadas anualmente e que, majoritariamente esses mortos são negros, jovens e pobres.

Ninguém mais suporta ver cenas que parecem sair da literatura ou do cinema ficcional. Tem de tudo: do quase cômico ao trágico. Temos o roubo de seis vigas do viaduto da Perimetral, cada uma delas com 40 metros de extensão, pesando ao todo 120 toneladas, que o prefeito, em entrevista, espera contar com a ajuda de Deus para encontrar os criminosos; há o episódio trágico em que uma senhora ao sair de casa foi alvejada por disparos de armas da polícia e depois arrastada pela via pública, presa ao camburão dirigido pelos policiais que nela atiraram; agora temos uma lei estadual que proíbe o uso de bonés em determinados espaços públicos; e, para completar, mais um jovem, entre tantos, que trabalhava em um popular programa de televisão, é assassinado dentro da favela Pavão-Pavaozinho, localizada no bairro de Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro. Esses são episódios mais recentes, pois um inventário mais cuidadoso exigiria um texto bem mais longo que amplificaria nosso descontentamento.

Infelizmente, para reforçar os argumentos que esse texto apresenta, o novo governador do estado do Rio de Janeiro, no meio deste caos, entre tanta violência institucional, fala em remover famílias das favelas para ampliar vielas e acabar com becos para facilitar o fluxo das viaturas policiais e outras sandices. Ele e muitos outros governantes não conseguem falar do fundamental. Um pensamento dessa natureza expressa o cinismo sempre presente entre as nossas elites políticas que representam os verdadeiros donos do poder – empresas da construção civil, empresas que controlam o transporte público, corporações financeiras, indústrias nacionais e transnacionais. É um enunciado usual de uma minoria que insiste, mais por cinismo do que por estultice, em ignorar a existência de mobilização e crítica ao status quo. São esses que insistem em negar, que mesmo com as suas disfuncionalidades, o Estado deve assegurar direitos para o conjunto da sociedade e, como corolário, perseguir a redução das desigualdades sociais.

A população brasileira não suporta mais ver o Estado transferir um “cala boca” para o grosso da população. As mudanças precisam ser profundas e efetivadas com seriedade, de maneira que possamos acreditar que alterarão positivamente a atual estrutura social; que mudarão o nosso cotidiano dantesco; que serão capazes de desconcentrar o poder político, a renda, a terra urbana e rural; que contribuirão para o nascimento de um ethos societário que não admitirá em qualquer hipótese que os direitos sejam acessados ou promovidos de maneira seletiva.