26/09/2019 16:18
Aercio Barbosa de Oliveira¹
Ao longo da história do capitalismo o posto de ministro da economia de um governo quase sempre teve destaque. No século XX, elevou a sua importância quando Margaret Thatcher governou o Reino Unido, de 1979 a 1990, e Ronald Reagan presidiu os EUA, de 1981 a 1989. Os dois trouxeram à luz as ideias neoliberais, que andavam adormecidas e transformaram radicalmente o funcionamento do Estado, da economia, da política e da cultura de seus países e alhures. Em pouco tempo, as estruturas estatais de muitos países passaram a se subordinar às elites econômicas.
No Brasil, a partir de 1989, o decálogo conhecido como “Consenso de Washington”, que indicava medidas como a redução dos gastos públicos, desregulamentação das legislações econômicas e trabalhistas, privatização das estatais, entre outras medidas, era, aos eleitos para governar o país, sagrado como a lei de Moisés é para um Rabino. Por aqui, tivemos, sob a batuta de economistas, sequestro do dinheiro guardado na poupança, privatização de empresas públicas, elevação do endividamento público interno, primarização da economia, estímulo ao consumo e ao endividamento de famílias. A dosimetria foi variada, mas quem ocupou o Palácio Alvorada, ao longo desses 30 anos, não conseguiu ignorar os mandamentos neoliberais.
Em 2019, desde a posse do governo Bolsonaro, Paulo Guedes, o ministro da economia, assume um neoliberalismo dogmático e autoritário. Sem acanhamento, num discurso realizado em Dallas², quando a comitiva do governo brasileiro foi aos EUA, o ministro, formado na universidade de Chicago, ninho do neoliberalismo no século XX, anunciou que “tudo o que é público no Brasil está à venda”. A sua biografia profissional mostra o quanto ele está comprometido com os agentes econômicos, especialmente os do setor financeiro. Antes de assumir o ministério, Guedes era gestor do Fundo BR investimentos; foi fundador do Banco Pactual e do Instituto Milenium. Adiciona-se ao seu currículo a participação na equipe econômica do ditador chileno Augusto Pinochet, que deu um golpe em 1973. O Chile serviu de “laboratório” antes mesmo da doutrina neoliberal ganhar fôlego com Thatcher e Reagan.
Ao ministro da economia não tem faltado empenho para cumprir o que prometeu e transformar o Brasil definitivamente no paraíso das grandes corporações e do setor rentista. Especialistas da área econômica vaticinam que com essas medidas o Brasil será uma plataforma para a extração de energia, água e produção de commodities agrícolas e de proteínas. A receita adotada por Guedes é tão radical que tem causado controvérsias dentro do próprio campo neoliberal. Alguns próceres ocupantes de cargos relevantes em governos anteriores, que se inspiraram em Friedrich Hayek (1899 – 1982) e Milton Friedman (1912-1996), têm manifestado publicamente desacordo à política econômica. Parece que os fundamentos neoliberais, que orientam as medidas e intenções do governo, foram extraídos de economistas neoclássicos do século XIX. Em qualquer manual de história da economia é possível identificar a presença das ideias de Jean-Bapstite Say (1767-1832) e Nassau Senior (1790-1864) nas propostas do atual ministro. Para se ter uma ideia, esses economistas são parte da linhagem mais conservadora da teoria neoclássica, capazes de transformar Adam Smith em um socialista.
O evidente empenho de Paulo Guedes é compatível com a dinâmica predominante do capitalismo contemporâneo, cuja parte substantiva do valor é produzida no mercado financeiro por meio da transação de títulos, contrato de commodities, ações, licença de patentes e da propriedade intelectual e com a extração de bens naturais como água, minerais, petróleo e o uso da terra para o agronegócio, além da exploração máxima do trabalhador.
A premissa desse neoliberalismo fundamentalista é simples: as forças do mercado atuando livremente produzem riqueza, que somente os mais habilitados e talentosos são capazes de gerá-las e possuí-las. Assim, o governo federal vê o desemprego³ e o consequente desalento e miséria como algo natural; entre as metas estão a de desconstruir qualquer política pública que minimize a desigualdade; destruir os fundos públicos para a promoção, ainda que precária, de algum nível de distribuição da riqueza produzida socialmente⁴; desonerar a folha de pagamento e precarizar ainda mais a relação entre empregado e empregador; relaxar a punição dos responsáveis pelo trabalho escravo contemporâneo; promover todos os meios para que o governo transfira suas receitas para os rentistas e banqueiros – para isso, antes do atual governo, foi criada a lei do teto dos gastos públicos e que agora foram “tiradas da gaveta” leis para desvincular as receitas da União, para demitir funcionário público, etc.
Para garantir o bem-estar dos banqueiros, ainda há os cortes nos recursos da educação universitária⁵, dos investimentos públicos em políticas urbanas, nas áreas da saúde, entre outras. O ministro anuncia, por onde passa, que tem o propósito de vender todas as estatais, desidratar o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e acabar com bancos públicos como o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal. O projeto de lei 3.261/2019, de privatização dos serviços de abastecimento de água e tratamento de esgoto, que, após ser votado em regime de urgência no Senado, tramita na Câmara dos Deputados é um exemplo da marcha privatista desse governo.
Toda essa desconstrução é impulsionada por um governo que sintetiza a aliança de setores neoconservadores, que atacam a agenda de costumes, com setores que assumem um neoliberalismo autoritário. Esse desmonte tem encontrado muita resistência nas mobilizações de rua, em manifestações, dentro de instituições, mas não temos como prever até onde ela chega. O fato é que, em tão pouco tempo, temos um País polarizado politicamente que se desfigura social e economicamente com o aumento da desigualdade.
A sociedade e as estruturas estatais são dinâmicas e nesse contexto, que visa a destruição absoluta, eleitores ficam desiludidos, as disputas no interior do governo são intensas e os conflitos do governo com determinadas frações da elite econômica é constante. Mas, ainda assim, não há outra alternativa, a não ser a de se manter mobilizado na resistência, de disputar narrativas, de combater incansavelmente a naturalização das desigualdades e a indiferença a qualquer tipo de violência; prosseguir e fortalecer práticas econômicas, societárias, políticas e ambientais alternativas à lógica do capitalismo, em defesa da terra e territórios, a água, os minerais e a cidade como bens comuns em oposição à supremacia da propriedade.
Seguimos defendendo a vida e construindo formas alternativas ao capitalismo que santifica a plutocracia e tem o dinheiro como o principal mediador não só da economia, mas das mais elementares relações societárias.
[1] Coordenador do programa da FASE no Rio de Janeiro e integrante do Grupo Nacional de Assessoria da FASE Nacional.
[2] Paulo Guedes defende abertura econômica.
[3] Desemprego cai para 11,8% em julho, mas ainda atinge 12,6 milhões.
[4] Exemplo: a desconstrução do Fundo de Garantia do Trabalhador e da Previdência Social
[5] Entenda o corte de verba das universidades federais.