Julianna Malerba
06/09/2023 16:09

O licenciamento ambiental significa uma conquista importante da sociedade do ponto de vista do
planejamento e regulação estatal, especialmente para os grupos que sofrem diretamente
os efeitos da implementação de obras e empreendimentos que causam grandes impactos
socioambientais.

Mesmo que ainda insuficiente quanto à participação efetiva dos grupos atingidos,
inclusive na decisão quanto à viabilidade do empreendimento, é preciso reconhecer que
o licenciamento garante algum grau de envolvimento da sociedade e de debate sobre a
implementação de uma obra e, sobretudo, garante uma avaliação e controle técnico dos
possíveis impactos negativos. O licenciamento é, portanto, um mecanismo fundamental
para que os interesses da coletividade – como a manutenção do meio ambiente
equilibrado, a proteção dos patrimônios culturais, históricos e socioambientais – sejam
resguardados e protegidos dos interesses estritamente econômicos.

O Projeto de Lei que dispoe sobre o licenciamento ambiental aprovado em 2021 pela
Câmara, agora em tramitação no Senado, no entanto, vai na contramão desse preceito e
representa um retrocesso gravíssimo à possibilidade de proteção de bens comuns a essa
e às gerações futuras.

A proposta cria um regime geral absolutamente abrangente de exceções que são
injustificáveis. O licenciamento antes regra, passa a ser praticamente uma exceção para a
liberação de empreendimentos que causam impactos significativos. O PL, por ex,
dispensa a obrigatoriedade de licenciamento para várias atividades que possuem enorme
impacto sobre a disponibilidade hídrica onde se instalam, como é o caso de obras de
implementação de sistemas de tratamento de água e esgoto, de cultivos agrícola e para a
pecuária extensiva, semi-intensiva e intensiva. O texto ainda cria a figura do
autolicenciamento, que ao lado das dispensas, elimina o controle prévio dos relevantes
impactos socioambientais dos empreendimentos, desobrigando a entrega de estudo
ambiental e a análise específica pelo órgão ambiental.

O Projeto ainda delega a autoridades e órgãos estatais as definições complementares à
lei, permitindo que em cada estado e município a aplicação do licenciamento possa vir a
ocorrer de forma distinta, o que seguramente levará a uma corrida pela flexibilização, com
as localidades diminuindo suas exigências ambientais a fim de atrair investimentos.

Ampliação das injustiças e desigualdades ambientais

Se aprovado pelo Senado será um passo decisivo ao desmonte de todo o aparato
normativo e institucional do Estado de proteção do meio ambiente, com graves
repercussões sobre os direitos de forma mais ampla, pois é impossível separar ambiente
sociedade. E com consequências ainda mais graves aos grupos historicamente
vulnerabilizados, pois sabemos que os custos da degradação ambiental não são
distribuídos de forma equânime na sociedade. Ao contrário de um certo “senso comum”
ambiental, a poluição não é democrática, não atinge a todos de maneira uniforme e não
submete todos os grupos sociais aos mesmos riscos e incertezas. Os grupos que tem
menos recursos políticos, financeiros e informacionais são os que sofrem de forma mais
intensa os impactos de degradação e, consequentemente, da desregulação ambiental.

É preciso lembrar que para o mercado pouco importam os efeitos não mercantis de suas
ações, mais ainda se eles recaem com mais intensidade sobre os mais despossuídos.
Não por acaso, 68,7% das pessoas que vivem nas áreas que poderão ser destruídas ou
inundadas no caso de novos rompimentos de barragens em Minas Gerais são negras.
Trata-se, portanto, de uma invisibilidade que é politicamente configurada, por meio de
escolhas locacionais discriminatórias, da minimização dos danos, da desinformação e do
bloqueio à participação democrática. Mecanismos que deverão se acentuar com a
diminuição da capacidade do Estado de atuar de forma preventiva.

Soma-se a isso o fato do projeto estabelecer que apenas os impactos sobre Terras
Indígenas homologadas serão consideradas em um processo de demarcação, excluindo
todas as demais terras indígenas em processo de demarcação. O mesmo vale para
territórios quilombolas. Serão impostos sérios impactos sobre esses grupos sem que
sequer devidamente avaliados ou previamente mitigados ou compensados.

É preciso aperfeiçoar o licenciamento em vez de flexibilizá-lo

Juntamente com os membros da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, da qual a FASE é
parte, sempre defendemos que os processos de licenciamento ambiental precisavam ser
aprimorados para evitarem injustiças ambientais. Temos defendido que as avaliações de
impacto devem levar em conta a diversidade de usos e significados dados a ele pelos
distintos grupos sociais que compartilham o território a fim, de justamente evitar que os
empreendimentos produzam danos irreparáveis à reprodução econômica, social e cultural
das coletividades diretamente afetadas.

Para isso, o processo de licenciamento e as avaliações de impacto devem considerar a
perspectiva diferenciada que cada grupo social tem sobre o ambiente em que vive e
garantir um envolvimento efetivo desses sujeitos – em todas as etapas pelas quais
necessariamente passa o projeto – desde sua concepção no planejamento, até o
processo de tomada de decisão.

O enfraquecimento do licenciamento ambiental retira uma possibilidade de que o Estado,
de fato, garanta que nenhum grupo, seja ele definido por raça, etnia ou classe
sócioeconômica irá arcar de maneira desproporcional com as consequências ambientais
negativas de determinada obra ou projeto.

Portanto, uma das principais consequências do PL será ampliar os conflitos e as injustiças
ambientais no país e, ao mesmo tempo, limitar o poder publico e as próprias organizações
da sociedade civil a uma atuação permanente na contenção e reparação de danos,
muitos dos quais, sabemos, que jamais poderão ser, de fato, reparados.

*Educadora do Grupo Nacional de Assessoria (GNA)