20/02/2018 14:42
A Câmara dos Deputados aprovou, na madrugada desta terça-feira (20), o decreto autorizando a intervenção federal no Rio de Janeiro. Foram 340 votos a favor, 72 contrários e uma abstenção. Horas antes, o governo de Michel Temer suspendia a tramitação da “tão urgente” Reforma da Previdência, pois nenhuma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) pode ser aprovada, como é caso da Reforma da Previdência, enquanto a intervenção vigorar. Toda essa manobra foi uma mera saída pela tangente diante do impasse político a que chegou o governo, que usa de subterfúgios para diluir no tempo o reconhecimento do fracasso na conquista de votos em relação à pauta.
O governo Temer fez da Reforma da Previdência a pedra de toque da sua legitimação junto aos ricos e privilegiados, sem dialogar com o conjunto da sociedade e ignorando a resistência dos movimentos sociais e demais setores populares. Apesar dessa determinação, nem a falsa narrativa acerca da suposta intenção de “acabar com privilégios” – sem na prática tocar em nenhum interesse das corporações mais poderosas -, nem a vergonhosa falsificação de dados do suposto rombo da Previdência foram suficientes para construir a base congressual necessária para aprovar mais esse golpe contra os direitos da população trabalhadora. Assim, a derrota política que se anunciava tornou imperativa para o governo uma manobra de autopreservação. Agora, o governo já trabalha para a aprovação de medidas de cunho neoliberal, como a privatização da Eletrobrás e a busca por autonomia do Banco Central, que respondam às demandas do mercado.
Não devemos subestimar, no entanto, a gravidade da intervenção federal no Rio de Janeiro. Ela não deve ser vista como um mero factoide, e sim como uma mudança na agenda política do governo golpista, aprofundando o autoritarismo em curso no país. Os primeiros vazamentos de informações sobre o assunto já prenunciam o aprofundamento do Estado de Exceção permanente a que está submetida a população das favelas, periferias e bairros populares. É assustadora a perspectiva de legitimação pelo Congresso Nacional da oficialização de diretrizes e práticas repressivas com enorme potencial de violação dos direitos humanos, como a atribuição da qualificação de “territórios hostis” a bairros populares em que se constate a presença de milícias e narcotraficantes. O sinal verde para o uso de força letal, ainda que nada mais seja do que a reiteração da prática cotidiana das forças estaduais de segurança, é um passo importante nessa escalada de violência simbólica e real.
No contexto da intervenção federal, devemos denunciar o aprofundamento do atual quadro de violência vivido nas favelas, periferias e bairros populares, marcado por operações policiais, disputa entre grupos armados, fechamento de escolas e postos de saúde, mortes e ferimentos de parentes e amigos, invasões de domicílios etc. Poderemos assistir nos próximos meses ao agravamento da espetacularização midiática das operações de segurança e do que tem sido denunciado no Rio de Janeiro como “uma política de segurança que adoece a favela”¹. A população favelada, especialmente a população negra, sabe o que vem por aí e, inclusive, já está desenvolvendo mecanismos de conduta para se proteger, como: não andar sem documentos; avisar a familiares e amigos sobre locais a serem visitados; e estar sempre com celulares carregados, a fim de fazer ligações em caso de emergências ou filmar abordagens e possíveis violações de direitos humanos.
Todo o debate em torno da oportunidade dessa decisão do governo Temer de intervir no Rio de Janeiro também revela a dificuldade da sociedade para compreender o significado dessa medida autoritária na escalada golpista. O próprio decreto gera confusão e questionamento ao estabelecer que o cargo de interventor é de natureza militar. Especialistas apontam para a inconstitucionalidade da medida², já que a intervenção federal descrita no artigo 21 da Constituição exige um interventor civil.
Mais uma vez, buscando a sua sobrevivência política, o governo Temer não hesita em aprofundar o clima de insegurança jurídica e de crise institucional em que o país mergulhou desde o impedimento da presidenta Dilma Rousseff. Na contramão da avaliação da grande maioria dos especialistas em segurança, inclusive de militares, o grupo no poder não vacila diante da perspectiva de expor até mesmo as forças armadas ao profundo desgaste que poderá decorrer diante provável quebra de expectativas em relação ao sucesso da missão que ora lhe é atribuída.
Fica patente que a manobra do governo golpista visando uma guinada na agenda política do país não teve base em qualquer planejamento sério com vistas ao enfrentamento dos problemas estruturais da segurança pública no país e no Rio de Janeiro, cujo primeiro passo seria necessariamente uma profunda restruturação das polícias. Como não é disso que se trata, não podemos descartar a possibilidade de que os pescadores de águas turvas que ocupam a Presidência da República tenham movido as suas peças em mais um lance no caminho da exceção e da ditadura.
[1] Ver reportagem no Blog da Luiza Sansão, no Outras Palavras.
[2] Ver reportagem de Sérgio Rodas, no Consultor Jurídico.