25/02/2022 16:54
Jorge Eduardo S. Durão*
Não podemos abordar a questão da invasão da Ucrânia pela Rússia sem expressarmos inicialmente o mais contundente repúdio ao recurso à guerra como forma de solução dos conflitos, tendo como terrível sequela as mortes, destruição e violações dos direitos humanos.
As manifestações da sociedade civil e das organizações sociais (ONGs), no Brasil e no mundo (inclusive na Rússia), contra a guerra não devem ser entendidas apenas como manifestações de solidariedade a causas distantes e a povos, cujo trágico destino lamentamos, que estão do outro lado do mundo, longe física e politicamente da nossa realidade. É preciso entender que, na atualidade, a guerra é uma ameaça à Humanidade, inerente às contradições e injustiças da ordem mundial estabelecida depois da Segunda Guerra e aprofundada depois da vitória dos EUA e seus aliados na Guerra Fria e na Guerra do Golfo, em 1991. Tais contradições resultam em ameaças à segurança e aos legítimos direitos de todos os povos e Estados que não fazem parte do escalão superior da hierarquia de Estados, formado por aqueles que têm o poder de veto no Conselho de Segurança da ONU e armas atômicas.
As percepções acerca da natureza dessas contradições são constantemente obscurecidas pelas confusões semânticas, alimentadas pela mídia comercial, que se refere às potências ocidentais hegemônicas, habitualmente, como “comunidade internacional” (como se China, Rússia ou Índia não fizessem parte dessa comunidade). Fazem uso seletivo de princípios do direito internacional – ora soberania dos Estados, ora autodeterminação dos povos, ora intervenções humanitárias -, sempre adotando a escolha feita casuisticamente pelos EUA, segundo seus interesses.
Nas últimas décadas, ONGs de todo o mundo denunciaram a estratégia unilateralista de dominação implementada pela potência hegemônica, os EUA, e seus mais próximos aliados, cujas opções estratégicas reduziram a pó as esperanças daqueles que acreditavam que o monopólio do poder militar pelos EUA, depois do fim da Guerra Fria, faria da potência dominante uma espécie de garantidora da paz universal. Junto com essas esperanças de paz, desfizeram-se também as apostas numa ordem mundial baseada em valores universalistas e no fortalecimento da ONU e outras instituições multilaterais. Guerra após guerra (Golfo, Sérvia, Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria, etc.), os EUA foram, sistematicamente, golpeando as Nações Unidas e gerando alguns conflitos com aliados europeus, evidenciando que sua vontade se sobrepõe a qualquer ordenamento jurídico internacional.
A expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) para o leste da Europa após o fim da União Soviética, duplicando o número de membros, constituiu uma opção belicosa que tornou procedente o temor dos russos em relação à sua segurança. A decisão da Rússia em agredir a Ucrânia, dando início ao derramamento de sangue de inocentes, não pode ser justificada pela constatação de que a Ucrânia foi insensível às preocupações de segurança do país vizinho, fazendo o jogo político dos americanos.
A recusa dos EUA de aceitarem o multilateralismo e o restabelecimento do equilíbrio entre grandes potências, não dá margem sequer ao exercício de uma efetiva autonomia política da União Europeia. É incompreensível que Alemanha e França ajam contra os seus interesses, como ocorre com a suspensão da certificação do gasoduto que ampliaria o fornecimento de energia da Rússia para a Europa. Explica-se, portanto, a deliberação recentemente anunciada por China e Rússia de promoverem uma verdadeira refundação da ordem mundial, declarando uma “aliança sem limites” entre os dois países e um questionamento radical das veleidades ocidentais de ditarem suas interpretações, valores e princípios aos demais Estados. Mais uma razão para acreditarmos que, depois da guerra na Ucrânia, a ordem mundial não será mais a mesma.
Jorge Eduardo S. Durão é assessor da FASE.*