01/02/2022 19:34
Caio Barreto Briso*
Conheci Moïse quando fui à favela Cinco Bocas, em Brás de Pina, fazer uma reportagem sobre a vida dos congoleses no Rio. Acabei me aproximando de um dos seus melhores amigos. Chadrac me apresentou a vários conterrâneos. Na hora do almoço, convidei-o para comer. Ele agradeceu…
… mas recusou: não se sentiria bem almoçando em um restaurante enquanto amigos passavam fome. Fomos então ao supermercado e enchemos um carrinho de comida. Comecei a entender ali quem eram aqueles imigrantes: se um come, todos comem. Se um passa fome, todos passam fome.
Conheci um economista congolês que falava francês, lingala, português e inglês. Sonhava ser contratado como tradutor na Rio2016, mas só conseguiu vaga como voluntário. Um administrador virou faxineiro. Chadrac, formado em hotelaria, carregava pedras em troca de 60 reais por dia.
A coordenadora da Cáritas RJ, Aline Thuller, contou na época que empresários cariocas preferiam contratar imigrantes brancos, como os sírios. Congoleses, angolanos e haitianos só eram procurados para trabalho braçal – como carregar e descarregar caminhão de pedra, caso do Chadrac.
Um mês antes de João nascer, demos uma festa para 100 pessoas lá em casa. Enchi a playlist de Fally Ipupa, Simaro Lutumba e chamei Chadrac e seus amigos. Moïse, mais sossegado, não foi. Vocês já viram um congolês vestido pra uma festa? São os mais elegantes e melhores dançarinos do mundo
No sábado à noite, Chadrac me ligou pedindo ajuda. Contou chorando que mataram Moïse. Não consigo pensar em outra coisa desde então, assim como não consigo esquecer de um bebê recém-nascido que o pai, um homem chamado Luta, batizou de Vencedor. Era o primeiro carioca da família.
Luta fugiu para o Brasil com sua mulher grávida. Sonhava ser jogador no país do futebol, mas acabou no subemprego. Uma vez liguei pra saber como estavam: Vencedor tinha morrido. Segundo o pai, de desnutrição, pois a família só tinha dinheiro pra comer “fufu” (fubá em lingala).
A situação dos congoleses, angolanos e haitianos no Brasil é terrível e atravessa governos de centro-esquerda e extrema-direita de forma surpreendentemente parecida. O racismo estrutural bloqueia avanços profundos. Eles têm as nossas lágrimas, mas só podem contar com eles mesmos.
Eu queria ter esperança, queria acreditar que as coisas podem melhorar, mas a esperança foi assassinada a pauladas atrás de um quiosque. Que Eduardo Paes faça algo por Cinco Bocas. Que Claudio Castro, aliado de milicianos, priorize o caso Moïse. Vocês acreditam nisso? Eu não.
(Texto publicado originalmente no Twitter)
*Caio Barreto Briso é jornalista e repórter do Guardian