25/04/2020 12:56

Aercio Barbosa de Oliveira¹

Ao anunciar o programa de retomada da economia chamado “Pró-Brasil”², o governo Bolsonaro aumenta a espessura do nevoeiro em que ele nos meteu. Depois de regurgitar tantas sandices, ao radicalizar ideias obscurantistas, de atentar contra a vida de milhares de famílias e disseminar o ódio, de ardilosamente difundir desinformações no meio de uma pandemia, de ignorar a relevância da ciência e do jornalismo de qualidade, militares do seu governo tentam mostrar que há espaço para propostas racionais. Eles apresentaram, sem o testemunho público do ministro da economia Paulo Guedes, o programa de retomada econômica pós-pandemia, que alguns apelidaram de “Plano Marshall³”.

Muitos, encontrarão neste anúncio motivações para reforçar a tese de que os militares ampliaram o seu poder no governo e que falta pouco para dar o nó decisivo na camisa de força que colocaram no Nero dos trópicos. Noticiário da grande imprensa, ao tratar do “Pró-Brasil”, informam que o “gabinete do ódio” foi afastado do Planalto, e, ao mesmo tempo, Paulo Guedes, ministro da economia, e a sua equipe estão contrariados com o programa econômico apresentado pelos ministros da Casa Civil, Walter Braga Netto, e o da Infraestrutura, Tarcísio Freitas.

No entanto, ao se verificar com atenção o que parece ser mais um “plano de intenções” e menos um programa econômico, podemos reconhecer que ele é o prenúncio do que está porvir. Segundo o ministro de Infraestrutura, o Pró-Brasil prevê R$30 bilhões de investimentos públicos e R$250 bilhões em contratos de concessões à inciativa privada. Desta forma, diferente de muitos analistas que tentam extrair positividade da pandemia, característica muito comum na nossa tradição cultural de matriz judaico-islã-cristã, cujo sofrimento será sucedido, em algum momento, por algo bom ou, no mínimo, de que o caminho para se alcançar o bem ficará nítido. O que o programa mostra é o avanço das privatizações e concessões do que ainda restou da era neoliberal inaugurada no Brasil pelo então presidente Collor de Melo.

Desta vez a maior justificativa para entregar o patrimônio será os efeitos econômicos provocados por um microrganismo. Com isso, inevitavelmente menos Estado e mais privações para as pessoas acessarem bens e serviços que deveriam ser públicos. O ministro de Infraestrutura reiterou que leilões serão publicados no fim deste ano, visando gerar 1 milhão de empregos. Seguramente, gerar emprego é importante, no entanto, entraremos numa realidade pós-pandemia que se estima, num cálculo modesto, um salto de 12 para 25 milhões de desempregados e, por conseguinte, o aumento da desigualdade, miséria e pobreza. Ou seja, teremos um plano que, se efetivado, estará longe de enfrentar satisfatoriamente as consequências dantescas que atormentarão a maioria da população que já vivia em indignas condições de vida.

Disso que foi apresentado, podemos sim, inferir que Paulo Guedes e sua equipe está perdendo força. Afinal de contas seus delírios e medidas envergonham ou neoliberais mais ortodoxos. Ele não consegue pensar em outra solução para atenuar as chamas do nosso inferno que não seja o Deus “mercado”. Uma postura que às vezes parece iludir, nos levando a crer que ele sofre de uma patologia psíquica e de que não é pura desfaçatez. Guedes não admite renunciar aos ensinamentos dos pais da economia neoclássica, como Jean-Baptiste Say e Frédéric Bastiat, nem que seja temporariamente. Portanto, não é nada improvável que o caminho de Guedes e da sua equipe seja o da rua. Melhor, uma dedicação sem entraves ao serviço de engordar a riqueza própria e a dos rentistas e investidores do mercado financeiro que amam crises. Se não for isso, certamente terão os seus poderes cada vez mais reduzidos.  A segunda inferência é de que os militares encontram seu espaço de poder dentro do governo sem precisar tomar medidas drásticas, ao menos por ora. E trabalham na tentativa de conter a alta fervura que se estabeleceu nas relações entre o governo e as demais instituições da nossa democracia liberal. Parece que só a movimentação do Bolsonaro em cooptar partidos e figuras da “velha política” não é suficiente.

Tudo isso, são fatos parciais que ocorrem num espesso nevoeiro onde é difícil avaliar com nitidez seus desdobramentos. Mais do que nunca, algumas leis e teorias físicas podem nos servir de metáforas. A que sempre me vem à cabeça, no meio de tamanha encrenca, é o “princípio da incerteza”. Na era “bosozoica”, certamente teorias e leis da física têm pouca utilidade, não passam mesmo de metáforas. Contudo, é inegável a necessidade de se atualizar aquelas que orientam a ciência política e mesmo a movimentação dos partidos de esquerda que ocupam e disputam poder dentro do sistema político formal. Do contrário, teremos poucas chances de nos mantermos num combate consequente, capaz de enfrentar o neofascismo brasileiro que sofre visíveis mutações dentro desta pandemia.    

[1] Coordenador do programa da FASE no Rio de Janeiro e mestre em Filosofia da Ciência. Texto publicado originalmente no Le Monde Diplomatique.

[2] Proposta de reocupação econômica pós-Covid-19, lançado no dia 22 de abril, terá sua implantação a partir de outubro. 

[3] Conhecido oficialmente como Programa de Recuperação Europeia, um aprofundamento da Doutrina Truman, foi o principal plano dos Estados Unidos para a reconstrução dos países aliados da Europa nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial.