23/03/2020 18:12
A pandemia do coronavírus expõe a perversidade da doutrina neoliberal, evidenciada no Brasil pelas ações e omissões do presidente da República e do seu ministro da economia. O primeiro, mostra suas limitações cognitivas ao não conseguir ver a realidade e ignorar as informações prestadas por profissionais de saúde e cientistas envolvidos no combate ao contágio e na tentativa de ampliar o conhecimento sobre o Covid-19. O segundo, preso aos dogmas de um sistema econômico incapaz de assegurar condições de vida decentes para a maioria dos seres humanos, é forçado a um recuo tático depois de editar medida que penaliza cruelmente a massa trabalhadora. No Brasil, que voltou a seguir esse receituário com radicalidade, em pouco tempo, aumentou a miséria e a desigualdade. Enquanto o Fundo Monetário Internacional (FMI) anuncia que as economias devem tomar medidas anticíclicas para conter o número de mortes e o colapso da economia real, o ministro fala que a melhor maneira de conter a pandemia é realizar as reformas, que desresponsabilizam o poder público e enfraquecem a sua capacidade de prestar assistência à população, e privatizar as empresas públicas. Ele ignora a dramaticidade da realidade, que levou o secretário-geral da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) a dizer que será preciso um novo “Plano Marshall”, dada a importância do Estado, sobretudo dos países ricos para garantir o funcionamento da economia real. Enquanto governos, como o de Portugal, ao determinar o “distanciamento social”, tomam medidas econômicas para reduzir os efeitos nefastos sobre os trabalhadores, o governo brasileiro apresenta uma medida provisória que permite ao empregador reduzir pela metade a carga horária de trabalho e do salário; anuncia um “voucher” de R$ 200 mensais e outras medidas que estão longe de conter o aprofundamento das nossas mazelas sociais em virtude do coronavírus.
Seguindo a lógica neoliberal, de aumentar a pobreza de muitos e a riqueza de poucos, a nossa elite de matriz escravocrata se apoia nesse governo com a ajuda da grande imprensa, para criar uma cortina de fumaça e impossibilitar o debate de medidas alternativas e enfrentar as consequências da pandemia. Durante o seu período mais crítico, previsto para o início de abril, em que serão vitimados os idosos, sobretudo os mais pobres, que vivem em péssimas condições de habitação, entenda-se também sanitária, aparecerão bodes expiatórios e espantalhos para ludibriar a população. Os verdadeiros responsáveis, que retiraram dinheiro do Sistema Único de Saúde (SUS), aprovaram a Emenda Constitucional 95, que criou o teto dos gastos com políticas e programas sociais, que cortaram recursos do Bolsa-Família e do Benefício de Prestação Continuada (BPC), que aumentaram, com a desconstrução da legislação trabalhista, o número de trabalhadores precarizados e sem carteira assinada, e tantas outras medidas necessárias para garantir a transferência de recursos públicos para banqueiros e investidores que compram títulos do Tesouro, tentarão se manter no poder lançando factoides retóricos e fakenews. A imprensa corporativa, mesmo criticando as medidas do presidente da República, é porta-voz da elite brasileira e presta a sua contribuição para gerar desinformações. O melhor exemplo desse procedimento, “farinha pouca o meu pirão primeiro”, está no editorial do jornal O Globo de domingo 22, que sugere a redução do salário dos funcionários públicos.
Nossos milionários e parte considerável da classe média, igual ao presidente da república, ignoram a estrutura socioeconômica e do SUS. Temos um déficit habitacional que chega perto de 8 milhões de unidades habitacionais¹, com milhares de famílias sem abastecimento de água regular e sem esgoto tratado; existem 40,8 milhões de trabalhadores informais que ganham em média 1 salário mínimo e meio, sendo que 19,3 milhões sem qualquer registro, frente a 39 milhões de trabalhadores que ganham em média dois salário mínimos². Quanto ao SUS, a situação é alarmante para o momento de pandemia. Existem 40,6 mil leitos de Unidade de Tratamento Intensivo (UTI)³, no entanto, somente 44% dos leitos estão no SUS, rede responsável pela assistência médica de três quartos da população brasileira. Os outros 25% da população são os que possuem algum plano de saúde. Além disso, essas UTIs são distribuídas desigualmente. Em alguns estados do Norte e Nordeste, o índice mínimo de 1 a 3 leitos para cada 10 mil habitantes determinado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) não é cumprido.
Outro caminho
Para enfrentar esse cenário de emergência sanitária acertadamente e não sobrecarregar o SUS, os governos estaduais determinam, como medida preventiva, o “distanciamento social”. No entanto, tais medidas provocam um colapso econômico que penaliza justamente a maioria da população que está inserida e sofre com a estrutura social descrita acima. Para conter os estragos desse colapso econômico e atenuar os danos previstos que serão provocados para a saúde pública, organizações e movimentos sociais, e economistas que se opõem a cartilha neoliberal apresentam propostas que exigem do governo um outro caminho. Algumas delas são a de instituir uma renda mínima ao menos para 36 milhões de pessoas registradas no Cadastro Único, pois serão essas pessoas as que mais sofrerão com a falta de renda devido a abrupta contração da demanda por bens e serviços na economia; ampliação dos recursos para o Bolsa-Família; investimentos urgentes para o SUS; garantir o emprego dos trabalhadores do setor formal, com política complementar de salário feita pelo governo, como está ocorrendo em Portugal.
Para efetivar tais medidas, é preciso abandonar a política econômica monetarista que persegue a elevação do superávit primário para satisfazer os banqueiros e a elite rentista que consome quase que a metade da receita anual do governo federal, obtido por meio de impostos e do lucro das empresas públicas. No mínimo é preciso instituir a moratória da dívida pública, taxar as grandes fortunas, instituir uma reforma tributária que siga o princípio da progressividade e tantas outras medidas que se orientem pela vida e não pelo ganho de poucos.
Às organizações e movimentos sociais do nosso campo fica o desafio de mobilizar a sociedade para a formação de uma grande rede de solidariedade aos que mais precisarão de ajuda. Ao mesmo tempo, sem pôr em risco nossa saúde e vida, devemos continuar combatendo e denunciando o avanço do autoritarismo, apresentando propostas para um novo período da nossa história, que exige a renovação das nossas instituições, do sistema político e das diretrizes econômicas.
Infelizmente, a história da era moderna tem nos mostrado que são em momentos dramáticos que aparecem as oportunidades de realizar mudanças profundas, que podem melhorar as condições de vida das pessoas. A pandemia provocada pelo coronavírus colocou o sistema político e as elites abastadas diante de uma bifurcação: ou se abandona o abecedário neoliberal ou se contínua com ele podendo ter consequências sociais e políticas imprevisíveis.
[1] Dados PNAD/IBGE 2017.
[2] Dados do IBGE/2019.
[3] Portal Datasus/2019.