12/05/2020 15:51
Aercio Barbosa de Oliveira¹
A imagem de que a presidência da República é ocupada por Tânatos parece satisfatória. Na mitologia grega, Tânatos foi a personificação da morte e na psicanálise representa a pulsão de morte. Não que antes da pandemia do coronavírus essa imagem já não fosse cabível. Entretanto, com o passar dos dias, com as vidas ceifadas pela Covid-19 que não param de crescer, se evidencia o quanto uma parte considerável das nossas elites econômicas, que quer salvar custe o que custar o seu “CNPJ” (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica), e estratos sociais da população que alimentam o ódio, o sexismo, a homofobia e o racismo, afloram, com assustadora robustez, o Tânatos que carregam dentro de si.
As autoridades públicas de diferentes países estão assustadas com a maneira do governo brasileiro tratar a pandemia. A indiferença, o “E daí?”, deixam autoridades públicas, de diferentes matizes ideológicos, cientistas, economistas, intelectuais e qualquer pessoa, conservadora, liberal, socialista ou comunista, que se orientem por valores humanistas ainda que vaporosos, estarrecidas. O “E daí?”, desculpe-me os semiólogos e linguistas ao fazer uso tão apressado de dois conceitos fundamentais dessa área do conhecimento, evolado da boca do Tânatos da Alvorada me pareceu cumprir, simultaneamente, a função de símbolo e índice. Como símbolo, expressa um sentimento de indiferença, e como índice, ele redobra esse sentimento, que há muito tempo circula entre nós, sem gastar muita tinta, sem precisar falar muito. Funciona como aquela placa de trânsito que a seta indica que você deve seguir em frente. Nesse ambiente em que a expectativa de morte para o Brasil chega a centenas de milhares, o “E daí?” indica que banalizar a vida dos outros, de que a nossa capacidade empática deve ir às favas, é providencial. É o caminho para salvar a economia, CNPJs às custas de CPFs (Cadastro de Pessoa Física) e dos sem-CPFs.
Num mundo neoliberal, onde tudo tem um preço, noves dentro e noves fora, vida que segue, essa ideia de que morrer é algo tão natural, ganhou publicidade no recente depoimento da secretária especial de cultura do governo federal, quem, na ditadura militar brasileira (1964-1985), foi a “namoradinha do Brasil” e, no início da redemocratização, quase imortalizada na personagem da viúva Porcina, da novela Roque Santeiro, escrita pelo dramaturgo e assumidamente comunista Dias Gomes. Ela disse: “… Na humanidade não para de morrer. Se você fala vida, ao lado tem morte…”. A consonância com o Tânatos da Alvorada foi precisa. Parece roteiro combinado na última reunião que tiveram. A aparente obviedade, ao afirmar que vida e morte são faces da mesma moeda, esconde que, neste exato momento, o governo federal sinaliza e toma medidas de que a morte é a melhor solução para “enfrentar” a pandemia. As alternativas para viver mais são limitadas e não é responsabilidade do governo federal. Pode ser do Supremo Tribunal Federal (STF), do Congresso, dos governos estaduais, das prefeituras, mas não do Poder Executivo.
Justamente num país de tradição autoritária e de poder centralizado na União, o governo federal é quem monopoliza o poder de ampliar a base monetária, quem tem a capacidade de organizar e coordenar nacionalmente as ações de saúde e efetivar o distanciamento social, de prover por meio de políticas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) a segurança alimentar e nutricional de milhares de famílias, de buscar a cooperação de outros países e agências multilaterais, de garantir recursos financeiros para um contingente gigantesco de trabalhadores e trabalhadoras precarizadas. Na lógica de Tânatos, nada disso tem valor, pois reduziria o número de mortes, violaria a ordem natural das coisas. Vide a Caixa Econômica Federal que não consegue organizar o pagamento do auxílio emergencial de R$600,00. Pessoas são humilhadas na porta das agências e ainda se expõem ao coronavírus. O “E daí?”, é aquele índice que informa que a nós só cabe esperar que a sorte não nos abandone para conter a letalidade da Covid-19.
Mas convenhamos, não é de hoje, que morrer no Brasil assume um aspecto casual. Especialmente para as elites que tem o poder econômico e se comportam como verdadeiros titereiros manejando seus títeres que ocupam o sistema político e de justiça. Essa elite, lamentavelmente, é o farol de boa parte da nossa classe média, que ajuda a alimentar a nossa morbidez moral. A pandemia mais parece upgrade, à indiferença dessas elites à morte daqueles que não fazem parte do círculo familiar e de amigos. Quem não é próximo, é só número, é estatística. Quem tem dúvida do que afirmo solicito, gentilmente, verificar a quantidade de pessoas assassinadas anualmente. São jovens e negros das favelas e periferias das nossas cidades; mulheres vítimas de violência doméstica; pessoas por assumirem publicamente relações homoafetivas; defensores de direitos humanos; indígenas e quilombolas ao defenderem seus territórios e seus modos de vida; jornalistas no exercício de sua profissão e tantas outras que têm a vida eliminada deliberadamente pelos verdugos do momento. São números assustadores.
Com o Tânatos da Alvorada e seus assistentes trabalhando intensamente para disseminar a indiferença à morte, ficam questões tenebrosas. Será que a pandemia, e toda essa desordem que estamos metidos, aumentarão o desprezo à vida que jaz, há tempo, entre nós? Será que a nossa faculdade inata, de empatia, importante tanto quanto as nossas capacidades de autorreflexão e de imaginação, que possibilitou que a nossa espécie, aos trancos e barrancos, chegasse até aqui, se esvairá imersa nessa confluência perversa de Tânatos e Hades²? A pandemia, além de aflorar as contradições socioeconômicas do nosso país, que precisamos denunciar e combater, ameaça ampliar, nas relações intersubjetivas da nossa sociedade, o espírito de Tânatos.
Que prevaleça nessa batalha Eros³, todos os Orixás, o bem comum, o bem-viver, a vida boa, para pôr um fim ao “E daí?”!
[1] Coordenador do programa da FASE no Rio de Janeiro e mestre em filosofia.
[2] Deus grego do submundo, do reino dos mortos.
[3] Na mitologia grega é o Deus do amor.