26/08/2010 21:26

Nos anos recentes, o mundo e em especial a América Latina viram ruir os ciclos de ordem internacional baseados em uma unipolaridade que apreogoava o “fim da história”. O panorama internacional de hoje revela a crise do modelo neoliberal que tentou impor uma hegemonia política, cultural, econômica e militar baseada no chamado Consenso de Washington. São muitos os fatores históricos que explicam esta grande mudança, mas é de se destacar que a crise que abala o sistema global e a emergência de novos atores de peso no jogo das nações, como Brasil, China, Índia, Rússia e África do Sul, colocam aos olhos de todos nós uma realidade de transição.

Isto porque, embora os modelos antes hegemônicos estejam em crise flagrante, os modelos que podem substituí-los ainda não são claros, o que nos leva a um cenário internacional aberto e em disputa. Disto pode resultar uma nova ordem marcada pelo multilateralismo, por blocos regionais e alianças transversais. Os países emergentes são cada vez mais chamados ao centro das discussões de vulto, claramente para conferir ao sistema global maior legitimidade e solidez política, econômica e simbólica. No horizonte desta transição, encontra-se a indagação sobre o caráter democrático ou não de uma nova governança global em gestação.

Na América Latina, o contraste entre a política feita na primeira década deste século com a última do século passado é mais do que evidente. Sob o signo de “década perdida”, os anos 1990 deixaram um legado de privatizações e desregulamentações, perdas de direitos e precarização das estruturas públicas, que grande parte da América do Sul soube rejeitar nos processos eleitorais da década seguinte. Hoje, esta alteração está refletida em processos contraditórios no cenário regional, marcado por possibilidades de fortalecimento das relações Sul-Sul, seja na própria região, seja com países e regiões da África, da Ásia e do mundo árabe.

A recente iniciativa do Brasil de, juntamente à Turquia, intermediar um acordo com o Irã visando reverter a rota de colisão que se forma contra este país, abre um novo capítulo na participação brasileira no sistema internacional. Esta iniciativa significa algo diferente de tudo que foi feito anteriormente, pois ao entrar no núcleo central das questões consideradas estratégicas pelas grandes potências, o Brasil passa a disputar o coração do poder e da ordem internacional.

É preciso debater e questionar os interesses do Brasil ao liderar esta iniciativa, que incluem a conquista de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, o desenvolvimento do programa nuclear brasileiro, a ampliação das exportações do agronegócio para o Oriente Médio. É urgente que, dada a nova importância do país no panorama global, a sociedade possa discutir a formação desta agenda política internacional, que não pode ficar restrita às grandes empresas, ao agronegócio e a setores da indústria bélica. Da mesma forma, é imprescindível que a sociedade não se submeta ao modelo de agenda adotado pelo governo. E que critique e denuncie de forma veemente a aproximação Brasil-Irã no que se refere aos direitos humanos naquele país, em especial com relação aos direitos das mulheres.

O gradativo aumento da importância do Brasil no mundo requer da organizações sociais brasileiras um novo perfil de atuação, que corresponda ao desafio de, a partir de agora, lutar por direitos num país que cada vez mais alastra sua influência sobre outros povos em outros territórios. Está colocada a necessidade de monitorar, incidir e disputar os rumos da presença internacional do Brasil, de modo que ela se identifique com os objetivos da segurança alimentar, dos direitos humanos, da justiça social e ambiental. Não custa lembrar que o mundo de cuja governança o Brasil deseja participar com peso crescente é hoje um grande complexo de crises: econômica, alimentar, climática, energética, ambiental. Assim, a atuação internacional do país não pode retroalimentar mecanismos da velha ordem que já provocaram danos demasiados, como o Banco Mundial, o FMI, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e outros.

Incidir sobre as relações internacionais do Brasil no sentido de fortalecer a integração regional, reivindicando seu aprofundamento político, econômico, social, institucional, cultural a serviço dos direitos dos povos, é uma aposta certeira no avanço da democracia e da justiça social. Até agora, nas relações Sul-Sul, a agenda brasileira está marcada pela permanência dos velhos temas, pelos interesses das empresas brasileiras que se internacionalizam, e por nossa velha posição agro-mínero-exportadora. Nossa responsabilidade social e política de desenhar e propor uma nova agenda se relaciona com a possibilidade real de desenvolvermos os países latino-americanos em menor grau de dependência com as potências da velha ordem, e portanto em maior grau de liberdade em relação às suas receitas prontas, que sempre nos puseram no papel de fornecedores de recursos naturais. No cenário de crise do sistema global, a integração regional pode sim se converter numa alternativa de desenvolvimento para a América Latina. Agora com mais distribuição, mais sustentabilidade e mais justiça.