04/09/2017 14:03
A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) faz um levantamento, há 50 anos, para dimensionar e acompanhar a fome no mundo. Em 2014, o estudo apontou que o Brasil conseguiu chegar a meta de menos de 5% de sua população vivendo o flagelo da fome, de acordo com o Indicador de Prevalência da Subalimentação, calculado com base na disponibilidade de energia alimentar segundo faixa etária e na estimativa da distribuição e acesso aos alimentos. Saímos pela primeira vez do Mapa da Fome. Houve redução da mortalidade infantil e melhorias no acesso aos alimentos, mas ainda permaneceram índices altos de insegurança alimentar entre os povos indígenas, as comunidades quilombolas e a população negra.
Políticas públicas e programas direcionados, prioritariamente, às famílias de baixa renda devem ser relembrados. A valorização real do salário mínimo, a ampliação do acesso ao trabalho, a transferência direta de renda e a manutenção da conquista histórica da previdência rural tiveram um impacto para o alcance daquela meta. Também houve o início de programas de fortalecimento da agricultura familiar e camponesa, com as compras públicas de alimentos pelo Estado e sua destinação para segmentos da população com insegurança alimentar nos estabelecimentos sócio-assistenciais, escolas, através do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). O Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) passou a garantir a compra de pelo menos 30% dos alimentos produzidos pela agricultura familiar e por comunidades tradicionais. Lembremos ainda dos programas Um Milhão de Cisternas e Uma Terra, Duas Águas, ambos de garantia do acesso à água no Semiárido.
Essas iniciativas de políticas públicas também contribuíram para a ampliação do acesso a direitos sociais. Tivemos um período de articulação de programas públicos de proteção social e de incentivo à produção de alimentos pela agricultura familiar e camponesa, baseados na Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan), que acaba de completar 11 anos e foi fruto da mobilização social e participação ativa do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Mas nessa década manteve-se a prioridade da política dirigida à produção de commodities do agronegócio para a exportação baseada na concentração de terras, degradação e contaminação dos bens da natureza, com a intensificação dos conflitos no campo e a criminalização dos movimentos sociais.
Apenas três anos depois de sairmos do Mapa da Fome, esse fantasma volta a assustar o país e nos causa indignação. A atual crise, que tem variados aspectos, inclui cortes em programas e políticas sociais, na contramão do caminho que vinha sendo trilhado. A promulgação da lei que limita os gastos públicos por 20 anos impacta diretamente os programas sociais como, por exemplo, a redução de mais de um milhão de acessos ao Bolsa Família; o orçamento reduzido do PAA; a redução drástica dos recursos para os programas no Semiárido; articulados ao retrocesso gravíssimo das contra-reformas trabalhista e da previdência social.
Hoje, temos uma dupla tarefa: insurgir contra as medidas recessivas que provocam a fome e enfrentar as questões que envolvem as lutas relacionadas ao direito humano à alimentação adequada e saudável, que têm a ver com a qualidade dos alimentos. Por isso, é fundamental a continuidade da mobilização social pela redução do uso dos agrotóxicos e contra a liberação dos transgênicos. Ao mesmo tempo, precisamos trabalhar no sentido da mudança dos padrões de consumo. Valorizar mais os alimentos in natura, da nossa biodiversidade – com a enorme variedade de frutas, tubérculos, verduras – e reduzir o consumo dos produtos alimentícios ultraprocessados, a exemplo dos refrigerantes e extratos de carne de frango ou peixe empanados – do tipo nuggets, salsichas e outros, que contém aditivos artificiais prejudiciais à saúde.
Tivemos um importante passo com a criação da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Pnapo), em 2012. Uma vitória da sociedade civil. As práticas agroecológicas, baseadas nos princípios da diversificação e relação mais harmônica com a natureza, produzem a comida de verdade. Além disso, promovem relações de trabalho justas, respeita as culturas locais e o meio ambiente, fortalece a diversidade e as culturas alimentares das diversas regiões.
Cabe destacar que o país é o campeão mundial no uso de agrotóxicos desde 2008, segundo dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Entre os efeitos, está o aumento de doenças como intoxicações, disfunções hormonais e câncer. Aliás, o Programa Nacional para Redução do Uso de Agrotóxicos (Pronara) nunca saiu do papel. Essa iniciativa está prevista desde 2013 no plano elaborado a partir da mobilização da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida e da Articulação Nacional da Agroecologia (ANA), com o apoio do Consea, e foi debatida na construção da Pnapo. A então presidenta Dilma Rousseff o lançaria em 2015 durante a 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CNSAN), o que não aconteceu.
Na mesma medida em que a sociedade civil vai sendo cada vez mais destituída de canais de diálogo, crescem dinâmicas violentas de criminalização das lutas de combate às desigualdades. Mas os diversos sujeitos da agricultura familiar, como camponeses, indígenas, quilombolas, dentre outros, seguem resistindo e anunciando alternativas ao atual modelo de desenvolvimento. Com seus saberes e práticas, mostram que os alimentos são patrimônio, uma riqueza dos povos, e não mercadorias.
[1] Leia também as análises da FASE sobre os “efeitos da violência do Estado e do mercado nos territórios urbanos” e com “reflexões sobre os ataques à democracia e aos direitos sociais“.