12/02/2014 19:13

Irresponsabilidades e inconsequências podem causar acidentes. Alguns graves ou até fatais. Tanto que viram crime. Infelizmente, na manifestação contra o aumento das tarifas do transporte público no último dia 6, no Rio, quando um rojão atingiu o repórter Santiago Andrade, uma inconsequência acabou em morte. E a FASE, assim como boa parte da sociedade brasileira, lamenta profundamente o resultado deste ato inconsequente, e estende sua solidariedade à família do cinegrafista. Mas, além do drama pessoal e familiar, o que representará um rojão aceso irresponsavelmente? E onde mais as faíscas ainda acesas deste rojão vão resvalar?

Desde junho está claro que há muita violência nas manifestações. A polícia, desde o princípio, se apresenta: truculenta, violenta. Pode ser que a classe média tenha sido lembrada disso a partir de junho. Mas é o que a polícia é, diariamente, nas favelas e periferias. Aliás, é o que é a violência do Estado, implacável em suas chacinas – como na operação no Morro do Juramento, também no Rio, onde seis foram assassinados e três ficaram feridos no último dia 4. Violência do Estado também implacável nas remoções de norte a sul, no campo e na cidade. Segundo pesquisa recente, apenas 10% dos policiais entrevistados apontaram como correto o comportamento da corporação nas manifestações. Uma constatação que respalda algo que os manifestantes vivenciam e denunciam dia-a-dia: bombas e balas de borracha são jogadas frequentemente a esmo e em qualquer lugar. De fato, não há saídas para dispersão, como esperado se esta fosse a intenção das tropas. E os manifestantes são encurralados, criminalizados, violentados pelas forças do Estado.

Contudo, apesar do nosso apoio irrestrito às reivindicações e ao direito constitucional de reivindicar na rua, não é possível omitir que há violência de lado a lado. Uma violência que pode ter começado como reação àquela do Estado. Mas obviamente não se limita à defesa daqueles que se manifestam. Certamente há muitos tipos de faces por trás das máscaras: alguns querem apenas estar prontos para defender-se; outros acreditam no poder de destruição de símbolos, de bancos a palácios; um terceiro – mas deve haver muitos outros grupos – deve estar encantado com a energia da rua viva e justificando-se como parte de alguma tática estará, na verdade, implodindo a estratégia que não compreende bem.

Pode ser que a inconsequência de acender um rojão, digna das tragédias provocadas por bêbados no reveillon, possa causar mais do que a morte de uma pessoa, o que já é demais. O direito mesmo de manifestar-se livremente, diante da sede por soluções que impeçam a repetição da tragédia, fica ameaçado. Já está estampada no jornal a campanha para aprovar novas leis que garantam que os detidos nas manifestações fiquem presos, acusados de cometer crime contra a paz pública. Para se ter uma ideia, nesta última manifestação foram 50 detidos, liberados a seguir. Propostas de leis deste tipo, além do projeto que tramita no Senado para tipificar o crime de terrorismo, se somam à portaria do Ministério da Defesa do dia 19 de dezembro para “Garantia da Lei e da Ordem” às Forças Armadas em ocasiões em que estejam na rua. Como será na Copa, por exemplo. O documento lista no parágrafo IV os que chamam de “forças oponentes”. Na letra “a” encontramos “movimentos ou organizações”. Apenas a seguir “organizações criminosas” e “grupos armados”, o que nos faz pensar sobre a ordem de prioridades. Este conjunto é a cara do crescimento da violência e da repressão.

O fato de ter sido um trabalhador da imprensa a vítima, aumenta o grau de confusão das leituras sobre o fato do último dia 6. E sobre a repercussão do mesmo, apesar de esta não ser a única morte em função de protestos que precisamos lamentar. Este, realmente, não deve ter sido um ataque à liberdade de imprensa, visto que um rojão desgovernado é incapaz de prever seu alvo. Apesar disso, a profissão da vítima e as condenáveis agressões dirigidas aos jornalistas — o Sindicato dos jornalistas do Rio chegou a apresentar em audiência pública na Alerj, em outubro, relatório com 49 atos de violência contra profissionais da imprensa cometidos por policiais e manifestantes em 5 meses — tem aqui uma oportunidade de serem lembradas e repudiadas. A liberdade de imprensa e de expressão deve ser mantida e presada como importante pilar da democracia. E a segurança para o trabalho destes profissionais – com equipamento e logística adequada à situação – deve ser uma exigência apoiada por todos.
Há, sem dúvida, um novo ânimo dado aos que discordavam do aparente consenso que parecia estabelecido até junho na sociedade brasileira. São milhares os que participaram até aqui das manifestações, esperançosos por mudanças reais – e animados pela conquista sobre o preço das passagens em diversas cidades no ano passado. A dúvida, e receio, que pairam diante do da nova morte é se o ‘tiro’ atingirá também a vontade de fazer democracia para além do voto. E o apoio às manifestações.

A desaprovação crescente dos movimentos na rua está nas pesquisas apresentadas pelos veículos de comunicação – que muitos podem querer questionar -, mas pode ser aferida também pelas conversas em ônibus e botequins. O caráter violento nas manifestações pode significar menos gente na rua e menos pressão para mudar a realidade. Desejamos que mobilizações e organização popular sejam capazes de alterar, no futuro, a estrutura violentamente desigual da nossa sociedade. Contudo, é possível que um ato inconsequente deslegitime a vontade grande coletiva de lutar por um direito – o do transporte – que foi há muito privatizado, com o agravante de ser mal prestado e de ter regras pouco transparentes. O mesmo pode passar a valer para manifestação sobre tantos outros direitos sistematicamente negados, o que seria lastimável para nossa democracia.

Não é possível sugerir que aqueles que convocam uma manifestação na rua serão capazes de controlar os ânimos e intenções de todos os presentes. Mas é fundamental que os grupos mais organizados que convocam e participam das manifestações deixem muito claros quais são seus objetivos e, na medida do possível, até suas estratégias. Não deixa de ser um modo de politizar a ação de rua mostrar que ela é parte de algo maior. E por falar em politizar, cabe a todos nós, organizações não governamentais, movimentos sociais e partidos políticos, ler criticamente os resultados das manifestações, repensar nossos desgastados modos de organização, repetir e reinventar modos de contestar o projeto de desenvolvimento e sociedade que vem sendo imposto sobre todos nós. E que causa violência. A formação e a prática cotidiana da política, em detrimento e contraposição à violência que nos é cotidianamente imposta, deve ser o único modo de apagar as faíscas que restaram deste rojão.