Comunicação FASE
03/10/2025 11:25
O dia 3 de outubro, Dia Nacional da Agroecologia, convoca-nos a refletir sobre denúncias e anúncios, realizar protestos e elaborar propostas no âmbito dos sistemas alimentares e da segurança e soberania alimentar e nutricional. O contexto atual é marcado pela Conferência Nacional de Política para as Mulheres, pelas conferências estaduais rumo à Conferência Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável, pela Conferência Livre do Direito Humano à Alimentação Adequada e, ainda, pela proximidade do XIII Congresso Brasileiro de Agroecologia.
Neste cenário, a antropóloga e assessora do Núcleo de Políticas e Alternativas (NUPA) da FASE, Maria Emília Pacheco, que também é integrante da coordenação nacional da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar, além de ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, fala sobre a importância de colocar a agroecologia e a soberania alimentar no centro do debate, com propostas para a transformação dos sistemas alimentares no país e na articulação com organizações da sociedade e movimentos sociais internacionais, especialmente no âmbito da COP 30 e da Cúpula dos Povos.
Pergunta) Como a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), criada em 2012, se relaciona com a agricultura familiar e de que forma contribui para a promoção da soberania alimentar?
Maria Emilia: A Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Dec. 7.794/2012) é parte de um novo ciclo de políticas públicas e programas voltados para a promoção da soberania e segurança alimentar e nutricional e do direito humano à alimentação adequada e saudável, através de sistemas justos e sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos. Os/as agricultores/as familiares, povos e comunidades tradicionais, reconhecidos nas normativas da agricultura familiar (Nº 11.326/2006) e das comunidades tradicionais (Dec. 6.040/2007), são sujeitos de direitos dessa política.
Há uma interação entre essa política e a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Dec. 7.272/2010), que também propõe promover a estruturação de sistemas sustentáveis e descentralizados, de base agroecológica. A transformação dos sistemas alimentares, desde a produção até o consumo, está no centro dos objetivos dessas políticas, que são fruto da pressão social com ativa participação dos movimentos sociais e de redes e fóruns, a exemplo da Articulação Nacional de Agroecologia, do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional e da Marcha das Margaridas.
Ao mesmo tempo, esse processo político se dá em meio a profundas contradições que trazem à tona questões estruturantes que geram desigualdades. Os questionamentos e denúncias de violação de direitos impostos pelos padrões dominantes da produção, baseada nos monocultivos com concentração de terra e uso intensivo de venenos pelo agronegócio, mostram devastação ambiental e intensificação de conflitos socioambientais.
No lado do consumo, a falta de distribuição descentralizada de alimentos saudáveis, a concentração de renda e a influência das empresas de produtos alimentícios contribuem para o aumento do consumo dos ultraprocessados, que tem gerado adoecimento.
Por isso, falamos que a Agroecologia e a Soberania Alimentar deverão continuar no centro do debate, com propostas sobre a transformação dos sistemas alimentares no país e na interação com organizações da sociedade e movimentos sociais internacionais durante a Cúpula dos Povos e a COP 30.
Pergunta) Quais foram os avanços significativos alcançados desde então?
Maria Emilia: Os programas de compras públicas, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), têm um caráter inovador. É um programa que se realiza em duas pontas, como podemos dizer. Incentiva a produção de alimentos saudáveis da agricultura familiar e de povos e comunidades tradicionais para a compra pelo governo e promove o seu acesso a camadas da população em situação de insegurança alimentar e nutricional. Na retomada deste programa no atual governo (Lei 14.628/2023), criou-se também o Programa das Cozinhas Solidárias, proposta inspirada nas ações já desenvolvidas pelos movimentos sociais. Destacamos aqui a importante decisão da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) de operar a compra através do PAA de alimentação de participantes da mobilização social da Cúpula dos Povos rumo à COP 30.
O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), com seu caráter capilarizado, também se destaca, inclusive pelo seu papel reconhecido como iniciativa que tem favorecido a saída do país do Mapa da Fome. Atualmente, as propostas de adequação de mecanismos e instrumentos debatidos na Mesa Permanente de Diálogos Catrapovos Brasil, em diálogo no espaço de participação da sociedade no Grupo Consultivo do PNAE, no qual participa a FASE, irão favorecer o acesso a esse programa pelos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, impulsionando-o ainda mais.
Mas há também três inovações na interação dessas duas políticas atualmente:
- A instituição da Política Nacional de Abastecimento Alimentar (Dec. 11.820/2023), que compõe o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, cujos objetivos poderiam ter sido mais acionados no contexto do aumento do preço dos alimentos neste ano. Esta política chama atenção para a importância do mercado interno e para os estoques reguladores de alimentos;
- O Programa Nacional de Agricultura Urbana, que também faz parte dessas duas políticas a que nos referimos, e que relaciona o Direito à Cidade com o Direito à Saúde e o Direito Humano à Alimentação, nos convidando a pensar sobre a gestão do espaço urbano, embora ainda com insuficiência de recursos;
- O Programa Quintais Produtivos, proposto pelas mulheres na Marcha das Margaridas, que visa contribuir com a produção sustentável de alimentos e geração de renda, embora esteja muito aquém da demanda das mulheres.
Pergunta) E quais os principais desafios ainda existentes?
Maria Emilia: São muitos os desafios. Precisamos avançar na realização da Reforma Agrária popular e no reconhecimento dos direitos territoriais dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, combinando com a relocalização da produção agrícola, com a centralidade no abastecimento interno, com diversidade da produção e valorização das culturas alimentares, e conservação dos bens da natureza. São questões que ganham mais sentido político no contexto de um novo regime climático.
O artigo 188 da Constituição Brasileira estabelece que as terras públicas e devolutas, sejam elas federais, estaduais ou municipais, devem ser destinadas prioritária e preferencialmente à execução da Política Nacional da Reforma Agrária, o que tem sido sistematicamente descumprido. Nesses dias, por exemplo, em carta dirigida ao Ministério de Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, assinada por vários movimentos sociais e organizações, dentre elas a FASE, há uma denúncia sobre medidas legislativas adotadas pelo governo de São Paulo que atentam contra o patrimônio fundiário nacional, cujo objetivo nítido é dar guarida, premiar e incentivar a atividade grileira, legalizar e facilitar a ocupação indevida de bens públicos estaduais.
Atualmente, várias normativas que impulsionam a expansão da mineração, como a Instrução Normativa do Incra (IN 112/2021), ou a proposta Projeto de Lei 510/21, conhecido como PL da Grilagem, ou a Lei 14.701/2023, conhecida como Lei do Marco Temporal, violam o direito à terra e ao território e precisam ser revogadas ou redefinidas.
Podemos dar outros exemplos. Não chegaremos a ter sistemas justos e sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos diante da intensificação e ampliação do uso de agrotóxicos. Durante o 60º período de sessões do Conselho de Direitos Humanos da ONU, a delegação da Rede de Agroecologia do Maranhão (RAMA), juntamente com outras organizações, apresentou a denúncia de expulsão silenciosa dos povos do campo, que têm tido sua produção de alimentos saudáveis inviabilizada, comprometendo a soberania alimentar e impactando diretamente a saúde das famílias. No recente Tribunal Popular sobre os agrotóxicos, realizado em Santarém, no Pará, com a presença de 450 representantes dos movimentos sociais do campo, da floresta e das águas, pesquisadores, professores e estudantes, que contou com a participação e apoio da FASE, assim como em outras ocasiões, ouviram-se vozes denunciando os impactos.
Por isso, nas conferências que estão se realizando atualmente, precisamos propor que o Comitê Gestor do Programa Nacional de Redução dos Agrotóxicos (PRONARA), recentemente instituído (Portaria SG/PR Nº 199, de 25 de setembro de 2025), adote medidas que requerem urgência:
– Elaboração de normativas que protejam os territórios dos povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais e da agricultura familiar e camponesa em seus direitos ao uso social da biodiversidade, ao direito à produção de alimentos saudáveis e à saúde, contra a chuva de veneno que tem se caracterizado como verdadeira “guerra química” contra as populações, e reparação integral para as comunidades afetadas, proposta apresentada na referida reunião na ONU;
– reconhecer a autonomia dos municípios para legislarem sobre a proteção do meio ambiente e da saúde pública com a proibição dos agrotóxicos, apoiando-se na decisão do Supremo Tribunal Federal que confirmou a constitucionalidade de medidas como a proibição da pulverização aérea proposta há alguns anos no Ceará;
– Banir os produtos químicos já proibidos nos países de origem, a exemplo do glifosato, que tem efeitos na saúde humana, incluindo riscos de infertilidade, malformações e câncer;
– Proposta de uma moratória imediata da pulverização de agrotóxicos em áreas próximas a comunidades, aldeias, escolas e corpos d’água, além da regulamentação urgente da pulverização terrestre e aérea no estado, com base no princípio da precaução.
A pulverização aérea, ontem com aeronaves e hoje com drones, vai espalhando o medo, a dor e a morte, e impacta os corpos dos sujeitos de direitos, sobretudo das crianças e das mulheres, como denunciado no Tribunal realizado pela organização Centro de Estudos e Assessoria Esplar, no Ceará.
Outro exemplo que precisamos debater é a inadequação das normas sanitárias, que têm se colocado como uma barreira para a comercialização legalizada dos alimentos beneficiados pela Agricultura Familiar, Povos Indígenas, Quilombolas e Comunidades Tradicionais. As exigências sanitárias por cadeias produtivas ignoram a valorização da sociobiodiversidade e da diversidade alimentar, e muitas vezes criminalizam práticas tradicionais. É preciso enfrentar e superar as contradições que encerram a categoria “risco”, pois enquanto os venenos são liberados, inclusive com incentivos fiscais, por outro lado alimentos preparados artesanalmente são considerados de alto risco.
É fundamental estabelecer normas sanitárias específicas para esses povos, tanto no âmbito da ANVISA quanto do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), com ampla participação social, em sintonia com as práticas, modos de vida e realidades desses grupos. Por isso, contestamos a ameaça de revogação da Resolução de Diretoria Colegiada da ANVISA (RDC nº 49/2013), que estabeleceu um tratamento sanitário diferenciado para a Agricultura Familiar e a Economia Solidária. Propomos a sua manutenção e aperfeiçoamento, assim como a criação de um novo estatuto como norma, construindo os caminhos para que seu conteúdo seja alçado a diretriz de políticas públicas e programas, embasada no respeito e valorização das culturas alimentares.
É necessário também a efetiva implementação do Programa de Inclusão Produtiva com Segurança Sanitária (PRAISSAN – Portaria 527/2017). A inclusão sanitária para a Agricultura Familiar e Povos e Comunidades Tradicionais é um caminho para a Segurança Alimentar e Nutricional, Saúde Pública e para as práticas das economias transformadoras.
