18/05/2022 10:02

AS METRÓPOLES BRASILEIRAS E O CAPITALISMO RENTISTA-FINANCEIRO (1)

*Aercio Barbosa de Oliveira (2)

“Nem tudo que é encarado pode ser mudado. Mas nada pode ser mudado até ser encarado” (3)

Registros da historiografia, marcas em edificações que ainda estão de pé e em mitologias encontramos a força que a ideia de cidade possui em muitas culturas. Como exemplos de mitologia temos a iorubá. Nesta, a cidade de Ifé, que prosperou entre os séculos XI e XV a.C., localizada na África Ocidental, onde hoje é a Nigéria, foi o local exato da criação. Em Ifé os orixás desceram dos céus e criaram o mundo como conhecemos e Obatalá e Oduduá, casal primordial e elã da criação, a povoaram, a transformando, assim, na primeira cidade de humanos. O mito de criação do mundo para a tradição iorubá, portanto, se vincula a uma cidade. Outro mito de valorização da cidade é Grego e está na obra de Platão, Protágoras. Nesta, a cidade fora formada para proteger os humanos, presa fácil dos animais selvagens. Só isso, no entanto, não garantiria a paz entre os humanos. Zeus então ordenou que Hermes levasse aos mortais o Pudor e a Justiça, como princípios ordenadores das cidades e dos laços de aproximação entre a nossa espécie. Passemos para os registros da história e das edificações que ainda estão entre nós.

“O ar da cidade torna o povo livre” é uma asserção que, até hoje, pode ser encontrada grafada em pórticos de cidades europeias que integravam a Liga Hanseática. A Liga, uma das redes de comércio medievais, fundada em 1161, operava no setor de comércio marítimo, entre Gênova e Veneza, na Itália, depois entre Londres e os Países Baixos, até os portos do Norte da Alemanha. Um servo, durante o feudalismo, se conseguisse chegar a uma dessas cidades tinha chance de se tornar livre da opressão do senhor feudal, para quem prestava absoluta subserviência. Em meados do século XIII, em algumas dessas cidades, autoridades declaravam que um ex-servo, tinha direito à propriedade livre da interferência de autoridade superior, pois foi adquirida graças ao próprio esforço.

Atualmente, um pouco mais da metade dos 7,79 bilhões habitantes do planeta vivem em cidades. É comum ouvirmos falar que nas cidades encontramos a oportunidade de ganhar a vida, é o local em que se produz riquezas, espaço oportuno para conhecer outras pessoas, para ampliar o nosso conhecimento e nossa sensibilidade por meio da troca de percepções a respeito da vida, da cultura e da arte que cada citadino e citadina fruem ou produzem. Não foram, contudo, só essas premissas que fizeram com que pessoas se deslocassem para as cidades ou, principalmente a partir da década de 1950, para os centros urbanos ou metrópoles, principalmente no Brasil e demais países do Sul Global. Esses deslocamentos humanos foram se materializando por fatores externos, impelidos pela disputa de poder, por guerras, para o desenvolvimento de uma determinada forma de produção, pelo desprezo dos governos à vida fora das cidades, pelas ideias de progresso e desenvolvimento etc.

Na América Latina constatamos que a história da formação das cidades é bem diferente das cidades europeias e da América Anglo-saxônica. E quando nos detemos à formação das cidades brasileiras identificamos significativas diferenças na formação da maioria das outras cidades dos outros países em nosso continente. A industrialização mais intensa, no caso brasileiro, a partir da última metade do século XX, impulsionou a ocupação das cidades que se transformaram, em um curto espaço de tempo, em grandes metrópoles conturbadas, onde temos dificuldades de delimitar as fronteiras dos municípios. Temos uma extensa malha urbana em boa parte da costa brasileira, cuja produção industrial ainda se concentra no eixo Sul-Sudeste.

Toda essa industrialização teve como base o patriarcado, a escravização e o patrimonialismo. Uma tríade que marca até hoje a dinâmica social das nossas metrópoles emolduradas pelo sistema capitalista. A evidência mais dramática desse mal legado foram os séculos em que o trabalho de escravizados predominava. No Brasil, o trabalho de escravizados durante quatro séculos, o dínamo do enriquecimento do Império português e de países exploradores, das elites proprietárias de culturas extensivas, elucida boa parte da dinâmica de funcionamento das metrópoles brasileiras. Séculos de escravidão, certamente, não é a única fonte explicativa para tanta segregação socioterritorial, seletividade dos serviços públicos e todo o nosso “Estado-de-Mal-Estar-Social” (4)  presente em nossas metrópoles contemporâneas, mas é um fato que contribui para moldar o imaginário social e, por consequência, práticas que naturalizam a violência contra as pessoas pobres, sobretudo as de pele negra ou não brancas.

A todo momento tomamos conhecimento dos efeitos dessa herança, seja nos atos racistas explícitos ou dissimulados, da violência contra a mulher, a homofobia, do genocídio de nações indígenas, no aumento da fome e da desigualdade, na violência contra o Outro ou na indiferença ao sofrimento alheio. Sabemos que a violência física e material se entrelaçam e estão entre nós desde a ocupação iniciada no século XVI. As violências, contudo, passam por transformações, adquirem novas roupagens e encontram justificativas ideológicas para a sua reprodução e uma certa naturalização social.

No final do século XX e na primeira quadra deste século, vemos transformações modificarem consideravelmente a maneira dos capitalistas (acionistas das corporações, financistas e banqueiros, proprietários de empresas, de plataformas digitais etc.) aumentarem a sua lucratividade. A clássica exploração do trabalho humano, dos bens da natureza, o uso da terra urbana e rural passam por uma metamorfose com impacto em todo o planeta. Ampliaram-se as formas de produzir valor para garantir o bem-estar de poucos com o desalento da maioria da população. Atualmente, o funcionamento do Estado, a forma de produzir coisas, a comercialização, impactam diretamente o trabalho humano e as metrópoles em uma configuração, no caso das brasileiras, bem distinta da sua origem.

Com o suporte tecnocientífico e da cultura neoliberal, que é bem mais que um programa de governo ao impactar as subjetividades, ganhos são extraídos de diferentes meios. O capital produtivo, aquele ligado à indústria, à produção de bens de consumo, de manufaturas, deixa de ser a única ou a principal fonte para ganhos monetário e de ampliação da riqueza. Hoje, no capitalismo, pessoas e corporações extraem seus ganhos e produzem valor na transação de bens intangíveis (marcas, patentes, propriedade intelectual etc.); com a renda obtida com a terra urbana ou rural; com a indústria extrativista, que transforma bens naturais e comodities; com os contratos, títulos e ações no mercado financeiro. Não há precedentes na história do capitalismo, em tamanha proporção, a extração de lucro ou valor pela simples circulação de dinheiro ou papeis no “cassino” global. Terras urbanas, por exemplo, que antes serviam basicamente para se construir edificações, podendo ser uma fábrica ou uma residência, um prédio comercial ou residencial, lastreiam a emissão de títulos e fundos imobiliários que entram no mercado financeiro especulativo. É um padrão de funcionamento, associado à técnica, que não elimina o uso do trabalho humano, mas, quando utilizado, é precarizado, extenuante, sem contrato e garantias trabalhistas. Assim, o capital encontra menos constrangimentos legais para a sua reprodução o que faz aumentar a desigualdade socioeconômica no planeta.

No interior dessa metamorfose encontramos metrópoles brasileiras mais segregadas. Os bens e serviços públicos se deterioram enquanto o Estado de “Mal-Estar-Social”, dentro desse quadro cultural, econômico e social se aprofunda. O Estado se transforma no espaço para a promoção do bem-estar dos mais ricos, pois uma fatia considerável da receita fiscal é transferida aos agentes financeiros. A máxima, que nunca se efetivou, de que o Estado tem a responsabilidade de garantir a estabilidade social distribuindo o produto socialmente produzido através políticas públicas e sociais, já faz tempo, é uma quimera. Com a desresponsabilização do Estado em cumprir suas funções essenciais, com o desemprego crescendo num sistema produtivo ou de produção de valor que, de um lado, absorve um contingente de trabalhadores e trabalhadoras altamente qualificadas, com boa remuneração, e, de outro, pessoas para trabalhos de baixa remuneração, precarizado, sem garantias trabalhistas e securitárias. São condições similares às condições laborais do capitalismo do século XIX, com o aumento do trabalho escravo, com excessiva carga horária de trabalho. O capitalismo não pode prescindir do trabalho humano, daquelas pessoas que se submetem a tarefas em ambientes insalubres, de alto risco para a vida, portanto, mais exploração e menos direitos.

O que vivemos contemporaneamente exige muita energia e inventividade, em um cenário de desconstrução do Estado, onde como descrito acima não visa, para a estabilidade social, garantir a promoção de políticas sociais. No lugar delas, se aplica a violência física, a eliminação de pessoas, de ameaças e todo tipo de coerção, dentro de um “urbanismo militarizado”. São as polícias dos governos estaduais, as forças armadas e grupos paramilitares, estes se tornaram um braço auxiliar do Estado, que implementam a política da violência e do extermínio de grupos sociais. O Estado passa a transferir seus recursos para o capital, a criar regulações que alavanquem os lucros dos agentes privados, das corporações e para reprimir as resistências e descontentamentos sociais.

Novamente, no Brasil, nosso conflito distributivo virou caso de polícia. As transformações tecnocientíficas impactam o sistema produtivo e as relações de trabalho. Existe uma desregulação do sistema financeiro global que facilita o aumento da riqueza à margem da produção de manufaturas. As corporações encontraram outros meios de obterem lucros, menos dependentes do trabalho humano e da produção como, por exemplo, as licenças de marcas, com a propriedade intelectual etc. Todas essas mudanças materiais e simbólicas são atravessadas pela transfiguração de valores promovidos pela cultura neoliberal solapando a solidariedade, o cuidado com o outro, a defesa da vida e tantos outros valores que são condições necessárias para relações sociais menos dolorosas e dramáticas.

As metamorfoses das metrópoles do século XXI geram cidades inóspitas para uma vida digna, principalmente para a maioria da população cada vez mais empobrecida. Essa realidade pode ser revertida se continuarmos a fazer uso da nossa inesgotável capacidade transformadora de si e do mundo. Aos céticos, não ignorem o enunciado em epígrafe neste texto.

*Expressão do sociólogo Francisco de Oliveira expressa no texto A metamorfose de Arribaçã, publicado na Revista Novos Estudos nº27 – julho de 1990.

[1] Este texto é uma versão resumida do que está publicado em Rio de Janeiro entre Utopias e Distopias Urbanas. Acesse a publicação no link  https://fase.org.br/pt/biblioteca/rio-de-janeiro-entre-distopias-e-utopias-urbanas/

[2] Educador popular da FASE e mestre em filosofia no programa de pós-graduação da UERJ.

[3] Fala de James Baldwin no documentário Eu não sou seu negro.

[4] Expressão do sociólogo Francisco de Oliveira expressa no texto A metamorfose de Arribaçã, publicado na Revista Novos Estudos nº27 – julho de 1990.

*Aercio Barbosa de Oliveira é coordenador da FASE-RJ e integrante do Grupo Nacional de Assessoria da FASE Nacional.