28/01/2010 11:50
Nos últimos dois meses do ano de 2009, o noticiário da mídia televisiva, radiofônica e impressa ocupou-se de acontecimentos ligados ao meio ambiente. Enquanto chefes de Estado, organizações sociais, intelectuais e pesquisadores estavam reunidos em Copenhague, Dinamarca, para definir medidas capazes de conter as alterações climáticas supostamente provocadas pela ação humana, dezenas de cidades da região sudeste, principalmente do Rio de Janeiro e de São Paulo, eram castigadas pela chuva.
Para termos uma idéia da dimensão do estrago provocado no Rio de Janeiro, basta verificar as informações da Defesa Civil estadual: as chuvas dos últimos dias do mês de dezembro deixaram 7.938 famílias desabrigadas e 4.761 desalojadas, além de provocarem cerca de 80 óbitos – devido a deslizamento de encostas, como os que ocorreram na cidade de Angra dos Reis, ou de afogamentos, como o de dois jovens moradores de Belford Roxo, que residiam próximos ao rio Botas.
A despeito das dúvidas lançadas sobre a real dimensão das mudanças climáticas globais, a possibilidade do aumento da ocorrência de eventos climáticos críticos, como as chuvas do último dia de 2009, vem preocupando desde governantes até os próprios moradores das áreas de risco.
Para além das divergências e imprecisões sobre a questão, o fato é que as recentes chuvas vêm causando graves danos materiais e psicológicos a milhares de famílias, sobretudo àquelas que vivem com menos de três salários, que, por falta de opção, constroem suas casas em áreas de encostas ou próximas a cursos d’água. Aliás, estudos realizados sistematicamente indicam que são essas pessoas, com baixa renda, predominantemente negras, com tempo de escolaridade abaixo da média nacional, com dificuldades para acessar serviços públicos de saúde, que ocupam os piores espaços do território. Elas estão sempre expostas a sofrer danos ambientais numa escala exponencialmente superior àquelas que vivem nas áreas nobres da cidade beneficiadas com investimentos e serviços públicos.
Ainda que os índices pluviométricos venham atingindo, de fato, patamares acima da média registrada nos últimos anos, as conseqüências das chuvas são dramáticas e evidenciam, de maneira contundente, os equívocos das políticas públicas de infra-estrutura urbana, desenvolvidas a partir do processo de industrialização do nosso país, que foi acompanhado por intensa migração campo-cidade.
Neste processo, nossas cidades foram ocupadas de maneira desordenada, muitas vezes orientada pelos interesses do mercado imobiliário que, seguindo sua lógica de maximização dos lucros, relega aos pobres as áreas impróprias para construção, como as encostas do Rio de Janeiro e as áreas inundáveis da Baixada Fluminense. A ação do Estado, por sua vez, se restringiu em grande parte dos casos a políticas minimalistas e seletivas de habitação, ocupação e uso do solo, sistema de drenagem e esgotamento sanitário.
A ausência de uma política habitacional que garanta condições dignas de moradia contribuiu para que essas diversas áreas inadequadas da cidade fossem ocupadas, bem como a omissão do poder público permitiu a produção de loteamentos em áreas sem infra-estrutura mínima e inundáveis, como é o caso de loteamentos que foram regularizados em municípios da Baixada Fluminense. Não surpreende, assim, o resultado deste processo: conforme dados divulgados pelo Ministério das Cidades, o déficit habitacional chega hoje a 6,273 milhões de moradias.
Além do problema da moradia, vemos a incapacidade dos municípios em elaborar projetos urbanos que considerem, por exemplo, os limites da impermeabilização do solo em áreas como a Baixada Fluminense, sobrecarregando o deficitário sistema de drenagem existente e, por conseguinte, os corpos hídricos da região (em diversos pontos assoreados), devido ao escoamento de grande volume de água no período das chuvas. Numa região onde sobressai historicamente a precariedade urbana, registrada pela ausência ou pela precária pavimentação, esgoto a céu aberto e lançamento direto nos rios sem tratamento adequado, presença de lixo nas ruas e também nos rios etc, é emergente enfrentar esses antigos problemas com medidas estruturantes, como a implantação ou reformulação do sistema de drenagem urbana, condução e tratamento de esgoto eficientes, coleta e destinação adequada de resíduos sólidos, além de obras de engenharia hidráulica. Estas obras, como a construção de diques, barragens, colocação de bombas hidráulicas etc, são alternativas ao reassentamento de milhares de famílias em áreas densamente ocupadas. Além destas, são necessárias também medidas não estruturantes relacionadas ao planejamento da ocupação e uso do solo, fiscalizando a ocupação de áreas inundáveis e de encostas e promovendo políticas habitacionais que considerem o reassentamento de famílias que vivem em áreas de cheias e suscetíveis a deslizamentos.
As recorrentes inundações na Baixada Fluminense, agravadas por anos sem investimento na região, são um dramático exemplo da necessidade de investimentos em saneamento ambiental e na ordenação do uso do solo. Diante da gravidade dos últimos acontecimentos e do passivo social existente, não podemos esperar que municípios de pequeno e médio porte assumam sozinhos os custos de obras de tal magnitude. É preciso pensar em ações consorciadas, envolvendo as três esferas da federação.
Por outro lado, é urgente a estruturação de um sistema de atendimento emergencial às vítimas das cheias e deslizamentos. Neste sentido, faz-se necessário planejar e executar ações que possibilitem a construção de alojamentos bem equipados para abrigar moradores de áreas de risco durante as chuvas, a disponibilização de vacinas nas áreas afetadas, equipar e treinar as equipes da defesa civil municipal, com apoio do estado e da união, além de medidas emergenciais de engenharia hidráulica de reparos (reparos de diques, canais auxiliares e instalação de comportas etc.).
O montante de recursos necessários para empreender tais medidas, tanto as estruturantes como as ações emergenciais é, por conseguinte, significativo, especialmente se considerarmos a possibilidade destes eventos se tornarem ainda mais freqüentes. Na Baixada Fluminense, área acompanhada mais de perto pelo trabalho da FASE-Rio, convencionou-se falar das “chuvas de 20 anos”: são eventos climáticos cíclicos que causam inundações mais graves, como as enchentes de 1988 e, possivelmente, as do final de 2009. Segundo a Secretaria Estadual do Ambiente que, através do Projeto Iguaçu, pretende reassentar cerca de 3 mil famílias que residem às margens dos corpos hídricos, seriam necessários recursos para reassentar um total de 10 mil famílias para liberar as áreas inundáveis da principal bacia hidrográfica que banha a região: a bacia dos rios Iguaçu, Botas e Sarapuí. Outro agravante, conforme os estudos da COPPE/UFRJ*, é a possibilidade de aumento gradativo do nível da baía de Guanabara, onde desembocam estes rios. Neste sentido, é imprescindível que as políticas setoriais urbanas sejam articuladas e considerem a necessidade cada vez mais urgente dos municípios da região se organizarem de forma regionalizada, o que significa dizer que a problemática urbana e ambiental da metrópole do Rio de Janeiro também é um problema de ordem política.
Estes fatos apontam para a necessidade de valorizarmos tanto as medidas de adaptação às mudanças climáticas quanto as medidas voltadas aos problemas já existentes, de ordem urbana, que estão radicalizados pelos eventos climáticos. Em dezembro de 2009, foi criado o Fundo Nacional sobre Mudança do Clima, cujos recursos podem ser utilizados nas medidas de adaptação às alterações do clima. Por isso, o debate público sobre as ações políticas prioritárias e necessárias para evitar a vulnerabilidade social diante desta problemática é fundamental para a garantia de medidas sustentáveis. Não se trata de conformar-se com a inevitabilidade de ações que induzam às alterações no clima; antes, trata-se de buscar alternativas de financiamento para construir habitações seguras, minimizando as perdas humanas e os danos materiais comuns nas periferias urbanas, sejam elas em países em desenvolvimento, sejam em países desenvolvidos. É importante frisar, ainda, que estes eventos climáticos evidenciam aquilo que urbanistas e ambientalistas já anunciavam: é preciso transformar o modo como nos organizamos no território, é preciso pensar num desenvolvimento mais sustentável e que respeite os limites ambientais, é preciso debater publicamente soluções para a garantia de cidades mais justas e democráticas a todos e todas.
*Instituto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.