10/02/2012 09:26

Por Gustavo Cunha, da FASE

Foi uma sala no Rio de Janeiro que acomodou mais de 50 participantes de diversas regiões do Brasil e outros países no curso Energia e Sociedade no Capitalismo Contemporâneo, realizado pelo Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) e pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano (IPPUR), da UFRJ. A FASE apresentou a perspectiva da Justiça Ambiental, com a qual trabalha há anos, em duas aulas. Além de promover reflexões que colaboram na defesa dos direitos, o curso tem como principal objeto de análise as transformações do capitalismo contemporâneo.

“Para quem será que se destina esse desenvolvimento, tão colocado para a sociedade?”, questionava Julianna Malerba, coordenadora do Núcleo Justiça Ambiental e Direitos FASE e da Rede Brasileira de Justiça Ambiental. A pergunta se direcionava a alunos do Brasil e outros países que terminam o curso de dois anos no dia 15 de fevereiro. O questionamento tinha como base três vídeos, exibidos em sala, sobre situações de desigualdade em territórios urbanos e agrários no Brasil. Em um dos casos, trabalhadores de uma usina de plástico de Quixeré, no Ceará, eram obrigados a lidar diretamente com o veneno invisível dos agrotóxicos, mesmo sem ter conhecimento. São de exemplos como esse que surge a questão: o suposto projeto desenvolvimentista traz benefícios a todos, democraticamente? Instigada, uma das alunas complementava: “o que vemos é o Estado brasileiro dando forte amparo às grandes empresas que atuam no campo”. Outro ainda dizia: “essa relação precisa ser destruída. Assistimos a um conflito de classes: um pequeno grupo dominante e outro grupo de muitos trabalhadores explorados”.

Ao contrário do que se costuma dizer, Julianna demonstrou que não há igualdade ambiental entre os povos. Como esclarece o livro O que é Justiça Ambiental, publicado em parceria com a FASE, “é nas áreas de maior privação sócio-econômica e/ou habitadas por grupos sociais e étnicos sem acesso às esferas decisórias do Estado e do mercado que se concentram a falta de investimento em infraestrutura de saneamento, a ausência de políticas de controle dos depósitos de lixo tóxico, a moradia de risco, a desertificação, entre outros fatores, concorrendo para suas más condições ambientais de vida e trabalho”. Portanto, como pontuou Julianna, “a desigualdade ambiental é reflexo da desigualdade social, que não é apenas de classe: é de gênero e de raça”.

Para Malerba, uma parcela da população é não só vulnerável a determinadas situações, mas também “vulnerabilizadas” – já que a própria situação de vulnerabilidade é criada por outrem. E muitas vezes nos esquecemos disso, “desnaturalizando as causas que geraram o quadro”. Ela exemplifica com o contexto urbano do Rio de Janeiro: “a população ocupa as encostas. Tempo depois, são consideradas culpadas da própria situação. Mas e as péssimas condições de emprego e de baixíssimo salário a que são submetidas?”.

Em Moçambique, o aluno Hanifo Tomás Massope presencia circunstância semelhante. Agricultores familiares são levados a sentirem-se culpados pelas condições de injustiça ambiental. No país africano, cerca de 70% da população se organiza em pequenas propriedades rurais, com produção para própria subsistência. O problema reside nas queimadas. Hanifo esclarece: “o discurso das elites políticas é de que, com as queimadas, essas populações contribuem para o aquecimento global. Mas, na perspectiva do governo, não há políticas públicas que tragam novas tecnologias para essas pessoas”. A conseqüência do fenômeno é um considerável deslocamento para centros urbanos, onde – em contrapartida – serão confrontadas com a falta de emprego.

Julianna acredita que “é uma estratégia política naturalizar as questões existentes em relação à injustiça ambiental. No entanto, não devemos apenas aprender a aceitar essas injustiças; é preciso construir conhecimento sobre tais situações”. Há uma nítida desigualdade de poder no debate público: não há um diálogo com as populações na implementação das políticas. As alternativas apresentadas pelos governos, em conjunto com empreendimentos privados, são “infernais”: “o discurso que chega para a população não nos dá outra alternativa, o que esvazia o debate político”. Dessa maneira, é primordial que os diversos movimentos se articulem na construção de novas estratégias territoriais. Cada alternativa precisa ser pensada de acordo com a região específica. Como bem afirmou, “as energias renováveis precisam alavancar uma caminhada rumo a um novo modelo energético; pois, caso contrário, se apresentarão apenas como mais uma fonte”.

“O problema é sempre o mesmo…”
Participantes do curso valorizam o intercâmbio entre pessoas de diferentes regiões e países

Atingido pela barragem de Samuel, e agora, novamente, pelo projeto de Santo Antônio, em Rondônia, Miquéias Ribeiro vê o curso como um espaço de fortalecimento dos conhecimentos para a produção de contra-propostas ao modelo de desenvolvimento dominante. Membro do MAB desde 2004, o rondoniense considera fundamental um debate sobre modelos energéticos em seu estado, principalmente hoje: “passamos por duas grandes barragens em Rondônia. Precisamos, portanto, de uma noção aprofundada, já que as grandes empresas não discutem com a população o que de fato pode acontecer”.

A partir das reflexões que adquire no curso, Miquéias organiza um trabalho de base com as famílias que vivem em Rondônia para, posteriormente, se mobilizarem em grandes atos de resistência. “A principal discussão levada pelo MAB é: a energia é para quê e para quem?”, afirmou, para em seguida complementar, “constroem uma barragem, acabam com o nosso rio, mas ainda há muitas famílias sem energia – quando as que têm pagam um valor muito caro”.

Para Sandra da Silva, o curso é primordial no fortalecimento das diferentes militâncias. Desde 2006 integrante do MAB, a cearense também pôde aplicar o conhecimento adquirido no curso em sua realidade. “Quem é que não ganha simpatia das famílias quando você puxa a questão das tarifas da energia? Com os debates, as famílias passam a entender porque temos a energia mais barata do mundo e, ao mesmo tempo, pagamos a energia mais cara”, explicou.

Além do conhecimento das aulas, os participantes deram muito destaque às trocas culturais com colegas de diferentes países. “Entendemos que os problemas são os mesmos em outros locais”, frisou Reginaldo Martins, membro do MST, em Pernambuco, “Isso contribui na organização dos trabalhadores na luta contra os grandes projetos”. Integrante do MAB, o gaúcho Marco Antonio Trierviler expande o raciocínio: “mesmo que os rostos sejam diferentes, percebemos que o capitalismo tenta aplicar um modelo único. O avanço dessa estrutura perversa é, por um lado, preocupante, mas, por outro lado, nos dá mais unidade de classe”. Para Sandra, o curso representa um “grande espaço de articulação política”.

No último módulo do curso, Marco Antonio chega à avaliação de que o poder de mudança das injustiças está, fundamentalmente, na luta popular. “Os setores jurídico e institucional podem ajudar muito, mas o que de fato altera as estruturas é o poder do povo. Todos os exemplos que obtiveram vitórias mostram isso: um povo formado, informado e muito bem mobilizado”.