Sara Pereira
29/11/2023 18:00
Junto com os primeiros raios de sol, inúmeros barcos, rabetas e bajaras (pequenas embarcações) aportaram na Comunidade São Francisco, na região do Arapiuns, no Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Lago Grande trazendo centenas de pessoas vindas das demais regiões do PAE, assim como da Resex Tapajós-Arapiuns, além de participantes de Santarém. Chegar não foi tarefa fácil, uma vez que a seca severa que assola a região, impôs limitações à navegação. Porém, com apoio e solidariedade mútuos, as comunidades marcaram presença com grandes delegações compostas não só por jovens, mas também por lideranças mais velhas e crianças.
A II Romaria do Bem Viver mostrou a importância da proteção das águas e da preservação do Rio Arapiuns. Ricardo Aires, jovem da região do Arapixuna e integrante dos Guardiões do Bem Viver, destaca que o rio é fundamental para a garantia dos modos de vida das populações que o habitam. “Somos ribeirinhos, estamos localizados nas comunidades tradicionais, aldeias indígenas e estas estão sempre à margem de um igarapé, do rio. E hoje com a devastação, o desmatamento, as mudanças climáticas, nós somos muito impactados, nossos rios estão contaminados”, denuncia. “E agora essa seca que veio muito forte fechou nossos caminhos, nossa fonte de alimentação. Porque é principalmente do rio que vem nosso sustento, nosso ir e vir. O Arapiuns é nossa estrada, nossa rua, nosso lazer, nossa proteção. Se ele está sendo destruído, nós também estamos. Por isso, exigimos que nosso rio não seja tratado como mercadoria, mas como bem comum, essencial para nossa vida”, apela.
A jovem Maria Rocha, também membra dos Guardiões do Bem Viver, chama a atenção para o fato de que as mulheres são as que mais sofrem com a poluição e seca do rio. Ela ressalta que “os cuidados com a casa, o preparo da alimentação, o manejo das hortas e quintais, a condução das bajaras para levar as crianças à escola, são tarefas realizadas, principalmente, pelas mulheres. Então, se a água do rio está suja ou se o rio seca demais, somos nós as mulheres que sentimos mais fortemente os impactos disso. Daí, temos que dizer que a poluição do rio prejudica todos nós, mas para as mulheres a vida fica muito mais difícil ainda”, complementa.
E a voz das mulheres ressoou também nos poemas de Luciana Lima, jovem da Comunidade Cutilé, anunciando que “o rio Arapiuns nos dá o sustento, sacia a nossa sede, nos traz paz, ele é o nosso bem viver. Agora ele está sofrendo com a morte dos peixes, com a fumaça das queimadas, com a seca no seu leito. E a gente sofre junto com ele. Porque nós não somos do rio Arapiuns, nós somos o rio Arapiuns”, afirma.
Rio Arapiuns como Sujeito de Direito
Com o objetivo de buscar proteção legal ao Rio Arapiuns, a juventude do Coletivo Guardiões do Bem Viver, em parceria com a Pastoral da Juventude e outras organizações como a FASE Amazônia, iniciou a programação da II Romaria do Bem Viver com um seminário cuja pauta central foi o debate sobre o rio como sujeito de direito.
O jovem Darlon Neres, integrante dos guardiões do Bem Viver, explicou que já estão trabalhando uma proposta de projeto de lei, inclusive em diálogo com alguns vereadores de Santarém, na perspectiva de garantir a proteção legislativa ao rio Arapiuns e torná-lo efetivamente sujeito de direito. Ele enfatizou que o rio está ficando cada vez mais poluído por conta da exploração ilegal de madeira, além da ameaça da mineração e da especulação imobiliária que já prevê empreendimentos que vão impactar ainda mais o rio. “Preocupados com essa situação, vimos algumas experiências no Brasil que conseguiram aprovar leis instituindo os direitos da natureza, os direitos dos rios. Como é o caso de Guajará-Mirim, em Rondônia, que a partir da luta popular, conseguiu tornar o Rio Laje como sujeito de direito por meio de lei municipal. Se nos engajarmos pra valer nessa luta, nós também podemos conseguir”, defende. “O rio Arapiuns é um ser vivo do qual depende a nossa própria vida. Protegendo o rio, a gente garante a proteção das águas como bem comum para nós e para as futuras gerações”, alega Darlon.
Atualmente, os rios e as águas, na legislação brasileira, não são considerados “sujeitos de direito”, que é quando cada indivíduo tem deveres e direitos protegidos por lei e que devem ser respeitados. Sem direitos, a natureza sofre constantemente com a poluição, desperdício de água e destruição.
Os debates sobre direitos da natureza têm ganhado força ante à emergência climática que preocupa o mundo. Ao contrário do Direito Ambiental, que aborda a destruição do meio ambiente a partir da centralidade das necessidades humanas, compreendendo a natureza tão somente como recurso a ser explorado, os direitos da natureza a tratam por si mesma, com valor intrínseco, e não apenas por ser útil à humanidade.
Os direitos da natureza baseiam-se na cosmovisão ancestral indígena e de povos tradicionais, a qual estabelece a interdependência entre os seres humanos e demais seres, animados e inanimados, que habitam o planeta terra, os constituindo como integrantes de uma mesma comunidade. Seria o que Papa Francisco chamou, na ladauto si, de ‘casa comum’.
Posicionando-se na vanguarda, o Equador consagrou a natureza como sujeito de direito em sua Constituição de 2008. A Carta Magna equatoriana estabelece que são deveres e responsabilidades dos seus nacionais respeitar os direitos da natureza, preservar um ambiente e utilizar os recursos naturais de modo racional e sustentável. As normas constitucionais também enfatizam o bem viver como modelo de sociedade a ser consolidado, onde a natureza aparece como um dos objetivos de atuação do sistema nacional de ciência e tecnologia, inovação e saberes ancestrais, o que significa dizer que todos devem respeito ao ambiente, à natureza, à vida, às culturas e à soberania, devendo o Estado atuar com fundamento na ética, na natureza, no ambiente e no resgate dos conhecimentos ancestrais.
Também a Bolívia, em 2010, trouxe para seu ordenamento jurídico, através de lei federal, o paradigma ancestral comunitário como balizador das relações sociais, por eles denominada como o vivir bien ou buen vivir.
Essas experiências andinas ressaltam que a identidade de um povo está, sobretudo, no relacionamento identificado com seu território e a harmonia com a mãe terra. É nessa cosmovisão que os jovens do PAE Lago Grande se inspiram no fortalecimento da luta para garantir o Rio Arapiuns como sujeito de direitos.
Apesar da legislação brasileira ainda não ter consagrado esse entendimento, já há iniciativas no país que conseguiram aprovar leis dos Direitos da Natureza, como os municípios de Bonito e Paudalho, no Estado de Pernambuco, Florianópolis em Santa Catarina, Serro em Minas Gerais e Guajará-Mirim, em Rondônia.
Para os Guardiões do Bem Viver, a luta para tornar o Rio Arapiuns sujeito de direitos está só começando. Mas, já conta com a proteção dos espíritos ancestrais invocados pelas lideranças indígenas da Terra Indígena Cobra Grande, as quais recepcionaram com um lindo e emocionante ritual a população que navegou pelo Arapiuns desde a Comunidade São Francisco até a Aldeia Lago da Praia.
No encerramento do ato, o jovem Ricardo Aires reafirmou o mantra dos Guardiões do Bem Viver “Eu não estou no território, eu sou o território”. E continuou “Nós não estamos à parte do nosso território, temos uma relação de muito pertencimento, muita conexão. As árvores, as florestas, os igarapés, os encantados, nossos ancestrais, nossos povos também somos nós. E o PAE Lago Grande e a Resex Tapajós-Arapiuns não estão separados pelo rio. Na verdade, o rio Arapiuns nos une, o povo que está à margem da Resex e nós que estamos à margem do PAE Lago Grande somos conectados pelo rio, pelas inter-relações que são feitas todos os dias por meio da rabeta, da canoa, do barquinho. Precisamos das águas do Arapiuns saudáveis porque delas depende a nossa sobrevivência. Se nós temos direitos, o rio também tem. Vamos seguir firmes na luta pelo Arapiuns como rio de direitos”.
Apesar de todos os desafios que terão pela frente, os jovens do Coletivo Guardiões do Bem Viver já estão fazendo história ao assentarem a luta em defesa dos seus territórios na cosmovisão ancestral da natureza como ser direitos, entendendo a proteção ambiental como a proteção das suas próprias vidas e da sustentabilidade do planeta. E tudo isso construído através de um processo autônomo e emancipatório que estampa o protagonismo da juventude com uma crescente consciência política sobre seu papel no mundo. Diante da necessidade de enfrentamento à emergência climática, os jovens amazônidas do Coletivo Guardiões do Bem Viver estão materializando o que Ailton Krenak vem insistentemente ensinando: o futuro é ancestral. Que os olhos do mundo vejam e aprendam!
*Coordenadora da FASE Amazônia