Isabelle Rodrigues
15/04/2025 16:03

Com a força da ancestralidade e da luta, a 2ª Marcha Nacional das Mulheres Negras promete reunir cerca de 1 milhão de vozes, corpos e territórios em Brasília, no dia 25 de novembro de 2025. Dez anos após a histórica ocupação da capital federal por 100 mil mulheres negras — que denunciaram o racismo, o sexismo e a violência e apresentaram ao país um novo horizonte de justiça e dignidade —, a marcha retorna mais viva e mais urgente do que nunca. Em entrevista à FASE, Naiara Leite, Coordenadora Executiva do Instituto Odara, integrante da Rede de Mulheres Negras do Nordeste, da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras e do Comitê Impulsor Nacional da Marcha, compartilha os bastidores e objetivos desta mobilização que transcende datas como um processo político profundo, enraizado na memória, na resistência e no desejo de um futuro onde todas as mulheres negras possam viver com liberdade, autonomia e poder.

O Edital Nilma Bentes para Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem-viver, lançado pela FASE através do Fundo SAAP e do Fundo DEMA, está com as inscrições abertas até o dia 9 de maio para receber projetos de apoio à processos de mobilização locais, regionais e nacionais em preparação à marcha. Saiba mais sobre a iniciativa através do edital

Naiara Leite, integrante do Comitê Impulsor da Marcha das Mulheres Negras

Entrevista com Naiara Leite

1. Como a marcha de 2025 se conecta com a trajetória iniciada em 2015? Quais são os marcos desse processo contínuo de articulação das mulheres negras no Brasil?

Essa é uma marcha que a gente tem dito que as mulheres negras, nos últimos 10 anos, vêm forjando e vêm construindo esse processo no Brasil. Ele não começa no ano passado, nem agora, mas é fruto de um processo histórico de mobilização e de articulação que as mulheres negras vão construindo no Brasil e que deflagrou a marcha de 2015, com a participação, em Brasília, de cerca de 100 mil mulheres negras de várias partes do país, mas com uma mobilização muito ampla em todo o Brasil. A gente diz que eram 100 mil que estavam lá, mas tinha muita gente mobilizada e articulada no país inteiro e conectadas, do ponto de vista ancestral e político, naquele 18 de novembro de 2015.

2. O que significa reivindicar o Bem-Viver como projeto político? 

Tem um olhar para a marcha de 2015 como um grande farol desse processo de articulação das mulheres negras. Um é trazer e reivindicar o Bem Viver como o nosso projeto de nação, a nossa cosmovisão política do que a gente acredita em termos de ruptura com projetos políticos capitalistas, brancos, desenvolvimentistas que estruturam essa sociedade. Então, o que as mulheres negras apresentavam de novo naquele momento era esse chamado para essa outra cosmovisão e para esse outro projeto de sociedade centrado no Bem Viver, que valoriza outras dinâmicas, mas que também define que não é possível a gente avançar para romper com nenhum tipo de desigualdade se a gente estrutura ainda e alimenta sistemas e modelos políticos de país e de sociedade em dinâmicas tão perversas, com raiz escravocrata, colonial, que focam não nas pessoas, mas que focam nesse modelo cruel, econômico, desenvolvimentista e que não valoriza outras experiências. Então, o Bem Viver foi uma grande provocação, um grande anúncio das mulheres negras dizendo o seguinte: o país vive esse caos, mas a gente tem um projeto de nação para apresentar. Então, acho que 2015 foi muito importante. Acho que foi importante a gente perceber os últimos dez anos, não só de como o movimento de mulheres negras aprofunda sobre essa ideia do Bem Viver, pegando experiências das mulheres indígenas da região andina, das mulheres indígenas da América Latina como um todo, das experiências das mulheres negras, quilombolas, marisqueiras e de comunidades tradicionais do Brasil. Então, a gente vai fazendo discussões ao longo desses dez anos de aprofundamento do que significa isso do ponto de vista real para as mulheres negras, não perdendo de vista essa grande utopia que é o Bem Viver. Acho que tem uma coisa dos últimos dez anos também, que é como a gente consegue disputar uma narrativa na sociedade brasileira e na sociedade de modo geral, ultrapassando a fronteira do Brasil e atingindo uma dinâmica internacional de que, por mais que a gente vá viver uma estrutura racista, patriarcal, cis-heteronormativa, que vai assegurar que a gente vive os piores índices de violação, de violência, mas, ao mesmo tempo, você emergiu um debate e uma força política a partir do protagonismo das minorias negras. Então, a marcha de 2015 tem um papel importantíssimo nesse sentido. A outra coisa que eu acho que é muito importante como resultado de 2015 é a gente olhar para o Brasil e a gente perceber que não existe mais uma invisibilidade sobre nós. Nós estamos aqui, por mais que a branquitude, por mais que a lógica racista tente nos invisibilizar. Então, se há um debate e não tem mulher negra, isso hoje é percebido, isso hoje é identificado. A outra coisa é o crescimento do movimento de mulheres negras. Então, hoje você não tem mais nenhuma parte do Brasil que não tenha um coletivo, uma organização, um grupo de jovens, ou de lésbicas negras, ou de travestis, transexuais negras, ou de mulheres no campo ambiental negras, trazendo a nossa luta a partir da nossa trajetória e da nossa perspectiva de olhar o mundo. E isso é fruto desse processo de 2015. Então, a gente sempre diz que a marcha de 2015 não foi só o dia 18 de novembro.

3. Quais foram os principais legados da Marcha de 2015?

A marcha de 2025 não é somente o dia 25 de novembro, mas é o processo. Ela é o processo de incidência na construção. Ela é o processo de articulação política na construção dessa marcha e dessa grande estratégia. Ela é a metodologia de organização que as mulheres negras, jovens, diversas, constituem nesse processo. E ela é o alinhamento e a força para uma agenda que as mulheres negras querem disputar, que ultrapassa o dia da marcha e que vai para o pós-marcha. Um reflexo disso também a gente pode trazer, que ainda é muito pequeno, ainda é vergonhoso para o Brasil, que se diz um país democrático, é a gente ter poucas parlamentares e não conseguir mudar a ideia da sub-representação nos espaços institucionais. Mas é importante a gente olhar que, mesmo que poucas e mesmo vivenciando situações absurdas no campo da violência política de raça e gênero, nós ainda conseguimos emplacar uma narrativa e uma ideia no imaginário da sociedade brasileira que é: existe uma ausência das mulheres negras naquele espaço, da população negra, e existe um determinante de violência que exclui, que retira as mulheres negras desses espaços institucionais. Por mais que a gente ainda não tenha alterado por completo qual é a fotografia dessa institucionalidade brasileira, você hoje vai ter movimentos em contraponto à lógica racista, patriarcal, que comanda essas instituições, que é feito porque o movimento de mulheres negras nesse processo vem fazendo. Então, existe um desconforto. Por mais que os partidos, por mais que a institucionalidade se mantenha resistente e vá forjando novas estratégias para nos eliminar desse espaço, está posto. Existe aí, no imaginário da população brasileira, uma ideia de que ela não se vê, de que naquele espaço ela não está representada. Por mais que isso ainda não tenha tido dimensões da gente dizer “não operamos a lógica eleitoral no Brasil”, é muito complexo, porque a gente está dialogando e disputando com forças que se sustentam a partir da colonialidade, a partir do coronelismo, a partir do patriarcado branco. Então, é muito difícil. E como o Brasil transformou a ideia do que é fazer política e do que é participar da política. Mas a gente pode chegar na nossa casa, da nossa vizinha, que não tem nada a ver com movimento social, e ela vai saber e dizer que realmente ela não está se percebendo naquele espaço.Isso é um ganho que é incomensurável do ponto de vista lógico, então como é que a gente mensura isso? Mas isso está posto quando a gente vê a narrativa, bem como a gente vê as mulheres negras reivindicando a efetividade, por exemplo, de políticas no campo do enfrentamento à violência doméstica, no campo do enfrentamento ao feminicídio, dizendo e afirmando com tranquilidade que elas sabem quem é que morre. Ou elas dizerem que, no campo da saúde, elas não acessam as políticas de maneira integral, porque o racismo existe, porque a forma como elas são tratadas é diferente de outras usuárias do Sistema Único de Saúde que não são negras ou de usuárias mulheres que têm condição de acessar outras dinâmicas para garantir segurança de saúde. Então, está posto no imaginário da população brasileira, e isso é fruto do trabalho do movimento negro, do trabalho do movimento de mulheres negras. São conquistas que a gente demora um tempo para perceber.

4. A marcha de 2025 também é apresentada como um processo político. Que estratégias estão sendo construídas nesse caminho?

Uma coisa que é efeito de 2015 e que segue é a nossa capacidade de incidência internacional. Então, hoje você tem uma visibilidade no campo do movimento de mulheres negras que as mulheres negras do Brasil têm para dizer, denunciar e disputar no campo internacional, cortes internacionais de direitos humanos, nos espaços institucionais das Nações Unidas, porque o marcador de raça é fundamental para pensar toda e qualquer política mundial, global. Então, isso é fruto também desse processo de fortalecimento e articulação das mulheres negras, e essa grande estratégia chamada Marcha Nacional de Mulheres Negras é quem potencializa tudo que nós estamos fazendo nas nossas organizações, nos nossos estados. E aí 2025 chega. A gente, desde o ano passado, de março do ano passado, no Março de Lutas, faz um chamado nacional para as mulheres negras, para a sociedade brasileira, de reafirmar que nós iríamos, sim, fazer a marcha. Então, no ano passado, no Março de Lutas, de 1º a 31 de março, todos os grupos fizeram ações nos seus estados dizendo e convocando as mulheres para começar, de maneira mais eficaz, o processo de discussão e reflexão sobre a marcha. A marcha de 2025, diferente de 2015, traz, sustenta e continua trazendo o Bem Viver como um grande horizonte político e de projeto de nação. Mas ela traz agora, nesse contexto global onde a gente tem discutido muito sobre o impacto dentro dos processos de escravização, quais são as dívidas que os Estados têm com as populações negras no mundo, principalmente com as populações negras da diáspora e também dos países africanos. Então, a gente traz o tema da reparação como uma grande centralidade também que a marcha puxa. Como é que esse tema é refletido pelas mulheres negras? A partir da marcha de 2015, as mulheres negras apresentam uma perspectiva do que é nós pensarmos sobre reparação, por exemplo. Qual é o projeto de reparação que a gente quer disputar para a sociedade brasileira, para as populações negras brasileiras? Então essa é a ideia do que a gente está fazendo. Nós, este ano, temos uma situação muito particular no mundo, que é como o conservadorismo, o fascismo, o ódio antinegro vêm crescendo no mundo. Isso não é de agora, isso é de muito tempo. Isso coloca as mulheres negras do mundo, seja do Norte Global, do Sul Global, em situações muito difíceis do ponto de vista da sua existência, da sua vida, da sua segurança. E, como eu disse, não é um processo que estancou com a eleição de Donald Trump. Isso é um processo que vem acontecendo e recrudescendo no mundo. E isso faz com que a marcha ganhe uma outra dimensão política — é uma convocação para uma denúncia e para o fortalecimento de uma agenda global de mulheres negras. Então, no dia 21 de março deste ano, nós lançamos o Comitê Global com lideranças negras da África, dos outros países e regiões da diáspora, do Norte Global, muito no sentido de: que tipo de solidariedade transnacional a marcha consegue constituir para fortalecer a agenda política das mulheres negras pela vida em disputa da sociedade? Isso também é algo novo para nós, porque se você pensar o tema ambiental, o tema da justiça reprodutiva, o tema do encarceramento, o tema da disputa democrática e da participação política — todos os grandes temas que as mulheres negras têm disputado ao longo desses anos —, isso volta, mas volta com muito mais força, porque a gente vai para uma dimensão de um olhar transnacional. Porque se a gente olhar em todos os campos, as mulheres negras e as meninas negras é que vão ser as mais impactadas.Então, acho que a marcha de 2025 tem essa grande perspectiva política de ganhar uma visibilidade e do que as mulheres negras vão, com essa visibilidade, querer disputar de maneira conjunta, não só no Brasil. Acho que o Brasil permanece na sua liderança, com um legado de história de mais de 40 anos de organização política das mulheres negras, mas o Brasil convida e diz assim: “Olha, nós precisamos estabelecer pactos, porque a nossa luta é global, ela é uma luta comum, ela é de todas nós. O racismo não está matando a gente aqui apenas, não somos só nós que estamos perdendo os nossos filhos, sobrinhos etc.” Então, isso é uma coisa. Diferente de 2015, neste ano a gente tem uma coisa mágica: a metodologia da marcha é a mesma. A marcha é das mulheres negras, a marcha é um processo autônomo, a marcha não tem uma dona, ninguém manda na marcha — essa é a ideia — e nem ela é uma organização. Então, todas as mulheres que estão na sua rua, na sua comunidade, no seu território, são donas da marcha.

5. Como se dá o processo de organização da Marcha?

Em cada local, as mulheres estão instituindo comitês impulsores da marcha. Comitês territoriais, comitês municipais, comitês estaduais. E, este ano, a gente entendeu que era importante fortalecer essa ideia de articulação regional. Então, a gente também tem comitês regionais este ano e o Comitê Nacional, que está aí junto com várias organizações negras, que eu vou dizer para você, que eu acho que talvez você queira mencionar.

Então, nós somos hoje:

  • Articulação Nacional de Psicólogos e Psicólogas Negras em Relações Etnológicas e Raciais.

  • Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras.

  • Rede Nacional de Lésbicas e Mulheres Bissexuais e Feministas Negras.

  • Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos.

  • Fórum Nacional de Mulheres Negras.

  • Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negros e Negras.

  • Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos de Matriz Africana.

  • Mulheres de Terreiro

  • Rede de Mulheres Negras do Nordeste.

  • Rede Fulanas-Negras da Amazônia Brasileira.

  • Rede Nacional de Mulheres Negras no Combate à Violência.

  • Movimento Negro Unificado.

     

Essas são as organizações nacionais que compõem o que a gente chama de Comitê Impulsor Nacional, que, diferente dos estados, que estão mais focados na sua articulação local, nos processos de discussão, de articulação e também em forjar as estratégias para que as mulheres cheguem a Brasília, o Comitê Nacional tem uma tarefa que é de fazer a articulação do Brasil inteiro, de fazer a articulação com as instituições, de forjar os processos mais no campo global, mas de assegurar a estrutura do dia da marcha, onde as mulheres vão dormir, onde as mulheres vão comer, qual o percurso da marcha. Então, a gente está muito hoje nessa tarefa. A marcha acontece dia 25 de novembro, então agora a gente está nos trâmites, que é de liberação do espaço, do Parque da Cidade em Brasília, para montar o alojamento, para montar as estruturas todas de alimentação, para montar os estacionamentos dos ônibus, para que as mulheres cheguem em segurança. Acho que quando a gente faz uma convocação de uma marcha global, a gente também tem dimensões de segurança que a gente vai precisar implementar, produzir. Mas eu acho que quando a gente pensa no processo e na metodologia da marcha, essa ideia de uma marcha que mobiliza as mulheres negras e que visibiliza e amplia o volume das nossas vozes para uma sociedade como a sociedade brasileira, é você assegurar processos autônomos das mulheres negras. Então, nós somos muito diversas no Brasil, e o racismo, às vezes, não permite que isso seja visível. É como se você estivesse falando de mulheres negras no Brasil que são iguais. As realidades regionais são extremamente diversas e elas são, inclusive, importantes para ler esse país de dimensões continentais, entendendo que o acesso ao recurso é diferente no Nordeste, na Amazônia, que as condições de moradia são diferentes, que a política pública que chega em um lugar se dá de uma outra maneira, que a tonalidade da pele, a expressão e o formato organizativo são diferentes. Nós somos um movimento de negras brasileiras, mas nós articulamos nossas estratégias de maneiras completamente distintas, porque têm a ver com a nossa história, com o regional, de onde a gente está, do chão que a gente pisa. Então, a marcha cumpre esse papel, que é o de mostrar ao Brasil a riqueza da produção das mulheres negras, a riqueza da narrativa, a riqueza política do que as mulheres negras, em um contexto muito adverso, que você sabe que falar de recurso é muito difícil no campo do movimento de mulheres negras. As organizações de mulheres negras no mundo têm feito pesquisas e apresentado como é desigual quando a gente está falando de como a gente acessa. Então, mesmo com todos esses desafios de formatos organizativos, se são institucionalizados ou não, nós temos conseguido reagir à violência imposta pelo racismo patriarcal e fazer levantes importantes, como é o caso da Marcha das Mulheres Negras. Por isso que eu acho que a marcha é tão importante num cenário político tão difícil. Porque não é a esperança branca, mas é a esperança de que sociedade, de que futuro a gente quer construir. E a gente não está falando de um futuro só negro, a gente está falando de um futuro possível para todas as pessoas. Porque nós, que fomos excluídas historicamente, a gente não quer construir uma sociedade só para nós. Essa não é a nossa lógica, isso não corresponde à nossa matriz, do que a gente acredita. Então, a gente quer construir uma sociedade boa e possível para todo mundo. Então, esse é um projeto político muito generoso nosso, mas é um projeto político muito desafiador. Uma outra coisa aqui da mensagem que acho que a marcha traz, tanto a de 2015 quanto a de 2025, é a perspectiva de um movimento organizado, mas mantendo princípios políticos radicais. A gente está se levantando, a gente está dizendo, acho que já tem uma radicalidade quando a gente diz que não tem dona, então não tem lacuna. Cada uma pode ir com a cor que quiser, com a roupa que quiser, como quiser, mobilizar do jeito que quiser e ela não precisa pedir autorização a ninguém. Acho que só isso daí já é uma radicalidade. Eu lembro que, em 2015, a gente ficava assim… Não, vai vir umas 10 mil mulheres. Porque quando a gente ligava para os estados, as mulheres diziam assim, a gente está vindo aqui, está muito difícil a gente conseguir ônibus. Quando a gente viu, na madrugada de 17 para 18, aquele tanto de ônibus, você dizia assim, como é que estava esse negócio todo que as mulheres não conseguiam comprovar? Isso é autonomia também, é você assegurar que as mulheres vão e construam o seu processo. A outra coisa é: nenhuma mulher negra vai chegar em Brasília para a marcha onde ela não tenha aprofundado, a partir da sua perspectiva e do seu lugar, qual é o projeto de sociedade, de nação que a gente está defendendo. Isso é outra coisa, a gente não está levando uma mulher negra para Brasília para fazer um número, a gente está levando mulheres negras que são sujeitas, que lideram os seus movimentos nos seus locais e que produzem impacto, seja no buraco da rua, que abriu e a criança caiu, seja na associação comunitária da pesca, que não tem investimento. Então, o que a gente está mexendo é muito grandioso nesse sentido. E aí a gente tem que dizer a esse país que a gente já não aguenta mais também. Acho que a marcha também traz muito isso. Nós não aguentamos mais viver em um país onde a lógica para nós são as violências e a morte. Então, eu acho também que tem aí uma tarefa do movimento de mulheres negras de criar novas possibilidades e novas possibilidades de imaginação de outros futuros para nós, para a nossa população que chega depois e para esse país, para esse país como um todo.

  1. Então, qual é a importância desse tipo de estratégia de lançamento do Edital Nilma Bentes e dessa mobilização para grupos coletivos e organizações mulheres negras? Como vocês vêm percebendo isso em 2015 e agora? 

Eu acho que a gente tem uma diferença muito grande de 2015 para cá no que diz respeito a incidir no campo da filantropia, para que a gente vá ampliando a priorização do fortalecimento da ajuda às mulheres negras. Eu acho que é um cenário diferente, e isso também tem a ver com o fato de que a gente hoje é maior do que era lá atrás. Iniciativas como essas que vocês estão fazendo são super importantes. Primeiro porque elas fazem com que o recurso chegue na mão das mulheres de maneira direta. Acho que tem uma coisa importante, vocês não têm a burocracia dessa coisa do CNPJ. Existem estratégias para quem não tem o CNPJ, com o apoio através do CNPJ solidário. Pensar na dinâmica e na diversidade do movimento de mulheres negras e na importância do apoio chegar para as mulheres negras e promover estratégias que assegurem que as mulheres negras não tenham barreiras e impedimentos para acessar os recursos. Eu acho que isso é extremamente importante. Outra coisa que eu destacaria sobre a importância do Edital é, obviamente, a homenagem à Nilma Bentes, que é nossa grande farol e idealizadora da marcha, por ser uma liderança da Amazônia brasileira. Isso é extremamente importante. A gente precisa contar essas histórias, e o Brasil precisa conhecer que são essas mulheres, que muitas vezes não têm tanta visibilidade, que são as “anônimas guerreiras brasileiras” que produzem a política neste país, mas que não são visíveis, ou não tão visíveis. Então, a homenagem à Anima é fazer uma referência a nós, é fazer uma referência à Amazônia, mas fundamentalmente é valorizar, contar essa história. Quem criou a marcha, quem pensou, quem idealizou. Isso é importante. Garantir a estratégia que possibilite que as mulheres negras consigam acessar o recurso de maneira mais tranquila é outro fator que considero muito importante no edital que vocês estão lançando. E a outra coisa é direcionar para um processo de fortalecimento da marcha e, junto com a marcha, da agenda política que cada estado, cada território, está produzindo. Isso é de fundamental importância, porque não vai assegurar só que as mulheres cheguem na marcha, mas vai assegurar um processo. Ele assegura um processo. É um recurso que assegura que as mulheres façam suas rodas, suas intervenções, ampliem sua incidência política no seu território, no seu município, no seu estado. Esse edital direcionado para os estados tem um papel extremamente importante, porque ele vai assegurar uma coisa que, para nós, no processo da marcha, é muito relevante: o processo. O processo diz muito, porque a gente vive num país com mais de 50 milhões de mulheres negras. Nós precisamos afetar as mulheres negras, e os processos que vão assegurar que as mulheres negras se afetem com o movimento, com a perspectiva de transformação, são apoios como esse que vão assegurar que as organizações, onde quer que estejam, por menores que sejam, produzam ações de impacto muito grande, que mobilizem outras atrizes que nós muitas vezes não alcançamos, mas que o hegemônico branco alcança, e muitas vezes nós não conseguimos. Então, eu considero a estratégia de vocês uma estratégia extremamente importante nesse momento. Acho que é uma estratégia que vem para fortalecer e somar à estratégia da marcha e assegurar o processo de fortalecimento dessa grande estratégia. Para mim, é super importante, e que outros campos da filantropia, especialmente da filantropia nacional, também observem essa estratégia como importante. Porque eu acho que não é uma estratégia só nesse período, mas como olhar para a estratégia, por exemplo, de assegurar novas formas, saindo do tradicional de um edital, mas pensando em outras estratégias, compreendendo a realidade das organizações de mulheres negras, para que implementem os outros formatos no pós-marcha, outros formatos no processo sequenciado de apoio às mulheres negras. Isso é bastante importante. Hoje, com essa experiência, conseguimos impactar e influenciar outros financiadores, outras instituições da filantropia, outros portfólios que atuam no campo da justiça de gênero e na justiça racial, para olhar e entender o quão profundas são as desigualdades no Brasil, inclusive os processos que impactam o acesso das mulheres negras aos recursos. Não é desigual porque não é só uma questão de informação. Existe uma diferença também na definição proporcional das regiões, o que assegura que o recurso chegue de maneira diferenciada e diversa nas determinadas partes desse país. Isso também é muito importante no edital de vocês. Vamos combinar, quem está na região do país tem mais possibilidade do que quem está em outra. Então, isso é uma sacada muito importante. Depois, você vê como coloca isso. Mas é importante, como uma mulher negra do Nordeste que disputa esse processo, que todas as organizações de mulheres negras tenham acesso. É importante salientar isso. Sabemos também que os níveis organizativos são muito diferentes, com finalidades e ações gigantescas. Eu nunca vi um grupo que consiga administrar recursos tão bem quanto as mulheres negras e as organizações de mulheres negras, porque são recursos curtos, mas quando você vai olhar, era para fazer duas rodas de conversa e as mulheres negras fazem 11. Essa capacidade de gestão do recurso, inclusive quando se ganha um recurso, conseguir ampliar a possibilidade de mais recursos, isso é extremamente importante. Espero muito que o reflexo desses editais, que têm saído com foco no fortalecimento da mobilização, da articulação e da incidência em torno da marcha, impactem grupos maiores, outros grupos no campo da filantropia, para olhar para essa experiência e constituir suas políticas e seus editais, para que a gente consiga avançar e que as mulheres consigam assegurar o que estão fazendo para a marcha sem recurso. É vaquinha, nunca vi tanta vaquinha, nunca fiz tanto pique de vaquinha como tenho feito ultimamente. Porque é a estratégia. É vaquinha, vender comida, conseguir apoio com o sindicato, e tal. Então, quando você tem uma estratégia dessa, de um edital para as mulheres negras, ela também vem como lugar de reconhecimento da sua luta e do seu processo de articulação política. Isso é importante ser reconhecido. Para o tamanho da ação e o tamanho do monstro que enfrentamos cotidianamente, quanto mais recurso e apoio estratégico conseguimos mobilizar para essa luta, maior será o impacto da nossa incidência e o resultado positivo dessa incidência.

  1. Qual a mensagem final que você gostaria de deixar?

Mulheres negras desse país, mulheres, meninas, idosas, trans, travestis, transsexuais, bissexuais, todas nós. Todas nós. Minha mãe, minha irmã. A marcha é nossa. A marcha é de cada uma de nós. E a marcha precisa que a gente se some a esse processo. Porque a marcha vai ter o tamanho que a gente dá. E, para dar o tamanho das mulheres negras, que são maioria neste país, a gente precisa que cada uma de nós se mobilize, se organize do jeito que a gente quiser. Essa é uma grande oportunidade para nós, estratégica, de transformação desse país, para a construção do país que a gente deseja e que a gente quer para nós e para quem vier depois de nós. Então, vamos todas nos levantar, vamos todas marchar, vamos todas nos organizar da forma como a gente entende que é possível nos organizar. 

*Coordenadora de Comunicação da FASE