Tarcilo Santana
21/12/2023 15:31
Talvez hoje, após os recentes anos de luta incessante dos povos indígenas contra a aprovação, em especial, do Marco Temporal no Congresso Nacional – vetado parcialmente pelo presidente Lula em 20 de outubro –, seja difícil imaginar que o mundo já acompanhou o Brasil realizar a demarcação de Terras Indígenas (TIs) na Amazônia Legal, em um processo que contou com ampla participação dos povos originários. Esse processo contribuiu para a regularização fundiária de TIs como a do Vale do Javari, localizada majoritariamente em Atalaia do Norte, no leste do Amazonas, e da Raposa Serra do Sol, em Roraima. No total, foram 115 TIs demarcadas.
Todas essas demarcações foram fruto de um projeto que deu seu primeiro suspiro de vida em 1990, durante a reunião do G7, encontro das sete então maiores economias mundiais, quando o governo alemão propôs a criação de um programa para reduzir o desmatamento no Brasil. Alguns meses depois nasceu o Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PPG7), que tinha como um de seus objetivos atender as populações atingidas pela ocupação e exploração na Amazônia. E esse foi o ponto de partida do Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal (PPTAL), responsável pelas demarcações citadas.
O PPTAL tinha por objetivo ampliar a proteção ambiental no Brasil apoiando-se em quatro componentes, cujo principal era a regularização fundiária de Terras Indígenas. Com apoio do governo alemão e de outras agências internacionais de cooperação, o projeto foi responsável pela demarcação de aproximadamente 44 milhões de hectares em Terras Indígenas na Amazônia – cerca de 37% da extensão territorial das 771 TIs que se encontram em diferentes fases oficiais do processo demarcatório atualmente em todo o território nacional. Não se pode, é claro, deixar de ressaltar que a atuação dos governos brasileiros na demarcação desses territórios é mais lembrada por sua morosidade do que pelo contrário. Essa lentidão já foi respondida, inclusive, com casos de autodemarcação executada pelos próprios indígenas, a exemplo da Terra Indígena Sawré Muybu, no oeste do Pará, conduzida pelo povo Munduruku, e da Soares/Urucurituba, em Autazes, no Amazonas, realizada pelo povo Mura.
As próprias comunidades foram envolvidas, não sem enfrentar a resistência do governo FHC, especialmente nos processos de identificação dos territórios durante a execução do PPTAL. Equipes formadas por representação de povos indígenas foram capacitadas para fazer um acompanhamento independente do projeto, e isso resultou no aumento da qualidade e precisão do trabalho.
Os níveis de desmatamento seguem oscilando ao longo dos últimos anos, mas TIs eram e continuam sendo territórios preservados no meio de incontáveis focos de devastação – queimadas, extração ilegal de madeira, criação de grandes áreas de pastos para gado, plantação de extensos monocultivos de soja regados a agrotóxicos, grilagem de terras, ação de garimpeiros e mineradoras, entre outros megaprojetos e empreendimentos. Mesmo diante de tantas violações, menos de 2% de todo o desmatamento registrado no Brasil nos últimos trinta anos aconteceu dentro de TIs, segundo a plataforma MapBiomas. Porém, esse grau de preservação se deve principalmente à resistência dos povos originários e aos modos de vida, costumes e tradições que eles mantêm em seus territórios.
Essas e outras comunidades tradicionais Brasil adentro são extremamente importantes para a preservação das águas, das florestas, da biodiversidade e até mesmo das cidades, uma vez que praticam uma pesca artesanal que não compromete o futuro de espécies, plantam o próprio alimento sem usar nenhum tipo de agrotóxico, respeitam os tempos de plantio e colheita de cada espécie cultivada em seus roçados, se valem especialmente daquilo que a natureza lhes oferece, criam pequenos animais sem sobrecarregar ou mesmo matar a terra, fazem o manejo do fogo conforme seus conhecimentos tradicionais de maneira que a queima não se descontrole ou mesmo a com base em práticas espirituais, rituais ligados à água, às árvores e outros elementos desses territórios, que, para esses povos, são sagrados.
Contribuição para a humanidade
Esses modos de vida acabam por oferecer uma contribuição inigualável para a humanidade no campo do enfrentamento das mudanças climáticas, pois mantêm o equilíbrio e a vida saudável desses biomas. A terra por si só não garante sua autoproteção. As pessoas que vivem nesses territórios são suas guardiãs; comunidades seculares que se colocam como barreira para o avanço do agronegócio e outros grandes empreendimentos e põem a vida diante disso. Portanto, é fundamental garantir o direito dessas pessoas de permanecerem nesses espaços. Iniciativas como o PPTAL atuam nesse sentido e são extremamente importantes, pois oficializam a obrigação do Estado de agir para proteger os territórios e os povos que neles habitam. No entanto, esse contexto não é uma realidade exclusiva da Amazônia Legal: nem a proteção, nem as pessoas, nem os algozes, tampouco envolve somente povos indígenas. Por que, então, limitar a um só bioma e a um só segmento populacional uma política de tamanha envergadura no campo da regularização fundiária de territórios tradicionais?
O PPTAL só foi possível graças ao apoio financeiro de países e organizações do Norte global e provavelmente não teria acontecido se dependesse somente de governos brasileiros. Entretanto, por que parar ali? Por que projetos como esse não chegaram ao Cerrado? Ou à Caatinga? Ao Nordeste? O olhar racista desses países – e também dos governos que tivemos até aqui – os fez enxergar a importância da Amazônia, mas somente a partir do momento em que se deram conta de que o que acontecesse com ela poderia lhes trazer graves consequências, como as que estamos vendo hoje, com os eventos extremos provocados pela crise climática. Contudo, é esse mesmo racismo que os impede de enxergar que o Cerrado, a Caatinga, o Pantanal, a Mata Atlântica e os Pampas têm a mesma importância.
O próprio número de terras reivindicadas por povos indígenas atualmente é maior fora da Amazônia. Segundo o relatório “Violência contra os Povos Indígenas no Brasil”, do Conselho Indigenista Missionário, com dados de 2022, são 588 territórios reivindicados no país inteiro, dos quais 301 se encontram em outras regiões. Apenas Mato Grosso do Sul entra nessa conta com 117 TIs reivindicadas. O estado é, talvez, um dos mais violentos contra povos originários do Brasil, sendo palco de episódios como o Massacre de Guapo’y, em 2022, quando indígenas do povo Guarani e Kaiowá foram violentamente atacados por policiais militares durante uma ação de retomada de seus territórios. A ação da polícia resultou na morte de Vitor Fernandes, alvejado quando já estava caído ao chão. O mesmo estado em que Nhandecis e Nhanderus – autoridades religiosas desse mesmo povo – têm suas casas de reza incendiadas com alguma frequência. Duas dessas lideranças foram queimadas vivas recentemente. Outras 74 TIs reivindicadas estão no Nordeste; 75 no Sul; e 35 no Sudeste.
O advogado indígena Dinamam Tuxá, coordenador jurídico da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) e coordenador executivo da Articulação dos Povos do Brasil (Apib), vem chamando a atenção para a necessidade de uma política direcionada a essas outras regiões não somente como estratégia para conter o avanço das mudanças climáticas, mas também para enfrentar o acirramento da onda de conflitos que se instala dia pós dia nesses territórios, com pessoas morrendo de forma sistêmica, a exemplo do povo Pataxó, no sul da Bahia. Ele defende a criação de um plano de demarcação de Terras Indígenas com metas a serem alcançadas, previsão de quais áreas serão delimitadas, indicação de fontes de financiamento, entre outros critérios. Em sua avaliação, porém, essa é uma briga que o governo brasileiro não está disposto a comprar. “Existem terras identificadas e aptas a serem demarcadas nos territórios da área de abrangência da Apoinme, em alguns casos pacificadas, que contam com a sinalização de fundos e recursos para viabilizar sua demarcação, mas não há interesse político em tocar o devido processo”, afirma.
O berço das águas
O Cerrado é a savana com maior biodiversidade do mundo. Apelidado de “berço das águas”, é fundamental para manter o equilíbrio hidrológico; abriga diversas nascentes e áreas de recarga que são importantes para a alimentação das bacias hidrográficas, entre as quais oito das doze principais do país têm suas nascentes localizadas no bioma. É lá também que estão três dos aquíferos do Brasil: Bambuí, Urucuia e Guarani, sendo este último o maior manancial de água doce subterrânea transfronteiriço do mundo, estendendo-se por quatro países: Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina.
O bioma é também a casa de uma grande diversidade de povos e comunidades tradicionais, e absolutamente todas essas pessoas cumprem, de forma muito natural, um papel extremamente importante na preservação desses territórios: são mulheres quebradeiras de babaçu, vazanteiros/as, geraizeiros/as, indígenas, extrativistas, comunidades de fundo e fecho de pasto, pescadores/as artesanais, pequenas famílias agricultoras, veredeiros/as, quilombolas e tantas outras. É nesse território que esses povos lutam por sua existência sem comprometer a continuidade da vida existente ali. É no Cerrado do norte de Minas Gerais que vivem as comunidades de Apanhadoras de Flores Sempre-Vivas, a primeira experiência no Brasil a receber o selo de reconhecimento de Sistemas Importantes do Patrimônio Agrícola Mundial (Sipam), concedido pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). O Muxirum – Sistema Agrícola da Baixada Pantaneira também está em processo de análise para receber o selo, tendo já concluído um dossiê técnico-científico, e de elaboração de um plano de conservação dinâmica. O nome da iniciativa diz respeito à prática quilombola da agricultura familiar em mutirão, com o cultivo da terra sendo feito coletivamente por todas as famílias das comunidades e plantando tipos diversos de alimento.
Com base na noção de bem-viver, todos esses povos inauguram um leque de possibilidades para a construção de projetos emancipatórios. Trata-se de processos que se produzem por meio de histórias de lutas, resistência e propostas de transformação; de uma ideia que se funda em experiências locais, mas também dialoga com contribuições provenientes de diversas outras regiões e cidades do mundo. Tudo isso configurando uma multiplicidade de sujeitos, experiências e projetos democráticos de construção de sociedades sustentáveis em contextos urbanos e rurais.
Para Dinamam, a atenção dada pelo mundo e pelo governo brasileiro à Amazônia faz que essas violências migrem para outros territórios sem nenhum tipo de constrangimento e se instalem em áreas próximas de onde vivem essas comunidades, quando não as expulsam, como uma espécie de efeito colateral. Ele cita o Matopiba como maior exemplo dessa migração. Criado pelo governo federal em 2015, ele estabeleceu uma delimitação de áreas de Cerrado que abrange partes dos estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, e tinha por objetivo a expansão da fronteira agrícola para produção e exportação de commodities do agronegócio. Sua área de implantação corresponde a cerca de 73 milhões de hectares distribuídos em 337 municípios. O número de conflitos agrários disparou nessas regiões após sua criação, com o Tocantins registrando aumento de 313% já em 2016, segundo dados levantados pela Comissão Pastoral da Terra.
E não é coincidência que essa instalação aconteça nesses territórios, pois é justamente onde estão os espaços mais preservados. De acordo com o Relatório Anual do Desmatamento (RAD 2022), produzido pela plataforma MapBiomas, o agronegócio respondeu por 95,7% do total da área desmatada no Brasil em 2022 – 32,1% desse total aconteceu no Cerrado. Foi também no Cerrado que se registrou o segundo maior aumento de áreas desmatadas de 2021 para 2022 – proporcionalmente, o maior de todos: um incremento de 31,2% (156.871 ha).
“A imagem racista – e falsa – de um Cerrado despovoado e desprovido de vida – aquela caricatura de um solo rachado, seco e infértil – ‘justifica’ a atuação violenta desses grandes fazendeiros, grileiros de terra, agentes do hidronegócio e da mineração contra os povos e comunidades tradicionais. Passa a ideia de que já se trata de uma terra morta e que, portanto, não há com o que se preocupar”, explica o advogado. Trata-se de uma narrativa que apaga a presença dos povos que vivem nesses territórios de maneira proposital para permitir sua exploração.
Um genocídio
Em novembro de 2019, a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado denunciou o Estado brasileiro junto ao Tribunal Permanente dos Povos (TPP). Na petição, a Campanha apontou que, se nada fosse feito para frear a devastação, o Cerrado seria extinto e, com ele, a base material da reprodução social de povos indígenas, comunidades quilombolas e tradicionais do território, como povos culturalmente diferenciados. Ou seja, seu genocídio. Foram denunciados quinze casos graves e bastante representativos da atuação, em especial do agronegócio, no bioma.
Um deles é um caso emblemático de grilagem de terras de comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto no oeste da Bahia por empresas nacionais e estrangeiras produtoras e comercializadoras de grãos e outras especializadas em compra e venda de terra. No entanto, além da grilagem, existe o uso predatório das águas por grandes fazendas e empresas do hidronegócio, o que compromete seu uso tradicional pelos povos da região. A Fazenda Igarashi, por exemplo, possui outorga do órgão ambiental da Bahia para a retirada de mais de 106 milhões de litros diários de água do Rio Arrojado, que já dá sinais de morte, segundo relatos das comunidades locais colhidos pela Associação dos/as Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais da Bahia (AATR).
Um estudo realizado pelo geógrafo Yuri Salmona e apresentado na COP 27, no Egito, concluiu que os rios do Cerrado perderam 15,4% da vazão de água por causa do desmatamento e das mudanças climáticas entre 1985 e 2022. Segundo ele, mais da metade dessa redução é motivada especialmente pela atuação do agronegócio, que muda a dinâmica do uso dos solos nos entornos dos rios, transformando as vegetações nativas em áreas para produção de commodities – pouco mais de dois quintos são resultado das mudanças climáticas no planeta. O Rio Arrojado, citado na denúncia da Campanha em Defesa do Cerrado ao TPP, já perdeu 18,2% da vazão, segundo a pesquisa, e esse número deve praticamente dobrar até 2050. Apenas no oeste baiano, o agronegócio capta 1,8 bilhão de litros de água por dia para irrigação de suas lavouras de soja, segundo reportagem da Agência Pública. Tudo outorgado pelo governo estadual baiano.
O RAD 2022 reforça que as comunidades quilombolas são hoje, ao lado das Terras Indígenas, os territórios mais preservados do país: apenas 0,05% da área total desmatada no Brasil em 2022 estava dentro dessas comunidades. E o maior número de comunidades quilombolas está no Nordeste, especialmente na Bahia e no Maranhão, como comprovou o Censo Demográfico 2022. Segundo os dados da pesquisa, apenas 12,6% dos quilombos existentes no país são reconhecidos e delimitados pelo governo brasileiro e somente 4,3% da população quilombola total reside em territórios com processo de regularização fundiária concluído e devidamente titulado.
Fran Paula, quilombola e educadora popular da Fase, destaca como o Censo mostra um retrato do acesso à terra no Brasil desde a colonização. “Os dados demonstram o que a gente vem pautando como racismo fundiário, que é essa concentração de terras no país desde 1500 que privou do acesso a territórios a população negra escravizada. A pesquisa traz dados muito importantes e que devem ser incorporados às discussões sobre reparação histórica. A luta pela vida nos quilombos não pode deixar de fora esse aspecto.”
Paz quilombola
O que Fran chama de racismo fundiário pode ser observado de maneira muito precisa no Centro-Oeste brasileiro, onde há grande concentração de terra nas mãos de grandes latifundiários, produtores de soja, pecuaristas e outros representantes do agronegócio, majoritariamente brancos. Os três estados da região mais o Distrito Federal figuram entre os cinco com maior concentração de terra em propriedade de estabelecimentos agropecuários que não praticam a agricultura familiar, com Mato Grosso do Sul novamente no topo do ranking: é o caso de 96% da área de todos os estabelecimentos agropecuários do estado, segundo o Censo Agropecuário 2017. Entre os donos dessas propriedades, aproximadamente 68% se autodeclaram brancos. Em números absolutos, Mato Grosso aparece no topo da lista: são mais de 49 milhões de hectares nas mãos de pessoas com um perfil sintomaticamente parecido: brancos (quase 63%) do agronegócio.
Fran faz uma reflexão com base no conceito de paz quilombola, de Beatriz Nascimento, para pensar sobre quais são os desafios de hoje para que essas comunidades consigam manter a paz dentro de seus territórios, com as pessoas vivendo da melhor forma e tendo acesso a direitos, inclusive aos seus territórios. Beatriz dizia que a instituição de quilombos no período escravagista foi um momento de liberdade, de organização política desse povo em um contexto contra-hegemônico, e que a existência daquelas comunidades era mais importante do que a própria guerra travada durante a economia escravagista. Essa paz quilombola, por sua vez, ameaçava mais o sistema escravocrata, racista e colonialista do que a própria guerra. E, como resposta do sistema a isso, as comunidades quilombolas eram ainda mais violentadas. Para Fran, o mesmo acontece nos dias atuais.
“Os territórios e seus povos dão muitas contribuições para o país em termos de manutenção de cultura, ancestralidade, a própria história, trabalho, manejo da biodiversidade, da agricultura e da preservação de biomas como o Cerrado. Isso demonstra quanto esses espaços estão preservados até hoje e que isso se dá porque tem gente ali, quilombolas cuidando, protegendo e convivendo com aquelas terras. O ataque a esses territórios e aos direitos desses povos está muito relacionado a isso. Por representarem uma ameaça para o modelo de desenvolvimento predatório vigente, essa paz é ameaçada constantemente pela ação do agronegócio sobre os territórios, mas também por meio da negação do acesso a bens comuns, à biodiversidade, do racismo institucional que distancia esses povos do acesso a creches, documentação, educação, alimentação e saúde”, afirma a quilombola.
A cada ano, vemos aumentar a intensidade dos eventos climáticos extremos, e a exploração predatória desses territórios é o principal fator agravante de seus impactos no mundo. Não restam dúvidas quanto a isso e muito menos acerca de quem são os principais responsáveis por essa devastação: o agronegócio, as grandes empresas multinacionais, a especulação imobiliária, as mineradoras, os complexos portuários que invadem territórios tradicionais pesqueiros, garimpeiros, grileiros, grandes fazendeiros e empresas exportadoras de commodities são agentes de um modelo de desenvolvimento que explora bens comuns da natureza de tal forma que coloca sob ameaça de extinção não apenas esses territórios, mas toda forma de vida e organização social como conhecemos hoje. A questão fundiária no Brasil tem como base esse modelo, que atende única e exclusivamente aos interesses do grande capital, em especial o estrangeiro, e sob as bênçãos do Estado.
Racismo ambiental
Dinamam faz uma provocação cirúrgica: “Não fossem os povos e as comunidades tradicionais que vivem nesses territórios, hoje já estaríamos falando em um aumento na média da temperatura do planeta muito maior do que 1,5 ºC”. Um paradoxo cruel, pois, embora as mudanças climáticas nos insiram em uma crise de escala planetária, seus efeitos não são sentidos da mesma maneira em todos os lugares nem da mesma maneira por todos os segmentos da população. Os piores e mais devastadores efeitos da crise climática – por exemplo, calor extremo, enchentes e quebras de safra – são sentidos de forma desproporcional por países e comunidades do Sul global e, neste, pelas populações mais vulnerabilizadas – uma consequência visceral das profundas desigualdades e do racismo ambiental que permeiam toda essa cadeia.
É preciso olhar para além da Amazônia. Ao mesmo tempo que esses outros territórios não são vistos como alternativa para o enfrentamento das mudanças climáticas, apesar de toda sua riqueza, são apresentados como áreas naturalmente degradadas, o que faz que sempre paire no ar, de maneira antecipada, um elemento dificultador para a elaboração de políticas públicas específicas para sua proteção e preservação e também de seus povos.
Não é possível enfrentar as mudanças climáticas sem entender e reconhecer a importância desses povos, garantindo seu direito constitucional de permanecer em seu território, tão carregado de ancestralidade, mas também de futuro. Garantir a demarcação de Terras Indígenas e a titulação de comunidades quilombolas e reconhecer o direito ao território, água e terra dessas e de tantas outras comunidades é crucial. É preciso pressionar o governo para a criação de uma política nacional de regularização fundiária que promova uma reparação histórica para povos historicamente marginalizados e seja embasada em um modelo de desenvolvimento sustentável, agroecológico e integrado a outros direitos, como educação, saúde e alimentação adequada e saudável. A garantia do território é também a garantia da vida dessas populações. Em contrapartida, são elas que vêm garantindo a vida desses mesmos territórios há tanto tempo. E a vida destes é fundamental para toda a humanidade. Os povos e as comunidades tradicionais são a continuidade da vida em suas mais variadas formas. Não há outro caminho.
Matéria do Le Monde Diplomatique Brasil, disponível aqui!
*analista de comunicação