15/09/2010 10:11
Aconteceu novamente no Espírito Santo um destes processos sociais em que a mudança real vem pelas mãos da população. Depois que a comunidade quilombola de São Domingos conseguiu reconquistar 13 hectares ocupados indevidamente pelos eucaliptos da Aracruz Celulose (hoje conhecida como Fíbria), agora foi a vez da comunidade de Angelim 1. Situando as informações: há dezenas de anos a Aracruz Celulose começou um processo de tomada violenta e chantagista de terras quilombolas e indígenas no norte do Espírito Santo, desalojando milhares e deixando os que ficaram em condições de vida bastante ruins. Quem ficou passou a viver cercado de uma extensíssima monocultura de eucalipto, vendo suas fontes de água secar e sua terra de cultivo diminuir. Até chegarmos aos dias de hoje, quando uma resistência social construída nos últimos anos vem retomando estes territórios tradicionais para reproduzir a vida de suas famílias, sua cultura e seu direito de projetar o futuro como quer.
Angelim 1 é uma das três comunidades quilombolas reconhecidas pelo governo federal (por via de certificado da Fundação Cultural Palmares) que desde o século 19 habitam a região do córrego de Angelim. Ela estava há décadas dividida em duas partes, porque o eucaliptal da Aracruz- Fíbria tomou parte de seu território, quase isolando as famílias umas das outras. Pois foi exatamente este pedaço de terra que, depois de alguns meses deixado sem manejo pela empresa após o último corte de árvores de eucalipto, foi retomado. A retomada conteceu por meio da organização de um ajuntamento, palavra que os quilombolas usam tradicionalmente para designar uma ação produtiva coletiva, um mutirão. O ajuntamento de Angelim 1 em fins de agosto conseguiu trazer de volta para a comunidade 35 hectares de terra legítima, onde depois de três semanas milhares de mudas de alimentos estão plantadas e crescendo.
João Batista Guimarães, quilombola de Angelim 1 e técnico da Fase Espírito Santo, relata que o primeiro plantio de alimentos foi vasto e grandioso. Mais de mil mudas de abacaxi, cerca de 800 pés de abóbora, bananeiras de três tipos (prata, nanica e da terra), muitos pés de milho, feijão de corda, coqueiros. Deu-se preferência, neste primeiro plantio, aos chamados “bens de raiz”, aqueles cuja planta permanece após a colheita e que são típicos do território. É o caso dos coqueiros e das bananeiras. Existe uma força simbólica e política no bem de raiz, porque por muitos anos as pequenas concessões de plantio feitas pela Aracruz-Fíbria aos quilombolas limitavam-se a gêneros alimentícios que não fossem bens de raiz. “Essa desobediência de entrar no território e plantar o bem de raiz é para mostrar que o espaço não é mais deles. O bem de raiz é um símbolo quilombola”, diz João.
Das 27 famílias que vivem na comunidade de Angelim 1 (cerca de 120 pessoas), quatro ou cinco devem ir habitar os novos 35 hectares. A idéia não é lotear o terreno, mas sim facilitar a reprodução da vida em condições tradicionais e com mais respeito à dignidade e ao meio ambiente. Afinal, como diz o quilombola João, “há famílias que sobrevivem cestas básicas, outras dependem do Bolsa Família para comprar alimentos, uma profunda decadência por falta de espaço para plantar”. Portanto, a prioridade é a produção de alimentos em bases saudáveis para consumo próprio. Nada mais justificável, visto que até mesmo uma missão do governo federal constatou em 2009 que os quilombolas do norte do Espírito Santo vivem em situação de insegurança alimentar.
A luta social quilombola no norte do Espírito Santo continua. As duas vitórias recentes não significam desmobilização. Muito mais do que espaço para plantar, trata-se de uma questão de identidade. Nas palavras do morador de Angelim 1, João Batista, “o avô do meu avô vivia nessa terra, o mangueirão que fica no centro da comunidade foi plantado pela minha tia, nossas árvores são nossa história. Queremos no futuro poder dizer que aquela árvore antiga fomos nós que plantamos”.