18/09/2013 17:00

Lívia Duarte* e Joana Barros**, da FASE

Nestes 11 e 12 de setembro, a FASE – a partir do Rio de Janeiro, Recife, Belém e Espírito Santo – se reuniu com parceiros destes mesmos territórios, além de pesquisadores – entre eles o sociólogo Francisco de Oliveira da USP, que acaba de ter artigos republicados pela FASE, para uma oficina de trabalho. A ideia era motivar novos modos de olhar o urbano, analisar a realidade . O convite para estes dois dias no Rio levou em conta diversos debates internos sobre as reconfigurações das cidades impostas pelo modelo de desenvolvimento implementado pelo governo para o Brasil e tinha entre seus objetivos, justamente, testar e refletir sobre algumas novas hipóteses.

Esta perspectiva orientou os trabalhos nestes dois dias. Evanildo Barbosa Silva, diretor da FASE, destacou que o esforço conjunto para criação de espaços de participação em políticas públicas, que agora começam a se consolidar, não tem apontado saídas para as desigualdades nas cidades, gerando o que chama de “crescente desconfiança”. Os protestos de junho, frutos também da chamada “crise urbana”, podem ser reflexo disto a que se referia Barbosa. Daí a FASE pensar sobre a própria prática de luta via ampliação dos espaços de interferência no Estado – orçamento participativo, conselhos, etc. E refletir também sobre descolamentos do ponto de vista da análise e da ação entre o modelo de cidades e o modelo de desenvolvimento econômico. “Durante muitos anos esta separação parecia nítida, óbvia, e correspondia a expectativa de enfrentamento dos problemas: das políticas urbanas por elas mesmas. Mas quando estas políticas começam a se constituir de forma mais organizada, com grandes investimentos, começamos a observar as contradições destas políticas, programas e projetos que não correspondem à expectativa de ir além da própria reprodução destas mesmas políticas”, comentou Barbosa.

Ao mesmo tempo, frisou o diretor da FASE, importantes agendas estão interpelando as organizações, convidando a ampliar leituras sistêmicas sobre o que passa nas cidades. Este fato se refletiu especialmente no segundo dia dos debates, quando representantes de diversos territórios trouxeram os resultados de suas ‘explorações’ sobre as reconfigurações em cada área. Ouvimos sobre impactos causados por investimentos advindos de várias fontes e em vários setores da economia e os resultados, sempre muito parecidos: expropriação, peda de direito ao território, modos de negociação do governo com as populações que levam a desarticulação dos movimentos de resistência, falta de transparência na medida em que políticas públicas passam a ser, na verdade, o lugar do crescimento dos negócios. Tudo isso apontando para a necessidade de refletir sobre as cidades a partir de escolhas maiores que as políticas urbanas – estas escolhas são o desenvolvimento, a ideia de como a economia deve crescer.

Amostras deste fenômeno não faltaram. Da Região Metropolitana de Recife, um grande exemplo de como investimentos – neste caso, as obras para a Copa de 2014 e especialmente o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e investimentos privados no Complexo Indutrial de Suape – não relacionados ao que classicamente relacionamos às cidades, modificam todo um tecido urbano: aumenta a concentração de renda e terra, impactando não apenas os dois municípios em que está instalado, mas a região metropolitana como um todo. Além de transtornos no trânsito, estrangulamento da saúde e saneamento, antes já deficitários, aparecem otras denúncias.

Nivete Azevedo, do Centro das Mulheres do Cabo, organização feminista que atua na região, explica que a explosão demográfica é basicamente masculina – eles são a esmagadora maioria entre 30 mil trabalhadores – e é possível notar que as mulheres se sentem cada vez mais inseguras. Segundo a ativista, crescem as denúncias de abusos moral e sexual dentro e fora das obras do complexo industrial. Também é visível o aumento da exploração sexual – inclusive de crianças – na região. Nivete contou que pesquisas da UFPE mostraram crescimento significativo de adolescentes e jovens grávidas, o que também prognostica dificuldades de longo prazo. Contra este fato, os danos socioambientais, as expropriações do território, a perda de postos de trabalho por profissionais como pescadores, pessoas e entidades da região fudaram o Fórum Suape Espaço Socioambiental, prova de que os conflitos também se revertem em resistência.

Outros exemplos vieram do Espírito Santo, onde crescem os conflitos envolvendo a indústria do petroleo – com expulsão de territórios em terra e no mar – e sem muito debate sobre os impactos da indústria petroleira nem sobre as áreas próximas, nemsobre toda a sociedade visto que esta é a reprodução de um modelo considerado, em todo o mundo, como insustentável. De Belém, chegam notícias sobre impactos causados pela macrodragagem de grandes áreas, como na região conhecida como Estrada Nova, que ameaça, por exemplo, o trabalho de quem vende mercadorias nos movimentados portos que ligam o continente com as dezenas de ilhas que formam a capital paraense. No Rio de Janeiro, toda a região metropolitana é impactada por múltiplos investimentos. A especulação imobiliária está entre os principais efeitos dos investimentos mais famosos, a Copa e a Olimpíada, que geram expulsão de muitas famílias em diversas regiões, como a portuária. Mas estes são apenas “a cereja do bolo” de um grande processo de remodelação do território, já que investimento em petróleo, siderurgia e mineração são ainda mais vultosos.

Novos mapas

E como identificar que o investimento em dutos de petróleo no mar – para ficar num exemplo símbolo do nosso modelo de desenvolvimento – impactam a vida nas cidades? Colocar novos sujeitos e dinâmicas no mapa, colaborar para que eles e elas mesmas se tornem mais visíveis, e mais potentes. Tornar certa técnica – neste caso, cartografar – em instrumento de luta e reivindicação. Pode ser uma tentativa muito simplista, mas também o início da explicação sobre o que é o projeto Nova Cartografia Social, uma das inspirações deste novo processo de reflexão aberto pela Fase. Dois pesquisadores desta área, Henri Ascelrad (IPPUR/UFRJ) e Jurandir Novaes (UFPA), participaram da oficina, esclarecendo e problematizando o uso destas ferramentas.

Durante o debate, Jurandir Novaes destacou que o projeto não está preocupado a priori com a incidência política que vai gerar. Contudo, a apropriação dos processos pelos grupos que fazem suas cartografias já gerou resultados políticos e ganhos sociais. Entre aqueles desdobramentos positivos por ela enumerados está o reconhecimento de idiomas por lei do município de São Gabriel da Cachoeira (AM) e a Lei do Babaçu Livre, que permite livre-acesso a babaçuais pelas populações tradicionais que vivem do manejo da planta em municípios do Pará e Maranhão – que mostra princípios de inovação e gênero, por exemplo. Ela destacou também que os mapas são um caminho pelo qual certos grupos podem passar a se reunir e se organizar, mas depende de cada coletivo e situação.

Para Ascelrad, realizar uma leitura global dos processos é um desafio na Cartografia Social, mas, ao mesmo tempo, a identificação de sujeitos que se confrontam diretamente com o capital nos territórios, nos pontos mesmo onde se dá a reprodução do capital via expropriação, pode ter duplo efeito: são estes os sujeitos que seriam capazes de criar barreiras para expansão do capital e de apontar para a transição do modelo a partir de sua autoafirmação. “Este tipo de sujeito é aquele que coloca a questão do desenvolvimento, a promessa do desenvolvimentismo, em debate. Questionam: ‘do que vale? Nós estamos aqui, pretendemos ser um obstáculo e não acreditamos na promessa que nos foi feita’. Estes sujeitos têm um papel estratégico na organização deste debate.”

Convergências ?

O último espaço de debates da oficina, chamado “Novos sujeitos, movimentos sociais e conflitos urbanos: uma agenda de convergências?” pareceu responder, para o momento, negativamente a questão do título. Para Iara Amora, da Casa da Mulher Trabalhadora (Camtra), as manifestações das “Jornada de Junho” ainda não acabaram e é preciso aprender a dialogar com a juventude – oportunidade que parece estar se perdendo, na opinião da jovem feminista. Ela ponderou ainda sobre o que seriam e onde estariam pautas específicas quando o tema é pensar convergência. Exemplificou que no debate sobre o preço dos transportes não se destacam questões que impactam especificamente as mulheres, como é a questão da segurança. “É difícil construir agendas convergentes se não nos sentimos incluídas”, pontua.

“Estimulante, mas complicado”, foi uma das primeiras considerações de Jorge Saavedra Durão, da FASE, sobre o debate de pautas convergentes. Na atualidade, assinalou, até conceitos básicos como o que são as classes na sociedade brasileira não tem uma adoção única. Na opinião dele, há tantas contradições que buscar convergências pode não ser a prioridade. “Acho que o desafio que se coloca é a criação de nitidez política: fazer com que os campos políticos em disputa, as expressões políticas das diferenças, emerjam”, afirmou, considerando ainda que é preciso ponderar se a adesão às diversas pautas – direito à moradia, saúde, saneamento, etc, tem levado a algum questionamento sobre a acumulação capitalista. Na opinião dele, “ainda estamos a anos-luz disso”.

Mas porquê? Marco Antônio Perruso (UFRRJ), procurou refletir sobre a história da representação das classes populares do Brasil. Descreveu os 90 e o neoliberalismo como o tempo de erosão da “cultura de direitos” surgida com a ascensão de movimentos sociais nas décadas anteriores. Acrescentou ainda que esta erosão persistiu nos anos de governo do PT numa nova clivagem. Na opinião do sociólogo, “o discurso do desenvolvimento citado aqui em todos os níveis vira justificativa para esta erosão. Nos anos neoliberais a justificativa era outra, era o mercado”. Identificou ainda que o discurso do desenvolvimento é somado ao de políticas públicas, como se estas pudessem ser reparação às mazelas daquele. “Se fizermos a leitura de quanto mais capitalismo, mais atraso, como faz o Chico de Oliveira, o discurso de desenvolvimento começa já desestruturado. Porque ele vai significar mais chaga social, não pode ser positivado a princípio”.

Definiu ainda que há uma hegemonia na política dos setores que acreditam na centralidade do estado para colocar-se “contra” a ideia de convergências possíveis: “Ao contrário da análise do Cunca, acho que a institucionalidade, as políticas públicas, estão numa perspectiva contrária as dos movimentos sociais. Para entender o que está em jogo na sociedade brasileira hoje não é possível tentar reequilibrar institucionalidade e movimentos sociais. Devemos colocar estes como polos em oposição”. Ao contrário de sugerir que fóruns, conselhos e conferências sejam logo abandonados, o que Perruso sugeriu foi um novo olhar sobre a realidade: percebendo as políticas públicas como vetores de descontrução da organização popular.

Nós e o Estado

Assim, encontramos resistências ao modelo, inclusive sendo mapeadas, como mostrou a experiência da cartografia social. No entanto, ainda permaneceu a dúvida sobre nosso modo de lidar com o maior indutor no modo de desenvolver vigente: o Estado. E aluta pela via da ampliação dos espaços de participação do Estado, quase uma tradição nos movimentos sociais e organizações depois a redemocratização, esteve entre as maiores divergências no encontro – e entre os temas que merecem mais reflexão adiante. O tema esteve especialmente latente na mesa que reuniu os pesquisadores Francisco de Oliveira (USP) e Pedro Cláudio Cunca Bocayuva (UFRJ). O pesquisador carioca, que em certo momento se definiu como ‘reformista radical’, descreveu a cidade brasileira como lugar expandido para o bem do capital, o que aumenta os custos de transporte e serviço, quebra a solidariedade e gera certa cartografia de resistência. Para ele, as ‘jornadas de junho’ – séries de manifestações de massa que começaram naquele mês – de forma juvenil e fragmentada apresentou ‘o fim da unanimidade’, o fim da sensação de concordância, o que ele avaliou como estremamente positivo. Diante da análise do contexto brasileiro e internacional, resumiu as medidas a seguir: “temos que retomar a agenda da radicalização democrática nas cidades. No corpo da juventude, na centralidade da periferia, a partir das plataformas de programas e políticas públicas.”

Já Chico de Oliveira, começou sua fala diferenciando o capitalismo original – aquele nascido na Inglaterra e descrito por Marx – do capitalismo no Brasil, que ele chamou “periférico”. Explicou que “caráter fáustico”, de invenção, que Marx descreveu no primeiro tipo, o fato da invenção do capitalismo trazer consigo uma carga civilizatória que liberta o homem moderno das obrigações tipicamente feudais, não podia – inclusive porque não houve feudalismo nas colônias – estar presente em sua “cópia colonial”. Esta, diz o professor, “já nasce como produtora de escravidão e isso faz toda a diferença”. Assim, afiança, “[a crítica da esqueda] não pode mais repousar na ausência: pro Brasil falta isso, aquilo, aquilo outro. Ari Barroso diria melhor que eu: “tudo isso é capitalismo”. A crítica da esquerda precisa enfatizar mais que não adianta as reformas neste tecido social. Nenhum alfaiate do concenso se meteria a recosturar este tecido”. E completou: “Isso é a quinta economia mundial. Não há do que se queixar. A tarefa de quem está nesta sala, de quem está na universidade, é inverter o papel do colonizador”.

Diante disso, sem receitas para o futuro, o Chico de Oliveira apontou que mudar a realidade requer começar por um novo olhar, especialmente nas cidades – que abriga a maioria da população e de onde saem as decisões sobre o país: “É melhor entender bem a sua própria sociedade para poder ‘dar o bote’ na hora certa. É a minha posição, mas não recomendo pra ninguém. A esquerda deve revirarse sobre si e propor um novo programa, o que não é abandonar os velhos, isso seria reformismo barato. É entender a nova realidade e atuar sobre ela com seus velhos conhecimentos. É entender com radicalidade o que é o Brasil hoje. A gente pensa o Brasil de hoje com os instrumentos da década de 30 , não é mais um país agrícola, é urbano e de serviços. A fala revolucionária não pode ser mais aquela, não será recebida. Ou a esquerda entende, compreende, o que é o urbano no capitalismo moderno ou não vai dar certo porque todos estarão surdos a sua fala, não diz mais nada a respeito da realidade.”

*jornalista
** Assessora do Programa Nacional de Direito à Cidade