11/05/2012 11:15
Gustavo Cunha, da FASE.
No dia 17 de abril, em Brasília, Dilma Rousseff acolheu o nome de Maria Emilia Lisboa Pacheco para a presidência do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) no biênio 2012-2013. Desde 2004, a antropóloga e assessora do Programa Direito à Segurança Alimentar, Agroecologia e Economia Solidária da FASE participa como conselheira, representado o Fórum Brasileiro de Soberania, Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN).
Instrumento de articulação entre governo e sociedade civil na proposição de diretrizes para ações na área de alimentação e nutrição, o Consea tem como patrono o emblemático autor de Geografia da Fome, Josué de Castro. Reativado em 2003 pelo então presidente Lula, o Conselho acompanha e propõe diferentes programas, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), na perspectiva intersetorial da Segurança Alimentar e Nutricional.
Falar em Soberania Alimentar significa falar dos direitos dos povos em terem condições de decidir que alimentos vão produzir e consumir. “É por isso que nós do Consea, ao mesmo tempo em que defendemos políticas públicas que garantam o acesso ao alimento – com base em produções agroecológicas e no consumo de uma alimentação adequada e saudável, diversificada, que resguarda a cultura alimentar, sem contaminantes –, reafirmamos a importância fundamental da ação de regulação do Estado sobre as empresas. O mercado não deve – e não pode – regular o direito humano à alimentação”, explicou. “Se perdermos o controle sobre a nossa comida, como construiremos um país sem fome, sem miséria e com uma alimentação adequada e saudável? O princípio da soberania alimentar é fundamental, e precisamos aprofundá-lo no debate das políticas no Consea”, acrescentou.
Formada em Serviço Social, a mineira de Leopoldina é muito orgulhosa de sua trajetória de mais de 30 anos de trabalho na FASE. Maria Emília chegou ao Rio de Janeiro em 1974 para ingressar no mestrado em Antropologia Social, na UFRJ. Quatro anos mais tarde, entrava também para a FASE, onde iria tecer a longa trajetória política em interação com movimentos sociais, especialmente os do campo, que lutam por reforma agrária, direitos territoriais, vida digna e produção de alimentos saudáveis. A antropóloga é bastante serena ao mensurar a responsabilidade que assume: “Há muita expectativa sobre o papel do Consea nesses novos tempos, que – apesar de trazerem algumas conquistas – carregam, do mesmo modo, riscos de retrocesso ou bloqueios em relação a muitas políticas”.
Diante dos desafios que tem à frente, Maria Emília faz uma boa reflexão sobre a importância política do Consea na construção de realidades justas, menos desiguais – e sobre como sua trajetória pode contribuir neste momento. Veja abaixo os principais trechos da entrevista.
Você acaba de assumir a presidência do Consea, mas participa como conselheira desde 2004. Qual a avaliação que você faz desse período?
O Consea é um espaço político muito importante, com uma representação ampla, tal como é o próprio conceito de Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil. Participam do Conselho vários movimentos sociais e diferentes segmentos da sociedade. Nessa gestão que se inicia, temos algumas inovações. Passamos a ter representações de consumidores e de pessoas com necessidades especiais, o que inclui celíacos e diabéticos. Tivemos, igualmente, um aumento da representação dos povos indígenas.
Faço uma avaliação muito positiva desse período em que participo no Conselho. A meu ver, o Consea tem, de fato, um papel bastante importante, porque ele é um lugar de monitoramento da política e de exercício da crítica. São debatidos temas candentes, como o impacto da expansão das monoculturas para produção de agrocombustível na produção descentralizada de alimentos, e os riscos da privatização da água – além também do papel do governo brasileiro nas negociações internacionais sobre questões relativas à segurança alimentar e nutricional. Por exemplo, defendemos que as ações e políticas públicas de segurança alimentar e nutricional, assim como os alimentos estratégicos ligados ao fortalecimento da agricultura familiar, sejam excluídas das negociações econômico-comerciais. Portanto, ao mesmo tempo em que monitoramos vários programas – como o Bolsa Família, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) –, não dissociamos a função de manter – de forma recorrente – uma análise crítica das macropolíticas, com a apresentação de novas propostas.
Sim, porque o Consea também é o lugar de elaboração de propostas. O PAA nasceu no Conselho. A lei atual de alimentação escolar também foi debatida no Consea. As propostas que hoje integram a política de segurança alimentar e nutricional, apoiadas nas diretrizes deliberadas nas Conferências Nacionais, também foram objeto de debate no Consea. Portanto, existem muitas iniciativas. E é por isso que eu faço uma avaliação positiva.
Porém, outra coisa é saber os resultados e a influência nas ações políticas. O exemplo dos programas que consideramos estruturantes [PAA e PNAE] representa uma importante conquista. Por outro lado, para nós, não há soberania e segurança alimentar sem a reforma agrária e sem a garantia dos direitos territoriais dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. E, no entanto, continuamos com um processo de concentração de terras e conflitos agudos no campo. Agora, nesses dias, morreram novamente lideranças camponesas do Maranhão. Em relação à garantia dos direitos territoriais dos povos indígenas e populações tradicionais, constatamos também que não temos conquistas. Pelo contrário, temos riscos e ameaças, como eu exemplifiquei em meu discurso de posse.
Gostaria de saber como se sentiu ao assumir a presidência do Consea depois de mais de 30 anos de trabalho em consonância com movimentos sociais, especialmente os do campo, que lutam por vida digna e produção de alimentos saudáveis.
Isso é muito positivo. Na verdade, isso eu divido com a FASE. A minha história profissional é sobretudo aqui na FASE, uma vez que eu cheguei ao Rio em 1974, para fazer o mestrado de Antropologia, e entrei para a FASE em 1978. Antes disso, eu trabalhei apenas em um lugar, que foi o Programa de Estudos Sócio-Econômicos em Saúde – um convênio da Fiocruz com a FINEP. Portanto, a minha vida profissional é fundamentalmente aqui na FASE. E a história da FASE é a história dos compromissos com os movimentos sociais. Saber que a trajetória e o papel da FASE têm esse reconhecimento me deixa muito lisonjeada.
Fiquei muito satisfeita e feliz, ao mesmo tempo sentindo que há um desafio e uma responsabilidade política muito grande. Há muita expectativa sobre o papel do Consea nesses novos tempos, que – apesar de trazerem algumas conquistas – carregam, do mesmo modo, riscos iminentes de retrocesso e de bloqueios em relação a muitas políticas. Isso porque não há alguma indicação de mudança mais profunda do modelo de desenvolvimento no país. Mas saber que a gente pode atuar sobre as contradições, entendendo a natureza dos conflitos à luz dos princípios do Direito Humano à Alimentação, à Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional , é bastante importante.
O que dizer sobre o Fórum Brasileiro de Soberania, Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), que fez a sua indicação?
Em primeiro lugar, é uma honra ter sido indicada pelo FBSSAN. Seu papel na construção histórica da plataforma de segurança alimentar e nutricional no país é amplamente reconhecido, tanto no aprofundamento de conceitos quanto na formulação de propostas políticas. Devemos também lembrar o destacado valor na criação de sinergias e convergências com outros fóruns e articulações – como é o exemplo do campo agroecológico e da economia solidária. Ao mesmo tempo, tem influências nas ações tomadas pelo Consea desde a sua recriação. Assim foi no processo de mobilização social e aprofundamento da proposta do projeto de lei sobre a Alimentação Escolar – hoje realidade –, articulando-se com a Frente Parlamentar pela Segurança Alimentar e Nutricional. Para a atual gestão,além de defender a continuidade do debate sobre direitos territoriais e reforma agrária, o FBSSAN traz novas sugestões de pauta: acha, por exemplo, importante a questão referente à regulação dos alimentos – em relação à vigilância sanitária, à publicidade e à rotulagem – e à educação alimentar e nutricional no enfrentamento do sobrepeso e da obesidade.
E o que a sua trajetória político-profissional pode representar para o Conselho? Pode trazer mudanças?
Acho que precisamos inovar um pouco na maneira de se realizar os debates. Por exemplo, seguramente, teremos uma participação mais ativa dos movimentos sociais quando, em algumas plenárias, realizarmos análises de casos concretos na implementação de políticas de segurança alimentar e nutricional. Precisamos valorizar as experiências que existem no país, de maneira a conhecer conquistas, entraves e desafios. O FBSSAN possui essa visão metodológica. Isso é estimulador para o debate e para o intercâmbio de idéias e práticas.Também estamos pensando em realizar mesas de controvérsia em relação a temas polêmicos, como é o exemplo dos transgênicos.
Hoje a alimentação adequada e saudável é um Direito Social consagrado no artigo 6º da Constituição. Apesar disso, infelizmente muitos ainda passam fome ou sofrem com outras formas de insegurança alimentar. Em sua opinião, quais os principais problemas que levam a essa situação?
Temos, na verdade, vários problemas, que se combinam desde a produção do alimento até o consumo. Do ponto de vista do acesso ao alimento, o Brasil já superou muitos bloqueios. Podemos dizer que uma parte considerável da sociedade tem o acesso garantido ao alimento – e aqui devemos lembrar da importância do Programa Bolsa Família. Mas há segmentos em que o índice de desnutrição é a prevalência, como é o caso dos povos indígenas e da população negra. Portanto, é um fato: ainda temos manifestação de desnutrição no país. Mais recentemente, o que ficou mais complexo é que a desnutrição está associada ao excesso de peso e à obesidade.
A obesidade já é mesmo considerada um problema de saúde pública. As últimas estatísticas dão um total de 14 por cento da população como obesa. Isso significa que a alimentação a que tem direito as pessoas não é adequada e saudável. Algo aí está fora do lugar. Temos ainda algum problema de acesso – e de distribuição – dos alimentos. E, em virtude das mudanças que ocorreram no padrão de produção e consumo, temos também uma dieta mais padronizada e homogeneizada, muito associada ao processo de ‘artificialização’ da agricultura e dos caminhos da indústria do alimento.
O sistema agroalimentar no mundo mudou muito – e o Brasil também espelha essa mudança. Temos verdadeiros impérios alimentares, com a concentração das grandes corporações da produção ao consumo. O consumo de alimentos ultraprocessados provoca grandes impactos, pois está na contramão da alimentação saudável. Os componentes químicos desse tipo de alimento e a quantidade de sal são perversos. É por isso que, nós dos Consea, ao mesmo tempo em que defendemos políticas públicas que garantam o acesso ao alimento, achamos também que precisa existir uma ação de regulação do Estado sobre as empresas. O mercado não deve – e não pode – regular o direito humano à alimentação. O controle da publicidade de alimentos e da qualidade desse alimento ultraprocessado é uma necessidade. Por outro lado, do ponto de vista da produção, esses alimentos também têm um problema sério pela contaminação por agrotóxicos e transgênicos. O nível de contaminação é muito alto.
Foi um avanço inegável termos incluído no artigo 6o o Direito Humano à Alimentação. Mesmo assim, ainda há um grande caminho a percorrer para a efetividade desse direito. O conceito de alimentação saudável e adequada é muito amplo, pois fala não apenas do acesso, mas também do respeito à cultura alimentar, à diversificação, aos critérios de gosto e de qualidade, sem contaminação por agrotóxicos e transgênicos. Pensado desse ponto de vista, nós não temos aplicado esse conceito hoje.
E que papel o Consea pode exercer na alteraração desse quadro?
Como disse, nós temos um papel de monitoramento das políticas, de inovação de propostas e de controle social. É o exercício dessas funções que pode incidir nesse quadro. Neste momento, consideramos muito importante uma interação do Consea com as campanhas existentes, como a Campanha Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, a Campanha Contra os Transgênicos e a Frente pela Regulação da Publicidade de Alimentos. Essa interação do Consea com a mobilização da sociedade, por um lado, é muito importante. Por outro lado, sendo um conselho de monitoramento social – e um lugar de concentração de governo e sociedade – é preciso que a gente veja, do mesmo modo, como dialogar claramente com o Executivo, com o Judiciário e com o Legislativo. No Legislativo, existe a Frente Parlamentar pela Segurança Alimentar e Nutricional, que é muito atuante. Precisamos estreitar uma interação com essa Frente – inclusive porque também, neste momento, existem parlamentares que denunciam os impactos dos agrotóxicos na saúde humana e no meio ambiente, apresentando propostas de redução do seu uso. Mas o cenário aponta para o risco de termos uma flexibilização ainda maior da legislação sobre agrotóxicos. Isso é cruel.
Mas eu queria também acrescentar o seguinte: para a alimentação adequada e saudável é fundamental a diversificação da produção. Por isso, em nossa plataforma demos uma atenção muito especial ao debate atual da Política Nacional de Agroecologia. Sistemas agroecológicos são sistemas diversificados. Uma política de agroecologia que inclua o aperfeiçoamento de alguns Programas que já existem – como o PAA e o PNAE –, ou o ajuste de outros em consonância com a perspectiva agroecológica, é um caminho do qual nós apostamos. Precisamos construir um programa nacional de conservação, manejo e uso da biodiversidade que garanta o financiamento para bancos e casas de sementes comunitárias e familiares – de forma a afirmar a autonomia dos camponeses e camponesas em relação ao patrimônio genético.
Em termos de conquistas recentes no campo da segurança alimentar, além de seu reconhecimento na Constituição, podemos lembrar políticas consideradas estruturantes, como o PNAE e o PAA. Como o Consea pode ajudar a tornar efetivas essas políticas?
Esses programas são objetos de monitoramento e frutos de debate do Consea. Continuamos a acompanhá-los, vigilantes para que não haja nenhum retrocesso. Neste momento, tanto o PAA quanto o PNAE, são objetos de regulamentação. Além de reuniões em plenárias e comissões, o Consea possui representação nos próprios grupos acompanhados por tal ou tal Programa. Portanto, existem grupos consultivos do PNAE e do PAA, por exemplo. Isso permite que o Conselho acompanhe de perto o detalhamento desses Programas na sua regulamentação. O debate hoje sobre as diferentes metodologias para estabelecimeto de preços para a aquisição de produtos através do PAA e do PNAE, por exemplo, tem sido matéria de muita polêmica e insatisfação dos agricultores. Ainda no plano da execução de programas, há questionamentos sobre a exigência da Declaração de Aptidão (DAP) ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF). São condicionalidades que precisam ser superadas.
É por isso que os grupos consultivos são importantes, porque é lá que são discutidos os instrumentos normativos – de regulamentação ou de resoluções. Cada Programa tem um chamado “grupo gestor”, constituído por representantes do governo, e “grupos consultivos”, nos quais a sociedade se representa e participa. São vários âmbitos de participação, que vão desde os grupos consultivos à Conferência Nacional – instância máxima das grandes deliberações e do estabelecimento das diretrizes.
A carta política da última Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional reconheceu o papel estratégico das mulheres na luta pela garantia da soberania alimentar, na conservação e no manejo sustentável dos recursos naturais. Gostaria que falasse um pouco dos desafios em relação às mulheres e segurança alimentar. Pois além de ser a primeira mulher a assumir a presidência do Consea, é também envolvida nas lutas feministas.
Até recentemente, nós não tínhamos, no Consea, nenhuma instância específica em que traduzíssemos o compromisso com as mulheres. Mas, agora, temos constituído um grupo de trabalho sobre relações de gênero, direito humano à alimentação e segurança alimentar. O que vemos é o seguinte: mesmo com uma participação bastante significativa em programas estruturantes, como o PAA, – e mesmo estando muito mobilizadas –, ainda persiste uma forte discriminação das mulheres. Se analisamos o acesso à Declaração de Aptidão (DAP) no seu formato e na maneira como funciona, observamos que não há uma correspondência aos interesses das mulheres. Isso porque ela é uma declaração por família – e a luta pelas mulheres, atualmente, é pela autonomia econômica.
Hoje, as mulheres querem o direito de ter um instrumento que as individualize – não só como um sujeito de ação política, mas também como um sujeito econômico. Quando eu digo que algumas reivindicações foram atendidas, é porque já há em relação a alguns programas uma prioridade – como no caso do Bolsa Família, por exemplo – para que as mulheres sejam reconhecidas.
Ao mesmo tempo, há um programa no Ministério de Desenvolvimento Agrário de apoio à organização produtiva das mulheres, o que tem sido uma iniciativa importante. Mesmo assim, as mulheres ainda lutam para o aprimoramento dessa proposta.
Existe ainda um longo percurso a fazer. O acesso ao crédito, por exemplo, ainda é muito pequeno para as mulheres. Existe, sobretudo, uma grande questão em relação ao próprio significado da categoria “trabalho” – e sobre o que é a economia do ponto de vista feminista. Ainda é predominante uma visão que separa o trabalho produtivo e reprodutivo. As mulheres têm uma luta bastante grande para que seja entendido o sentido econômico do seu trabalho, mesmo que ele não esteja imediatamente associado à renda, no sentido estrito – como, por exemplo, todo o trabalho de cuidado, e também o trabalho de manejo, que assumem nos chamados quintais produtivos. E em uma sociedade capitalista o próprio autoconsumo deixa de ser visto pelo seu significado econômico. No Brasil, em muitos casos, o que é produzido e consumido por essas famílias – do ponto de vista do autoconsumo – têm um significado econômico bastante grande. É preciso que haja, portanto, esse reconhecimento.
No Consea, vamos seguramente continuar a examinar as políticas e a situação das mulheres, entendendo como se traduz – concretamente – a situação de insegurança alimentar. Se o índice de segurança alimentar dos indígenas já é grave, o das mulheres indígenas é mais grave ainda. Essa análise e o monitoramento das políticas, do ponto de vista do atendimento das mulheres nos vários programas, é um desafio para nós.