04/11/2011 10:26
A ideia é que eu fizesse uma síntese das perspectivas para o futuro. Mas para falar sobre o futuro vou me remeter primeiro ao passado. Pareceu-me que logo no primeiro dia ficou claro que a FASE no futuro precisa “herdar uma herança”. Porque o futuro se constrói numa história, que reafirma valores, fala de permanências, entre elas a nossa militância. Aqui ouvimos que todos vivemos um aprendizado político: há um jeito FASE de fazer na relação com os movimentos sociais, há uma capilaridade da ação FASE na relação com os movimentos. E por isso “herdar esta herança” significa herdar uma tradição militante que se renova. E esse é ao mesmo tempo um enigma e um desafio para a FASE, porque em novas conjunturas, novo contexto da história, seguimos com a origem combativa, trabalhando pela cidadania e democracia, com liberdade para pensar, com liberdade para debater, com a capacidade de conviver com divergências internas e com um aprendizado permanente de entender as contradições e mediações.
Também ouvimos que há uma herança que fica, que deve ser preservada, que hoje é chamada de “singularidades”. Isso significa que a FASE deve seguir atuando em várias realidades, lidando com a diversidade. A FASE abriu picadas, mas também continua abrindo caminhos e atuando com os novos sujeitos que entram em cena. Esta capacidade de perceber novos campos de conflito e de luta, de contribuir na construção dos sujeitos coletivos que fazem a história, permanece como desafio. Entre eles foi destacado várias vezes a centralidade da juventude, o trabalho com as mulheres, com comunidades tradicionais, e aqueles com quem nos mantemos fiéis, ou seja, os movimentos históricos, ligados a sindicatos, associações, etc.
Aqui falamos ainda sobre método de trabalho. E em atuar na renovação da política. De uma conquista da FASE que precisa ser sempre atualizada e repetida, que foi a leitura política da FASE sobre meio ambiente, não como questão tática, mas como questão estratégica. Como questão que requalifica o social, como disse o Cândido, pensá-lo como campo de disputa, de relações de poder, pensá-lo sobretudo naquilo que ele produz e está intimamente relacionado, que é a base material da sociedade. Também falamos sobre nosso método de continuar firmemente ativos no sentido de radicalizar direitos construindo sujeitos de direitos. E também no avanço da construção da democracia e ainda, a FASE que participou da criação de tantas redes, continua com o desafio de mantê-las. Participar destes espaços nucleadores que nos relacionam com os movimentos e que também contribuem na cultura de rede para identificar elementos e pontos comuns de luta.
Outro aspecto diz respeito à relação com o Estado, e são várias questões. Uma delas é a recomendação de que a FASE continue atuando no campo das ONGs para conseguirmos aprofundar essa relação, o entendimento do papel das ONGs na construção da sociedade e em sua relação com o Estado. Falaram inclusive que há pouco conhecimento do Estado em relação às ONGs e que a crise das ONGs trás consigo também uma crise de desmobilização social. Por isso, também entendi que estamos reafirmando com a Abong a necessidade de mantermos ativa a luta por acesso republicano dos fundos públicos, identificarmos novas formas de solidariedade internacional e buscarmos também apoio na própria sociedade. Mas também com relação o Estado vimos expressadas aqui várias visões sobre a construção de espaços públicos que se fazem ativos nos últimos tempos da construção da nossa história. Não houve tempo de aprofundar e me pareceu que há visões distintas. É um desafio para a FASE continuar aprofundando o que representam os conselhos, as conferências, na história recente do nosso país.
O contexto sobre o qual nos debruçamos para falar de utopias, de horizontes, não vou sintetizá-lo. Mas é um contexto que nos mostra a necessidade de entender os bloqueios profundos, de ter liberdade de debater, de entender os limites da esfera pública, fragmentação dos movimentos, impactos dos grandes projetos, etc. Foi um contexto que em muitos momentos nos mostrou que há mais bloqueios e ameaças que avanços, embora estes também tenham sido expressados. Mas entendi que estamos em um tempo de dúvidas e incertezas, mas também é um momento em que se apresentam sinais novos de reflexão e de utopias.
No plano internacional o contexto da crise global e da interseção de várias crises – alimentar, climática, energética, etc – nos trás também algumas oportunidades e desafios, que exemplifico da seguinte maneira: a necessidade de manter a discussão do papel do Estado, compreender os conteúdos das lutas do plano internacional e os significados das novas formas de mobilização e articulação, compreender também o papel internacional que o Brasil desempenha hoje neste novo contexto, compreender o caminho que se faz do local para o global e nos colocar em permanência o desafio de construir e renovar alianças e manter a inserção no plano internacional.
Também vimos aqui, neste plano de macrodesafios, a necessidade de investir para mudar o que Henri Acselrad chamou de “clima moral do debate”. E subordinar a produção de ideias a certos valores. Isso significa a socialização da política, tratar essa mudança do ponto de vista da política no campo cognitivo, mas também como acentuou nosso colega Evanildo no campo das práticas, no campo das nossas experiências. Significa qualificar o debate sobre o modelo de desenvolvimento, sobre projeto de sociedade, que na percepção do Henri e entendi que muitos concordaram, é um debate aprisionado pelo mercado. É preciso trabalhar então neste debate o entendimento sobre a multiplicidade dos sujeitos, fazer uma crítica da visão etnocêntrica da ciência, mas também da visão etnocêntrica da própria sociedade que não consegue perceber essas diferenças. E aqui acrescento que uma das novidades no nosso país recentemente é perceber que os movimentos indígenas e as populações tradicionais estão valorizando a visão do etnodesenvolvimento. Se estamos buscando conceitos, eles existem e estão operando para muitas dessas populações. Precisamos dialogar com elas.
Façamos também o que o Henri nos disse: entender a ecologia dos saberes junto com a ecologia dos poderes. E dialogar com esses vários sentidos, várias percepções. Isso significa continuarmos participando de um movimento reflexivo sobre as próprias incertezas no campo da ciência e da sociedade. Isso que tem sido tão difícil porque é recorrente sermos chamados de trogloditas ou algo parecido quando nos opomos a certos campos que são considerados campos da especialidade, como da biotecnologia, das novas tecnologias. Nós precisamos enfrentar esse debate, tratar da sociologia da ciência, da ética na ciência, que aliás este ano é tema do congresso da Associação Brasileira de Agroecologia.
Essa reflexão nos remete também a recolocar o imaginário nos debates das nossas perspectivas, das nossas utopias. Significa dizer, como Pablo, da teoria da necessidade, da revisão do entendimento profundo do que representa nossa relação com a natureza, entendendo o que significaria a possibilidade de um novo urbano, ou o que ele chamou de “relocalização”. Que tipo de cidade queremos? E por isso é preciso pensar sobre a transição. Muitos tocaram no debate sobre a transição. Uma transição que coloque a questão ambiental no seu centro, que nos coloque e faça pensar sobre que mecanismos precisamos acionar: o que produzir e para quem? Também pensar as pautas alternativas. Mas lembramos que na prática as experiências no campo agroecológico, da economia solidária, da luta por cidades sustentáveis, da luta feminista por uma nova economia são exemplos concretos de um novo que vai germinando no caminho da transição.
E também falamos de tempo de esperança. Renovamos aqui nossa convicção de que é preciso que a emancipação, a igualdade, a visão de transformação, continuem presentes na nossa missão, no nosso ideário. E alguns exemplos bem concretos para nossa plataforma de futuro. Alguns deles indicados no debate já fazem parte da estratégia da FASE, de nossas práticas e reflexão, mas nós queremos renovar. Primeiro falamos aqui da releitura e continuidade do engajamento em lutas históricas importantes como é a luta por reforma agrária, direitos territoriais, reforma urbana. Talvez diferente da percepção que o Jorge teve sobre o debate ontem, não houve uma negação da luta por reforma agrária, mas a indicação da necessidade de atualização, de que ela se articule mais concretamente com outras polícias públicas que levem a dignidade e a cidadania para o campo. Mas também falamos da necessidade urgente de seguirmos pensando sobre as pequenas cidades periurbanas, sobre repensar o orçamento participativo, no qual a FASE teve histórico engajamento, e também seguir trabalhando com as alternativas nos territórios. Trabalhamos nos embates e na construção de alternativas ao mesmo tempo visibilizando o que é gerado por conflito com as empresas e buscando nesta ação no território concreto ativar intercâmbios, fazer campanhas, enfim, exercitar formas de interação entre movimentos.
Outra sugestão para nossa plataforma é que a FASE continue mantendo interação com setores na academia que hoje tem tantos núcleos que integram movimentos e marcam presença nas lutas dos movimentos sociais nos territórios. Também falamos da necessidade de nos debruçarmos mais no entendimento e sentido das políticas sociais. Aqui se falou das políticas de combate a pobreza, etc, precisamos nos debruçar melhor sobre este tema. Também falamos da necessidade de manter o papel histórico da FASE de formação, de organização da sociedade, marcado por políticas púbicas. Falamos também da comunicação e finalizando, em seguir também mantendo postura dialogal e construir novas alianças. E aqui o exemplo dado, que temos orgulho de termos participado e continuarmos participando, foi a realização do I Encontro Nacional de Diálogos e Convergências, da agroecologia, justiça ambiental, saúde coletiva, economia solidária, soberania alimentar e feminismo. Entendemos que por meio deste Encontro também teremos novas possibilidades de construção das nossas plataformas e utopias.”
*Esta síntese foi elaborada por Maria Emília Pacheco Lisboa, assessora do Programa Nacional Direito À Segurança Alimentar, Agroecologia e Economia Solidária da FASE, durante o Encontro de Parceiros realizado em comemoração aos 50 anos da FASE.