06/04/2016 16:51
Sara Pereira¹
Calma! Esse texto não é sobre o governo da presidenta Dilma Rousseff. Tratamos aqui somente do termo por ela adotado para designar o cargo que ocupa e as divergências provocadas no campo da semântica e da morfologia. É um texto, portanto, sobre feminismo e preconceito linguístico.
Já nas séries primárias, aprendemos uma regra antiga, a qual define que as palavras com os sufixos -ente, -ante e -inte são comuns de dois gêneros e, assim, comportam o masculino e o feminino, variando apenas o artigo que as precedem. Neste bojo estão, por exemplo, as palavras estudante e assistente. Por essa lógica, o correto seria (o, a) presidente. Assim, o termo “Presidenta” estaria indo de encontro à norma culta.
Esse é o entendimento de gramáticos ortodoxos que vociferam contra a decisão da presidenta de assim preferir ser chamada. Esquecem-se, no entanto, os dedicados jardineiros da “última flor do Lácio”², que o termo “presidenta” não é um neologismo inventado por Dilma. O substantivo feminino em questão está consagrado nas compilações das unidades léxicas de nossa Língua materna desde 1899 quando já constava no dicionário de Cândido de Figueiredo. Gostando ou não os defensores da rigidez linguística, o substantivo feminino “presidenta” é encontrado também no Aurélio, no Caldas Aulete, no Houaiss, no Michaelis e no Vocabulário Ortográfico da Academia Brasileiras de Letras.
Além disso, o vocábulo também tem salvaguarda na lei federal 2.749, de 1956, a qual determina o uso oficial da forma feminina para designar cargos públicos ocupados por mulheres. Tal lei era letra morta, até ser eleita a primeira mulher à Presidência da República do Brasil. E é exatamente o valor semântico do termo adotado por Dilma que torna insignificantes as divergências morfológicas provocadas por seu uso.
Quem nunca ouviu que “as palavras têm poder”? Para além dos outros significados que esse enunciado tenha, destacamos aqui a influência que a língua usada por um dado grupo social exerce sobre as relações existentes nesse grupo ou o quanto estas são reflexo daquela. Independente da ordem em que essas hipóteses se materializam, não há como negar que a nossa Língua Materna carrega na sua formação fortes elementos das desigualdades de gênero, como resultado de uma sociedade erigida sobre os esteios do patriarcado.
Nesse sentido, em uma rápida análise, podemos verificar que a referência a um grupo constituído por número majoritário de mulheres (e até quando há apenas um homem) é feita no masculino. Do mesmo modo, notamos que as palavras ofensivas são, em maioria, dirigidas ao sexo feminino, ao passo que determinados termos elogiosos são privilégios dos homens. E isso não ocorre de maneira aleatória. A carga semântica das palavras está relacionada com o que se convencionou que seriam características masculinas ou femininas.
Exemplo disso são os termos que denotam inteligência ou admiração como “gênio” e “ídolo”, os quais são exclusivamente empregados no masculino. Por outro lado, “mocreia” e “baranga” são referências pejorativas unicamente designadas para mulheres. Seria simples coincidência que em nossa sociedade os cargos e funções que exigem “alto nível de conhecimento”, “competência técnica” e “brilhantismo” sejam tidos como postos a serem ocupados por homens? Também seria mero acaso que nós mulheres ainda sejamos avaliadas por nossa aparência, e muitas vezes tão somente por isso, e que nos sintamos profundamente ofendidas ao sermos adjetivadas com tais termos porque fomos ensinadas que a aparência deve ser nosso maior predicado?
Apesar de termos muitos outros exemplos do machismo presente na nossa amada gramática, que certamente acrescentariam várias laudas a esse texto, vamos voltar ao termo que motivou sua elaboração, o polêmico termo “presidenta”. Não seria de se estranhar que uma mulher que lutou contra os grilhões da ditadura civil-militar e dedicou sua juventude pela democracia, tendo literalmente a própria pele queimada pelo ferro do regime autoritário, quisesse pontuar a marcação do gênero feminino para o termo que a designa como a primeira mulher a ocupar o cargo mais alto da República.
Estranho seria se ela optasse pela palavra sem a flexão de gênero (presidente), o que passaria uma sensação de que era, Dilma, uma estranha num universo masculino, a ocupante clandestina de um posto reservado historicamente aos homens. Evidentemente que ela não poderia mais tolerar qualquer espécie de clandestinidade. Isto posto, fica claro que, ao fazer questão de ser chamada de “presidenta”, a mandatária do país quis repassar a mensagem de que nós mulheres podemos ocupar qualquer cargo outrora tido como exclusivo dos homens, rompendo um preconceito sexista que secularmente nos foi imposto.
E isso não é pouca coisa. Não é mesmo. O protagonismo das mulheres sempre foi negligenciado na história. Mas, por quem a história sempre foi contada? Nos livros didáticos, só muito recentemente passamos a encontrar relatos de lideranças feministas que marcaram a luta de seu tempo. Algumas são mais conhecidas por terem virado enredo de filme ou telenovela, como Chiquinha Gonzaga, Olga Benário Prestes e Chica da Silva. Outras, quando lembradas, o são pela notoriedade de seus parceiros. É o caso de Patrícia Galvão, a Pagu, que geralmente é vista somente como a esposa de Oswald de Andrade, apesar de ter sido grande revolucionária feminista, sendo a primeira mulher a ser presa no Brasil por motivos políticos.
Reconhecemos que a luta pela igualdade de gênero tem evoluído, mas ainda num ritmo lento. Ainda somos discriminadas em nossas capacidades produtivas e de representatividade política. Ainda querem nos impor o espaço privado (doméstico) como aquele a que devemos nos reservar. Contudo, passou o tempo da resignação. Agora o que queremos é nos esparramar, caminhar a passos largos, militando diuturnamente para que as desigualdades de gênero sejam banidas de nossa sociedade.
E o que a Língua Portuguesa tem a ver com isso? Ora, a Língua é uma construção social e, como tal, evolui no tempo, podendo ser modificada. E na militância política aprendemos que as transformações sociais dependem da nossa intervenção na história. Nesse sentido, a presidenta utilizou de suas prerrogativas para que outras mulheres também pudessem ser tratadas pela forma feminina nas profissões que ocupam, sancionando a Lei 12.605/2012, que determina a flexão de gênero nos diplomas universitários. Assim, a profissional formada em algum curso superior em bacharelado, por exemplo, não é mais chamada “bacharel” e sim “bacharela”.
Portanto, mesmo com o nariz torcido dos linguistas doutrinários, o movimento feminista vai continuar fazendo flexão de gênero nas palavras que podem dar visibilidade à atuação das mulheres na sociedade, como o cumprimento público “todos e todas” (não, nós não somos contempladas pelo masculino no plural). A Língua nunca esteve, nem nunca estará, livre de ser usada como instrumento de dominação social. E a quebra dessa dinâmica é basilar para a conquista de uma sociedade com equidade de gênero.
Elementar que os linguistas, que discordam dessa assertiva, argumentem que a Língua não é influenciada por ideologia, e que a variação de gênero (ou a ausência dela) advém tão somente da constituição etmológica e morfológica das palavras. Porém, alegar isso ao movimento feminista é o mesmo que dizer que as piadas machistas são apenas brincadeiras e não têm o condão de ofender as mulheres. Ou seja, independente da intenção ou não do falante, o dano é causado.
Em suma, Dilma Rousseff contribuiu para o avanço das lutas feministas ao preferir ser denominada, em referência ao cargo que ocupa, com o morfema feminino. Afinal, o uso é o senhor da língua. Quiçá a próxima mulher a presidir o país não enfrente mais resistência ao decidir ser chamada de “presidenta”, até porque o termo não fere as normas gramaticais, apenas arranha os sensíveis tímpanos preconceituosos de quem venera a rigidez linguística. E se, por isso, resolverem de “ignorantas” nos chamar, aí sim estariam a nossa Língua Portuguesa a violentar.
[1] Educadora do programa da FASE na Amazônia, feminista, formada em Letras e Artes e em Direito.
[2] Referência ao nosso idioma feita pelo poeta Olavo Bilac no soneto Língua Portuguesa.